Nesse domingo, dia 20 de novembro deste ano, completaram-se 327 anos do assassinato do maior líder popular do Brasil. A história oficial um dia irá reconhecer em Zumbi dos Palmares e nos palmarinos dos mocambos estabelecidos na Serra da Barriga, ao longo de praticamente quase todo o século 17, um valiosíssimo legado sociocultural e político-econômico, mas também psicopedagógico e ambiental. Estamos certos de que as ciências humanas, aos poucos, estão chegando a esse reconhecimento. Mas não só elas; as ciências da natureza e a economia verde também começam a voltar seu olhar para esse fato e processo, adotando um novo entendimento sobre o Brasil e o papel que ele desenha no jogo internacional.
Em especial no que diz respeito à emergência climática, a partir da presença e dos papeis que desempenham as comunidades tradicionais de caiçaras, caipiras, sertanejos, indígenas e quilombolas. Em particularmente as duas últimas, devido as marcas culturais que possuíram, a nativa das Américas e a africana, tal como implantada aqui neste vasto território brasileiro.
Começamos assim esse artigo a fim de nos posicionarmos diante de uma pauta, e uma agenda, que é preciso fincar a fundo nas terras afro-pindorâmicas de Abya Ayla um dos nomes dos povos originários para a América. Trata-se de demarcar a importância dos quilombolas e das populações indígenas como detentores de um conhecimento tradicional e de tecnologias socioagrícolas que nos apontam o caminho para superarmos a emergência climática.
Os quilombolas e as populações indígenas eram detentores de um conhecimento tradicional e de tecnologias socioagrícolas que nos apontam o caminho para superarmos a emergência climática.
Nesse momento, fazemos isso a partir do projeto instituído pelos quilombolas presentes na Serra da Barriga no século 16. Ali estavam presentes indígenas e populações brancas empobrecidas, todos sob o comando dos africanos oriundos do Reino do Kongo e dos demais reinos que formaram a atual Angola. Especialmente aqueles que lutaram junto com a rainha Nzinga, dos reinos de Matamba e Ndongo, contra o poder do Estado português, e ao perderem a guerra foram enviados para a capitania de Pernambuco a fim de serem aqui escravizados. Mas, não o foram; fugiram e fundaram o quilombo de Palmares, o primeiro, o maior e o mais próspero das Américas no período.
Valores tradicionais e não europeus fizeram a diferença
A cultura palmarina instituída tinha como base os valores civilizatórios das etnias bantu de Angola e das indígenas situadas na capitânia de Pernambuco. Ou seja, uma forma de vida comunitária e familiar, marcada pela responsabilidade coletiva de um com os outros. E aportada, fundamentalmente, pelos vínculos de sustentabilidade social e ambiental. Desta forma, caracterizava-se não somente pela luta com o horizonte da conquista da liberdade física e pessoal, mas também pela liberdade de produzir e de viver do que se produzia na terra e da terra. Esse modo de viver era fundamentado pelo fato de que os indígenas, e sobretudo os povos bantu aqui traficados, eram conhecedores profundos das culturas agrícolas.
No entanto, suas tradições culturais estavam voltadas para a economia de subsistência. Ou melhor, a economia da existência coletiva, comunitária e familiar, enquanto projeto de soberania alimentar. Ela era associada à chamada eco-economia florestal, ou agroecologia, uma tecnologia social que essas etnias bantu e os indígenas já seguiam desde tempos imemoriais.
Assim, as diversas investidas, na forma de expedições assassinas comandadas por mercenários e bandeirantes, que foram despachadas contra estas comunidades durante o século 17 a mando do Estado Português, não miravam apenas a liberdade desses grupos que fugiram e se instalaram na Serra da Barriga. De fato, o que estava em questão era o fato de que esses povos detinham tecnologias sociais e uma visão de mundo que abarcava concepções de cultura, política e economia diferentes daquelas que desfrutavam da hegemonia não apenas em Portugal, mas em toda a Europa ocidental.
Como já apontaram autores como Edison Carneiro (O quilombo dos Palmares, 1988) e Clóvis Moura (Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, 1988 e Dialética radical do Brasil negro, 1994) essa visão era a de uma República de seres humanos livres, cultivando uma terra produtiva e tendo uma produção de boa qualidade, desfrutando de uma condição de justiça social e ambiental que atendia os anseios de populações antes vulnerabilizadas pelo regime econômico e cultural sustentado pela Coroa Portuguesa e pelo sistema mercantilista, base da acumulação primitiva de capital, conforme nos informou Karl Marx (A origem do capital: a acumulação primitiva, 1977).
Portanto nesta data de 20 de novembro de 2022, os brasileiros devem olhar para Palmares e para a história de seu líder maior, não apenas como alguém que lutou por sua liberdade física e pessoal, mas como um ser humano que tinha um projeto de sociedade muito diferente do que estava em curso no Brasil, na África ou em toda a América invadida e usurpada. Ou mesmo na Europa, com seus reis e rainhas vilipendiadores. Zumbi, e os demais palmarinos, produziam a sua existência a partir das culturas tradicionais africanas e ameríndias que estavam ali formando uma outra consciência social, política, econômica e ambiental para o período de escassez de alimentos. Pois no Brasil Colônia, o que se produzia era destinado à exportação, principalmente a monocultura da cana-de-açúcar, que empobrecia o solo, a terra e a vida na terra.
Projeto não morreu com Palmares, e chegou às mãos da princesa Isabel
A destruição de Palmares em 1695, e o assassinato de muitos de seus habitantes, inclusive do próprio Zumbi dos Palmares, não resultou na destruição de seu projeto social, econômico, cultural, ambiental e político. Muito pelo contrário: ele prosperou ao longo da história brasileira. Tanto que uma das formas de procurar obstaculizar, de forma oficial e institucional, o acesso das populações africanas e de seus descendentes no Brasil à terra foi por meio da famosa lei de terras, adotada em 1850.
No entanto, mais tarde, já no final do século 19, esse mesmo projeto volta à tona, sustentado pela engenhosidade técnica e pela capacidade política demonstrada pelos irmãos André e Antônio Rebouças (Maria Alice Carvalho, André Rebouças e a questão da liberdade. In: Um enigma chamado Brasil – 29 intérpretes e um país, 2009). Os dois apresentaram um projeto de reforma agrária no Brasil a então princesa Isabel, integrante da Casa dos Orleans e Bragança, como nos revela inclusive uma carta escrita pela própria princesa em agosto de 1889, quando se dizia interessada em atender o projeto desses dois irmãos, negros e engenheiros baianos.
Eis o teor da carta abaixo escrita pela princesa Isabel ao Visconde de Santa Rita, em 11 de agosto de 1889 no Paço Imperial, onde se trata da reforma agrária para os negros ex-escravizados ( Dagoberto José Fonseca: Políticas públicas e ações afirmativas, 2009).
“Caro Senhor Visconde de Santa Victória”
“Fui informada por papai que me colocou a par da intenção e do envio dos fundos de seu Banco em forma de doação como indenização aos ex-escravos libertos em 13 de maio do ano passado, e o sigilo que o Senhor pediu ao presidente do gabinete para não provocar maior reação violenta dos escravocratas. Deus nos proteja que os escravocratas e os militares saibam deste nosso negócio, pois seria o fim do atual governo e mesmo do Império e da Casa de Bragança no Brasil. Nosso amigo Nabuco, além dos Srs. Rebouças, Patrocínio e Dantas, poderão dar auxílio a partir do dia 20 de Novembro quando as Câmaras se reunirem para a posse da nova Legislatura. Com o apoio dos novos deputados e os amigos fiéis de papai no Senado será possível realizar as mudanças que sonho para o Brasil.”
“Com os fundos doados pelo Senhor teremos oportunidade de colocar estes ex-escravos, agora livres, em terras suas próprias trabalhando na agricultura e na pecuária e delas tirando seus próprios proventos. Fiquei mais sentida ao saber por papai que esta doação significou mais de 2/3 da venda dos seus bens, o que demonstra o amor devotado do Senhor pelo Brasil. Deus proteja o Senhor e todo a sua família para sempre!”
“Foi comovente a queda do Banco Mauá em 1878 e a forma honrada e proba, porém infeliz, que o Senhor e seu estimado sócio, o grande Visconde de Mauá, aceitaram a derrocada, segundo papai tecida pelos ingleses de forma desonesta e corrupta. A queda do Sr. Mauá significou uma grande derrota para o nosso Brasil!”
“Mas não fiquemos mais no passado, pois o futuro nos será promissor, se os republicanos e escravocratas nos permitirem sonhar mais um pouco. Pois as mudanças que tenho em mente, como o senhor já sabe, vão além da liberação dos cativos. Quero agora me dedicar a libertar as mulheres dos grilhões do cativeiro domestico, e isto será possível através do Sufrágio Feminino! Si a mulher pode reinar também pode votar!”
“Agradeço vossa ajuda de todo meu coração e que Deus o abençoe! Mando minhas saudações a Madame la Vicomtesse de Santa Vitória e toda a família.”
“Muito de coração, Isabel.”
Como se destaca entre outras informações da carta, a princesa Isabel tinha o apoio de José do Patrocínio, do deputado de Pernambuco Joaquim Nabuco e do senador baiano Manuel Pinto de Sousa Dantas. Este também apresentou seu próprio projeto, o Projeto 48-A, que previa a criação de colônias agrícolas e transferência de terras aos ex-escravizados, tornando-os proprietários, caracterizando-se como uma proposta de reforma agrária. Mas, como se sabe, o projeto não vingou, pois foi dado um golpe de Estado no dia 15 de novembro de 1898: a proclamação da República.
A lei de Terras e o golpe republicano, por mais violentos que tenham sido os seus efeitos no sentido de impedir o acesso à terra para a imensa maioria da população negra brasileira, que se viu jogada às ruas, vielas e favelas, não mataram o projeto de Zumbi e dos habitantes palmarinos, os grupos de origem bantu, as populações empobrecidas e as etnias indígenas que habitavam a região da Serra da Barriga.
Esse projeto ressurge hoje, mais de 320 depois, e mostra que a saída para a emergência climática está associada aos cuidados com a água, com a produção diversificada de alimentos e com a convivência que respeita a natureza, gerando renda e vida por meio de uma eco-economia voltada para a agroflorestal, e com a construção de uma harmonia sociocultural que instaura o equilíbrio entre a produção de carbono verde e a soberania alimentar. Esse projeto permite combater a fome, a miséria, a injustiça e o racismo ambiental, bem como o racismo sistêmico-orgânico que atinge a muitos brasileiros presentes na cidade e no campo.
Assim, é imperativo que olhemos para Palmares, e para todos os quilombos no Brasil e nas Américas, não com o sentido de fazermos uma memória nostálgica e epopeica dos kilombos desde o Reino do Kongo e os demais reinos subsidiários deste maior, nem tão pouco só para nos conscientizarmos que a liberdade é uma causa fundamental para a existência do ser humano. O que está apresentado aqui, para nós, é o sentido do projeto cultural, político, econômico, social e ambiental que estava em curso desde Palmares pelos povos de origem bantu de Angola e indígenas, desde a Serra da Barriga, que o Brasil da atualidade precisa se conscientizar e rapidamente diante a emergência climática.
Dagoberto José Fonseca é professor do Departamento de Ciências Sociais e Livre Docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Campus Araraquara, coordenador científico do NUPE (PROEC-UNESP) e coordenador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) da mesma faculdade.
Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.
Imagem acima: ilustração de Mapa da Capitania de Pernambuco, 1647, de Frans Post, que retrata população do Quilombo dos Palmares em atividade.