Uma pesquisa do campus de Jaboticabal da Unesp mostrou, pela primeira vez, que o organismo das aves também utiliza a redução da temperatura corporal (hipotermia regulada) como um mecanismo de defesa contra agentes agressores, como vírus e bactérias, nos casos em que há uma condição severa de inflamação ou infecção. A descoberta é parte da tese de doutorado defendida pela pesquisadora Lara do Amaral Silva e foi um dos destaques de junho da revista científica inglesa Journal of Physiology, uma das mais respeitadas da área, sendo inclusive a capa do volume de junho da revista.
A queda da temperatura corporal como resposta a infecções é estudada há décadas. Já havia sido observada em ratos e camundongos, e há possibilidade de que ocorra também em humanos, mas este é o primeiro registro do funcionamento deste mecanismo em aves. Os novos resultados poderão gerar desdobramentos em áreas como a medicina veterinária, a produção de animais e mesmo a medicina humana, fornecendo subsídios para estudos sobre os benefícios da hipotermia para casos de infecções graves como a sepse, que muitas vezes precisam ser atendidos em UTIs.
A professora Kênia Cardoso Bícego, orientadora da pesquisa, explica que o novo estudo foi pioneiro em analisar o fenômeno em aves, recorrendo a modelos de pintinho de galinha (Gallus gallus domesticus). A pesquisa, conduzida no Programa de Pós-Graduação em Zootecnia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) em Jaboticabal, contou com apoio da FAPESP.
A pesquisa teve início há cerca de cinco anos, a partir de uma dissertação de mestrado defendida na FCAV que documentou a hipotermia em pintinhos. Nesta etapa de doutorado, o objetivo era entender o que era efetivamente a queda de temperatura, como ela é controlada, e se se tratava de uma resposta de defesa ou, ao contrário, era um sinal de que o organismo perdeu o controle.
As aves foram infectadas em laboratório com um composto que simula uma infecção por bactérias. A seguir, a doutoranda Lara do Amaral Silva analisou diversos parâmetros nos animais para monitorar suas respostas fisiológicas. Os resultados iniciais mostraram que a taxa metabólica — que é a velocidade com que ocorrem as reações no organismo — estava de fato caindo, o que, por sua vez, poderia explicar a queda de temperatura corporal. “Mas isso poderia ser causado também por falta de oxigênio nas células”, diz Kênia Bícego. Para afastar esta possibilidade, foram feitas medições da atividade das mitocôndrias, que são a parte da célula responsável pela produção de energia. Além disso, o animal foi desafiado com um composto químico que força a atividade e o gasto de oxigênio nas mitocôndrias. As análises revelaram que as mitocôndrias estavam intactas e não experimentavam problemas de oxigenação.
Outra observação que reforçou a hipótese de que se trata de um mecanismo de defesa foi a constatação de que quando os animais ‘infectados’ eram expostos ao ambiente mais frio, ativavam a vasodilatação cutânea, o que é contrário ao que normalmente ocorre no frio. O aumento da circunferência dos vasos sanguíneos da pele das extremidades (nos pés, por exemplo) permite uma melhor circulação do sangue na superfície do corpo e a dissipação do calor interno para o ambiente. “São evidências de que essa queda de temperatura é algo regulado pelo organismo, que orquestra a redução da produção interna de calor (queda metabólica) com o aumento da dissipação de calor para o ambiente, e não porque houve algum descontrole”, diz a professora.
O estudo abre novas possibilidades para um entendimento maior das diferenças entre a febre – que também ocorre em associação a processos inflamatórios, porém mais moderados – e a hipotermia regulada, que pode ser verificada em casos de sepse, que envolve inflamações e infecções mais severas.
“Normalmente, quando há a ação de algum agente patológico gerando inflamação ou infecção, a resposta mais comum é a ocorrência de febre. A temperatura corporal aumenta e gera benefício para o corpo”, diz. Mas há uma outra situação: quando há uma condição mais severa, ao invés de ter febre, os indivíduos podem ter queda de temperatura. “Por muito tempo, considerou-se que isso era uma falha do organismo. A temperatura cai porque ele não consegue regulá-la, e vai a óbito”, explica. “Só que, mais recentemente, começamos a obter evidências de que esta resposta é regulada. Nessa situação mais grave, o organismo reduz a temperatura para conservação de energia e defesa contra danos em órgãos e tecidos”, diz Kênia Bícego. “E um animal com hipotermia regulada não deve ser aquecido, pois isso promove falta de oxigênio nos tecidos; por outro lado, se o animal desenvolve febre, ele precisa ser aquecido para facilitar o aumento da temperatura corporal sem um gasto energético maior e, assim, estimular o funcionamento do sistema imunológico” , explica.
O artigo Regulated hypothermia in response to endotoxin in birds, assinado por Lara do Amaral-Silva, Luciane H. Gargaglioni, Alexandre A. Steiner, Marcos T. Oliveira e Kênia Cardoso Bícego pode ser lido no link https://doi.org/10.1113/JP281385. “O resultado nos deixa muito felizes, envolvendo uma equipe multidisciplinar de colaboradores, recursos humanos qualificados sendo formados na Unesp e a pesquisa sendo reconhecida mundialmente”, diz Kênia Bícego.
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