Nossos Cinemas Paradisos

Nos cinemas de rua da minha cidade, eu gargalhei, chorei, emocionei-me e me formei como pessoa

Passei minha infância, adolescência e juventude em uma cidade que, apesar de interiorana, possuía várias salas de cinema. Havia um motivo para isso: o proprietário de uma das mais importantes redes de cinemas no Brasil, bem como de uma distribuidora de filmes, era botucatuense e morava na cidade.

Para se ter uma ideia do tamanho do prestígio de Emílio Peduti, Pedutão como era conhecido, Botucatu também contava com representações de várias distribuidoras internacionais de filmes. Tudo por influência dele e de seus negócios.  Nas décadas de 1960 e 1970, chegamos a ter cinco diferentes cinemas: Paratodos, Casino (com somente um “s”), Nelli, Vitória (depois rebatizado de Vila Rica) e Avenida. Isso para uma cidade de, no máximo, 60 mil habitantes. Desses cinco, os quatro primeiros eram propriedade da Empresa Teatral Peduti.

Assim, eu posso dizer que vivia rodeado de cinemas, pois em um raio de menos de um quilômetro de minha casa, havia quatro deles.  O quinto situava-se na Vila dos Lavradores e, segundo relatos, foi uma promessa do empresário quando de sua campanha a prefeito da cidade. Pedutão foi eleito e a Vila dos Lavradores ganhou o seu cinema, o Cine Vitória. As sessões iniciavam-se com a abertura das cortinas, permitindo a visualização da tela e tendo como fundo musical, com a orquestra de Billy Vaughn, “A Summer Place”, tema do filme de mesmo nome, no Brasil intitulado “Amores Clandestinos” (dirigido por Delmer Daves, 1959). Até hoje, quando a ouço, sou transportado para as salas de cinema de minha infância e juventude.

“Mocinhos’ nas matinês

Aproveitei bastante essa facilidade geográfica: quando criança, freqüentava as matinês do Paratodos e as do Casino, adorava os desenhos da Disney e as aventuras de meus heróis, fossem eles gladiadores romanos, da Polícia Montada do Canadá ou quaisquer outros que defendessem o Bem contra o Mal. Os seriados sempre terminavam em situações desesperadoras para os “mocinhos”, tais como aquelas em que, completamente imobilizados em esteiras rolantes, eram direcionados para o seu trágico fim, o encontro com discos superafiados de serras que os retalhariam ao meio. Haja paciência para aguardar uma semana até que um novo capítulo fosse projetado nas telas de nossos cinemas e o mocinho ou sua amada pudessem se livrar dos perigos que os ameaçavam!

Cabe lembrar que não era raro o cinema cometer algum erro e exibir os capítulos fora de ordem. Assim, podia acontecer de um animal selvagem tomar o lugar da serra que, milagrosamente, desaparecia. O perigo agora não era mais os dentes afiados de metal, mas os de um urso branco no Alasca. Em um primeiro momento, protestávamos em altos brados, mas logo a seguir já nos entretínhamos com os novos desafios enfrentados pelas “forças do bem”.

O tratamento dado aos espectadores também variava, dependendo do cinema em que nos encontrávamos. No Paratodos, quando reclamávamos, tomávamos uma lanternada do responsável pela manutenção da ordem dentro do recinto, a quem carinhosamente (ou maldosamente) chamávamos de “lanterninha”. No Casino ou no Nelli, éramos somente advertidos. Havia diferentes cinemas para “diferentes” públicos: no Paratodos, as cadeiras eram duras, o banheiro cheirava a urina, a bombonière era a mais simples possível; já no Casino e, especialmente no Nelli, as cadeiras eram melhores, parcialmente estofadas, os “lanterninhas” muito solícitos e educados e as bombonieres bem abastecidas, com os mais variados chocolates, balas diversas e os famosos dadinhos Dizioli.

Hormônios à flor da pele

De qualquer maneira, ninguém há de tirar do Paratodos o mérito de ter proporcionado para muitos meninos como eu as primeiras imagens de mulheres lindas, parcialmente nuas, no máximo com os seios à mostra. Com carteirinhas de estudante mal e porcamente falsificadas, “provávamos” que tínhamos 14 anos e os porteiros, por sua vez, fingiam acreditar. Era uma situação muito desejável para todos: adolescentes com os hormônios à flor da pele, porteiros que não precisavam se indispor com os garotos e gerentes das salas, que viam seus lucros aumentarem muito.  No Nelli e no Casino, isso era mais difícil, pois o rigor era maior.

Em relação ao Cine Nelli, vale a pena falar um pouquinho mais. Havia um movimento para construção de um teatro em Botucatu, para abrigar as atividades do TAENCA (Teatro da Escola Normal). Lideradas pelo bancário Joel Nelli e Alice, sua esposa, várias campanhas de arrecadação foram realizadas e a construção teve início. Infelizmente, quando o teatro estava para ser finalizado, o “gás” acabou (ou não havia mais doadores disponíveis) e Peduti então mobiliou o espaço e o colocou em funcionamento, como cinema. Como contrapartida, o TAENCA tinha direito a quatro noites por mês para utilizá-lo para ensaios do grupo teatral ou exibições de companhias que vinham a Botucatu.

O Nelli era uma maravilha. Bem menor que os demais cinemas então existentes quando de sua inauguração (1962), era mais luxuoso e confortável, com instalações e decoração modernas para a época e com uma acústica muito boa. Os espectadores eram recebidos por um funcionário (Moacir) trajando smoking, os lugares eram numerados e podiam ser reservados antecipadamente por telefone. Sessões todos os dias, inclusive matinês. Foi inaugurado com a exibição de “El Cid”, com Charlton Heston.

Filmes marcantes

Foi no Nelli que assisti à grande maioria dos filmes que me marcaram. Em três deles, lembro-me que a platéia, ao final da exibição, aplaudiu-os comovida: “Boleiros – Era Uma Vez o Futebol” (direção de Ugo Giorgetti, 1998), “Eles não usam Black-tie” (Leon Hirszman, 1981) e “Cinema Paradiso” (Giuseppe Tornatore, 1988, lançado no Brasil em 1990). Foi emocionante ver essas reações. A obra de Tornatore, especialmente, até hoje me toca e me remete a várias das lembranças aqui descritas.

A situação a seguir, por exemplo, é muito “Tornatore”, muito “Cinema Paradiso”. Estava sendo exibido “Os Dez mandamentos” (Cecil B. DeMille, 1956), cujo ator principal é Charlton Heston, no papel de Moisés. Um filme longo, com cerca de 3h40min de duração, sendo que em Botucatu, no Nelli, ele era apresentado com um intervalo. Em um dos dias de exibição, um colega nosso de escola convidou uma professora recém-chegada a Botucatu para assistir ao filme.

Pessoa muito religiosa, a professora ficou surpresa e muito comovida com o convite do aluno. Mal sabia ela o que estava por vir. Amaral, esse era o nome de nosso colega, já havia visto o filme inúmeras vezes e guardara na memória uma determinada seqüência, uma cena em que Moisés vira seu rosto para a câmera, como se estivesse respondendo ao chamado de alguém. E assim ocorreu: sentado ao lado da professora, Amaral de repente levanta-se, segundos antes da cena, mira a tela e grita a plenos pulmões: “Moisés, Moisés!!” Como por milagre, Moisés vira-se e olha para Amaral. O cinema veio abaixo naquele momento. Acredito que nunca mais a professora tenha retornado ao Nelli em companhia de Amaral.

Lembranças caras e ricas

Com a chegada da Universidade a Botucatu, uma nova leva de pessoas se somou aos freqüentadores dos cinemas locais. Por iniciativa dos estudantes e com a participação de jovens da cidade, sedentos por novidades, foram criados cineclubes e várias produções não comerciais começaram a ser exibidas em Botucatu. Exemplos? “Zabriskie Point”, de Antonioni (1970), e “A Noite Americana”, de François Truffaut (1970).  Lembro-me também de ciclos de cinema francês, tcheco e de uma Semana Glauber Rocha.

Infelizmente, com o passar do tempo, especialmente a partir da década de 1980, os cinemas de rua foram minguando no Brasil. Em Botucatu também não foi diferente: um a um foram fechando. O Nelli foi o último a encerrar as atividades, em 2014. Foram substituídos por salas em shoppings, modernas, com ar-condicionado, som e áudio de primeira… Avançamos na qualidade, mas perdemos no charme. Parece-me tudo muito pasteurizado, mas não posso deixar de reconhecer que os shoppings foram fundamentais na manutenção do hábito de freqüentar cinemas. Sem eles, não sei o que seria desse nosso prazer.

Por serem de uma universidade multicâmpus, distribuída em 22 cidades do interior e uma no litoral, acredito que muitos leitores unespianos, também tenham vivenciado muitos “Cinemas Paradisos” em suas vidas. No meu Paratodos, no meu Nelli, enfim, nos cinemas de rua da minha cidade, eu gargalhei, chorei, emocionei-me e me formei como pessoa. Vocês, provavelmente, também o fizeram. Que guardemos essas lembranças tão caras e ricas!

Viva o cinema!

José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. É assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp

Na imagem acima, Salvatore Cascio, aos 8 anos de idade, no filme “Cinema Paradiso” (1988), no papel de Totò, que lhe rendeu o prêmio Bafta de Melhor Ator Coadjuvante de 1991. Imagem captada de vídeo no YouTube.