Na manhã da última terça (26), o auditório da Biblioteca Mário de Andrade, no centro da capital paulista, recebeu a mais recente apresentação do Ciclo de Palestras e Debates organizado pelo Núcleo de Estudos Avançados (NEAv) da Unesp. Intitulada “A universidade é o atalho para reunir democracia e humanismo”, a palestra foi proferida por Cristovam Buarque, que, além de primeiro reitor eleito democraticamente na Universidade de Brasília (UnB), ocupou os cargos de governador e senador do Distrito Federal e encabeçou o Ministério da Educação durante o primeiro mandato do presidente Lula (2003 – 2006).
O NEAv nasceu em agosto deste ano como uma iniciativa independente das demais atividades de pesquisa da Unesp. No núcleo, o trabalho se organiza nas chamadas cátedras, grupos com duração de um ou dois anos nos quais pesquisadores de diferentes áreas se debruçam sobre tópicos contemporâneos adotando uma abordagem interdisciplinar.
A primeira cátedra estabelecida investiga o desinteresse dos jovens pelo ensino superior. Esse desinteresse se materializa nas altas taxas de evasão: 55,5% dos matriculados, no Brasil, desistem de suas graduações antes de terminá-las. “O jovem não sabe qual profissão irá exercer após concluir a faculdade. Talvez seja uma profissão que ainda nem existe”, diz Eduardo Colombari, professor da Faculdade de Odontologia de Araraquara e primeiro coordenador do NEAv. “É preciso que a universidade esteja no ritmo dessas mudanças e entendendo o seu público para alcançar o melhor aproveitamento”, diz.
Humanismo versus democracia
Buarque começou sua fala explicando por que o título da palestra contrapõe “humanismo” e “democracia”, ainda que, em uma análise superficial, esses dois conceitos pareçam andar de mãos dadas. Para dar um exemplo didático dessa distinção, evocou as intenções dos diferentes atores da COP 30, conferência climática da ONU organizada recentemente em Belém (PA).
“Se você analisa o que disseram os filósofos, os ambientalistas, os militantes nos corredores da COP, você vai ver que eles falam em nome da humanidade”, disse Buarque. “Mas, se você ouvir o que falaram os representantes dos governos dentro das salas de decisão, eles falaram em nome de suas respectivas populações. No corredor, estava o humanismo. Na sala de decisão, estava a democracia.”
Para Buarque, os consensos diplomáticos costurados cuidadosamente durante a conferência atrasam ou impedem avanços urgentes, como a frustrada determinação de um plano prático e de uma data para o fim do uso de combustíveis fósseis. O tópico acabou ficando fora dos textos finais por oposição de países como a Arábia Saudita, que baseia sua economia em extração de petróleo e não se beneficiaria da transição energética em um futuro próximo.
“A democracia é uma questão nacional e de curto prazo. A reflexão democrática ocorre em função do calendário eleitoral, dos mandatos dos dirigentes. Os políticos ainda estão no tempo em que o mundo era a soma dos países. Mas nós estamos num tempo em que cada país é um pedaço do mundo. Ninguém imagina que acabar com a democracia vai trazer o humanismo. Na verdade, seria pior. Mas, se a democracia continuar prisioneira do presente, (…) não vamos ter um futuro para a humanidade.”
Buarque arrematou esse raciocínio explicando que, dentre uma pletora de atores sociais influentes — igrejas, sindicatos, ONGs, partidos — as universidades são as mais aptas a conduzir discussões que permitam conciliar os interesses de curto prazo de cada nação com os interesses da Terra como um todo. Todo político, argumenta ele, ainda que bem-intencionado, está preso às demandas do presente, e depende de apoiadores que têm objetivos limitados no tempo e no espaço. Já a universidade é um espaço em que se constrói conhecimento em um ritmo mais cauteloso; com um escopo mais abrangente em vista.
Doze pontos de atenção para o futuro
Buarque argumenta que as universidades não conseguirão alcançar a proeminência que precisariam nas próximas décadas caso não se esforcem para se adequar aos desafios contemporâneos. “Para a universidade servir como um instrumento de formulação do futuro da humanidade, é preciso formular agora o futuro da própria universidade”, analisou.
O acadêmico listou, então, doze tópicos que considera essenciais para que essas instituições permaneçam relevantes. Um deles é a internacionalização dos esforços de pesquisa, que já é um processo em andamento. Não faz mais sentido abordar a produção acadêmica como uma corrida entre países em vez de uma colaboração em escala global. Outro é abraçar a interdisciplinaridade de fato, e não só no discurso.
“É preciso conviver com os outros saberes que estão na universidade. A realidade não cabe em um departamento. Há muitos anos, vi na UnB um cartaz para uma palestra sobre os primeiros três minutos do Universo. Não consegui um colega economista para ir comigo”, relata.
Um terceiro ponto é o que Buarque denomina “falta de ousadia” nas relações entre pesquisadores experientes e seus orientandos. E ilustrou esse ponto com exemplos históricos. “Freud não teria formulado o que formulou em sala de aula; se tivesse escrito seus livros como um doutorando, não seria aprovado. Marx teve que se distanciar de seus orientadores hegelianos”, lembrou. Não é saudável, pondera, que os doutorandos sigam cegamente as linhas de pesquisa, métodos experimentais ou as opiniões de seus orientadores. É preciso estimular o senso crítico para formar pupilos com independência acadêmica, e não só conhecimentos técnicos específicos de sua área.
Outras preocupações listadas por Buarque foram o desafio de integrar as inteligências artificiais de forma saudável às rotinas do ensino e da pesquisa, o aperfeiçoamento dos métodos ensino à distância e o fim do corporativismo entre docentes, que frequentemente abrem mão do rigor e da objetividade para defender profissionais ruins e mantê-los em seus cargos. A maior crítica do acadêmico, porém, é à má situação da educação básica no país — que ele considera um fator central por trás da tendência de desinteresse no ensino superior.
Ensino médio, não medíocre
Buarque critica a pretensão de expandir o ensino superior no Brasil antes que o ensino básico seja, de fato, capaz de formar pessoas aptas a cursar uma graduação. “Em 40 anos de democracia, o Brasil multiplicou por cinco o número de universitários. Mas só multiplicou por 2,5 o número dos que terminam o ensino médio. E o que se multiplicou foi só a quantidade de formados, não a qualidade. A qualidade não melhorou tanto.”
Para ele, cotas são necessárias porque corrigem uma injustiça histórica, mas devem ser tratadas como uma política pública provisória, e não como uma solução de longo prazo. De acordo com o ex-Ministro, o objetivo deve ser que “todos tenham uma base suficiente para chegar ao ensino superior, e não que o ensino superior seja acessível mesmo para quem não tem uma base. (…) Sinceramente, eu acho a frase ‘universidade para todos’ equivocada, demagógica.”
De acordo com Buarque, a expansão do ensino superior brasileiro nas últimas décadas evitou convenientemente a discussão sobre o ensino básico, como se os diplomas de graduação fossem suficientes para compensar as lacunas deixadas por colégios públicos deficientes. Um cidadão não precisa, necessariamente, do ensino superior para ter uma carreira e uma vida plenas — há muitos caminhos profissionais bem-sucedidos que não passam pela universidade. Porém, dominar o conteúdo dos níveis fundamental e médio é imprescindível para que todos os cidadãos saiam do mesmo ponto de partida na vida adulta. Hoje, naturalmente, não é assim: estudantes de colégios particulares de elite largam várias posições na frente.
“Há décadas que se faz mobilização pela reforma agrária dentro das universidades. Mas nunca vi movimentação pela reforma da educação de base. Nunca vi uma campanha dentro das universidades pela eliminação do analfabetismo. Nós nos comportamos como se a educação começasse no dia seguinte ao vestibular, para quem passou.”
O Ciclo de Palestras sobre o ensino superior é a primeira iniciativa do NEAv aberta ao público. Outros seis palestrantes já participaram do ciclo, todos via videoconferência. As falas — que trataram do futuro e dos dilemas ensino superior de diferentes pontos de vista — ficaram registradas no canal oficial da Unesp no YouTube (acesse aqui). A participação de Buarque, a primeira apresentada no modo presencial, logo estará disponível, também em vídeo, no mesmo link. As datas das palestras futuras estão listadas no site oficial do NEAv.
