Um novo estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Biociências do Câmpus do Litoral Paulista (CLP) da Unesp mostrou que os crustáceos popularmente chamados de “camarão corrupto”, e que são muito encontrados no litoral brasileiro, constituem realmente uma espécie própria. A pesquisa foi realizada entre 2015 e 2018 e envolveu a coleta de mais de mil amostras de crustáceos, capturadas de norte a sul do litoral brasileiro. Os resultados das análises permitem pôr fim a uma polêmica científica que se arrastava havia quase quatro décadas.
Entre os anos de 1960 e 1990, pesquisas do biólogo Sérgio de Almeida Rodrigues, da USP, ganharam projeção e ajudaram a disseminar a alcunha popular de “corrupto”, que era adotada por pescadores de Santos para designar um crustáceo bastante usado como isca para pesca na costa brasileira. O apelido remonta aos períodos da Ditadura militar e da lenta e gradual redemocratização do país, tempos em que a percepção da população era de que os crimes de corrupção existiam em grande quantidade mas eram mantidos em segredo, o que inviabilizava a captura de seus agentes. Daí a origem do nome “corrupto da praia”: existiam em grande quantidade, mas pouco apareciam e eram difíceis de capturar.
A pesquisa foi conduzida durante o pós-doutorado do biólogo marinho chileno Patrício Hernáez no CLP-Unesp, que teve supervisão do professor Marcelo Antonio Amaro Pinheiro e contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Em seus trabalhos, que ocorreram entre 2015 e 2018, ele visitou 61 praias, do norte ao sul do país. As análises das amostras permitiram identificar, pela primeira vez, as características morfológicas que definem taxonomicamente populações do gênero Callichirus da costa do Brasil. Isso permitiu estabelecê-las como pertencentes a uma nova espécie, distinta do Callichirus major, que é originária do hemisfério norte, e batizá-las de Callichirus corruptus, sendo a espécie mais frequente e dominante desta ordem no litoral brasileiro.
Patrício Hernáez assina, junto com três colegas, o artigo “A new Callichirus ghost shrimp species from the south-western Atlantic, long confounded with C. major (Say, 1818) (Decapoda: Axiidea: Callichiridae)”, que foi publicado no periódico científico Journal of Natural History, um dos mais tradicionais no campo da zoologia. A expressão ghost shrimp (camarão fantasma), que é usada no título, é um apelido genérico pelo qual este tipo de crustáceo é conhecido internacionalmente, e no Brasil foi popularizado pela alcunha de “camarão corrupto”.
Espécie totalmente diferente
Embora o próprio Sergio de Almeida Rodrigues já tivesse detectado, em seus trabalhos, diferenças morfológicas entre exemplares de “corrupto” provenientes das praias do Brasil e do estado da Flórida, nos Estados Unidos, onde foi colhido o material-tipo usado para descrever o Callichirus major em 1818, desde o século 19 usava-se o nome C. major para designar todas as populações de Callichirus da costa do Brasil.
“Por muito tempo se chamou, de maneira geral, de Callichirus major todas as populações de Callichirus coletadas na costa do Atlântico Sul-Ocidental, incluída a costa do Brasil. Mas o Callichirus do Brasil, na realidade, é uma espécie completamente diferente daquela que está distribuída na costa dos Estados Unidos, no Golfo do México, no Caribe e no Caribe colombiano”, diz Hernáez, que hoje atua na Universidade Federal de Pernambuco. “Confirmamos essa predição do professor Sergio Rodrigues, que já tinha sugerido que se tratavam de espécies diferentes, e demos o nome pelo qual esta espécie ficou conhecida nas praias do Sudeste e do Sul do Brasil. Tiramos uma dúvida que persistiu por mais ou menos 40 anos. Essa é, digamos, a graça desse estudo”, diz.
No artigo, estão descritas diferenças morfológicas em relação a outras populações do complexo C. major. Entre estas, é possível citar diferenças morfológicas no pedúnculo ocular, no pedúnculo antenular e no quelípodo (“pinça”) do espécime masculino. Os pesquisadores atestam também, com o auxílio da biologia molecular, a marca digital que distingue o C. corruptus de outras espécies, comparando o resultado do sequenciamento genético com o material coletado de outras populações de Callichirus major depositados no Museu de História Natural de Washington, nos Estados Unidos, local que reúne a maioria dos holótipos das espécies americanas, e também no Museu de Zoologia da USP, onde foi depositado o material-tipo que deu base para esta descrição da nova espécie de Callichirus do Atlântico ocidental, o C. corruptus.
Em 2012, um trabalho de pesquisadores da USP já confirmara que a espécie de Callichirus presente na costa do Brasil tratava-se de um táxon, ou unidade taxonômica, distinto molecularmente daquele descrito em 1818 na costa atlântica da América do Norte, que vem sendo citado nos trabalhos científicos acompanhado da expressão “sensu lato”, o que indica tratar-se de uma nomenclatura abrangente, um complexo de espécies.
No total, pelo menos quatro espécies
Levando-se em consideração os estudos publicados nas últimas décadas, inclusive as notáveis incursões realizadas por Sérgio de Almeida Rodrigues, a hipótese mais trabalhada atualmente é a existência de quatro espécies distintas do gênero Callichirus: uma distribuída da costa da Flórida para o norte dos Estados Unidos (C. major sensu stricto); outra do Golfo do México para o sul, até o Caribe colombiano; uma terceira que teria ao longo da história se isolado no Oceano Pacífico com a formação do istmo do Panamá, existente do Panamá até o Golfo da Califórnia; e o C. corruptus, na costa brasileira e, possivelmente, no litoral de outros países sul-americanos banhados por águas atlânticas não caribenhas. A grande área de ocorrência tem relação com o desenvolvimento larvário muito prolongado da espécie, o que daria a ela maior poder de dispersão nas correntes marítimas, em comparação com outras espécies de desenvolvimentos larvários mais abreviados.
“Atualmente, a zona de ocorrência de C. corruptus é do Pará a Santa Catarina, mas pensamos que possivelmente esteja também distribuído na costa da Guiana e da Venezuela, onde também foi reportado. Só que, como a gente não contava com o material de lá, não conseguimos comparar nosso material com aquele coletado na Venezuela”, diz Patrício Hernáez.
Próprio de praias com areias de grãos finos ou médios, o C. corruptus possui uma comprovada importância ecológica ao promover, com seu hábito escavador, o revolvimento de sedimentos de ambientes marinhos, o retorno da matéria orgânica e a reciclagem de nutrientes. Os sistemas de galerias construídas pela espécie sob a areia mantêm e renovam habitats para outros organismos e criam microhabitats favoráveis para uma fauna associada de outras espécies, como alguns pequenos caranguejos. Em praias como as de Santos e São Vicente, é relativamente fácil observar a galeria em que fica o “corrupto” ao caminhar pela areia perto da linha da água: o crustáceo emerge por uma fração de segundo após o recuo da maré, deixando pequenino buraco na areia úmida – é neste instante que a bomba manual de sucção à base de cano de PVC é utilizada por pescadores para capturá-lo. Essa armadilha foi criada originalmente por Rodrigues, e posteriormente difundida e aprimorada mundo afora.
Os detalhes do táxon do C. corruptus estão listados na plataforma internacional WoRMS (World Register of Marine Species), que reúne registros de espécies marinhas. “Os estudos que vêm sendo publicados sobre os camarões-fantasma são resultado deste excelente trabalho desenvolvido pelo Patrício Hernáez, que tem trazido à luz várias espécies do grupo, bem como dissipando dúvidas de grande relevância taxonômica”, afirma o professor Marcelo Pinheiro, líder do Grupo de Pesquisa em Biologia de Crustáceos (Crusta) do câmpus do litoral paulista e supervisor do projeto de pós-doc que estudou os padrões biogeográficos do “corrupto”.
Nas expedições relacionadas a esta pesquisa, que se baseou no Instituto de Biociências do CLP-Unesp, foram coletadas 1.166 amostras de nove espécies diferentes de crustáceos. A partir do levantamento foram descritas quatro novas espécies, sendo três que não pertencem ao gênero Callichirus. Das novas espécies identificadas, o C. corruptus é a mais abundante no país dentre aquelas chamadas popularmente de “corrupto da praia” ou “camarão fantasma” e a única conhecida do gênero Callichirus no Brasil. Em outro artigo de Hernáez, publicado em 22 de setembro no periódico Marine Biology Research, são registradas as características, distribuição e habitat das espécies coletadas, bem como discutidas as informações taxonômicas de maneira comparativa àquelas disponíveis na literatura científica para cada táxon.
“Muita da história taxonômica do Brasil está baseada na adoção de nomenclaturas que eram apenas a repetição de nomes de espécies descritas no hemisfério norte. Muitas vezes, não existiam meios para se fazer uma comparação adequada; havia maior dificuldade de deslocamento, entre outras questões. Muitas das espécies existentes no Brasil não são as mesmas descritas no hemisfério norte. São diferentes e novas para a ciência e, para descrevê-las, é preciso comparar o material, um trabalho que é demorado para ser feito de forma adequada”, diz Patrício Hernáez.
Imagem de abertura: montagem de espécimes macho e fêmea do Callichirus corruptus e foto de buraco na areia aberto pelo crustáceo na praia de Barra de Caravelas, na Bahia.