Assucena: uma obra de coragem, talento e respeito aos mestres da música brasileira

Baiana de Vitória da Conquista, cantora lembra o início da carreira compartilhada com os estudos na USP e o pioneirismo no Grammy Latino. Artista destaca ainda a influência de Gal Costa em sua obra e a responsabilidade de compor MPB

Assucena Halevi Assayag Santos Araújo, popularmente conhecida como Assucena, nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia. Apesar de não ser oriunda de uma família de artistas ou músicos, a baiana tinha dentro de si algo muito especial que a movia desde a infância. Tal magia a impulsionou a ser cantora e dona de uma das principais vozes da música contemporânea brasileira. “Meus pais são hiper desafinados, não tocam instrumento algum, mas amam música. Eles sempre tiveram discos em casa e eu amava ficar aos pés da vitrola. Eu nem sei como a música chegou. Faz parte da minha natureza de forma intrínseca”, conta. Entre as músicas que tocavam na vitrola da família estavam estrelas da Jovem Guarda, como Roberto e Erasmos Carlos, e composições do cancioneiro regional. 

Neste cenário de infância, Assucena diz não se lembrar exatamente quando começou a cantar, ainda assim, sabe muito bem do amor que nutre por esse ofício. “Desde os três ou quatro anos eu já cantava e as pessoas achavam bonito. Então acho que eu treinei meu ouvido naturalmente, porque antes de você cantar tem o treinamento do ouvido, tem o treinamento da percepção”, recorda. 

Assucena lembra de uma frase repetida constantemente pelo pai, de autoria de Padre Zezinho, que dizia que “há pessoas que têm vozes bonitas e não cantam bem, e há cantores que não tem vozes bonitas, mas cantam bem”. Para a artista, a relação com o canto não tem a ver com uma voz bonita, é sobre a natureza da escuta. “Creio que eu seja uma boa ouvinte. E por eu ter sido uma boa ouvinte desde criança que de algum modo fui conduzida naturalmente para esse lugar do canto”, diz.

Início da carreira entre o violão e os livros

Durante a adolescência, Assucena se mudou para São Paulo, onde cursou História na Universidade de São Paulo (USP). Apesar de a escolha não ter agradado muito aos pais, o curso abriu horizontes para o desenvolvimento de um pensamento crítico, da erudição e para a sua formação como artista e persona política. “O curso de História foi fundamental na minha trajetória e na produção da sujeita que eu sou hoje”, resume Assucena.

Foi a partir da convivência com colegas do curso que Assucena deu o “start” para a carreira artística. Ao lado do amigo Rafa, mineiro e violonista, a rotina de estudos na biblioteca passou a incorporar também a música. Um belo dia, a dupla resolveu organizar um sarau e foi então que osa estudantes começaram a se tornar artistas. “A galera do centro acadêmico falou ‘nossa, como você canta bem, porque vocês não montam um show aqui? Tá precisando disso, a gente só quer falar de política, mas estamos precisando de música, de arte'”, lembra. O que era uma dupla logo se tornou uma banda, com repertório recheado de brasilidades que incluía Elza Soares, Sandra de Sá, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Cazuza, Rita Lee, entre outros artistas consagrados da MPB. “Assim começou a surgir esse amor por essa banda, por esses encontros musicais e a música foi tomando conta da minha vida”.

Apesar de estar com aproximadamente 80% do curso de História completo e um mestrado em Goiânia já encaminhado, a vida decidiu lhe abrir outras portas.”Eu era uma boa aluna, mas a música é uma deusa egoísta e exigente que não aceita ser colocada em segundo plano. Então a gente teve que escolher a música”, brinca a artista.

Aquele grupo da faculdade se tornou As Bahias e em seguida mudou o nome para Cozinha Mineira. Ao lado de Raquel Virgínia e Rafael Acerbi, Assucena ganhou notoriedade. No período em que esteve na banda lançou os álbuns “Mulher” (Independente, 2015), “Bixa” (YB Music/ Pommelo, 2017), “Tarântula” (Universal Music, 2019) e “Enquanto estamos distantes” (Universal Music, 2020).

As dores e as delícias do pioneirismo

A artista recebeu indicações ao Grammy Latino em 2019 e em 2020. Inclusive, foi uma das primeiras cantoras trans a ser indicada para essa premiação. Além disso, ganhou duas vezes o Prêmio da Música Brasileira em 2018, ao lado do mesmo trio que a revelou. “Teve uma coisa muito forte de sermos as primeiras pessoas trans indicadas ao Grammy Latino. Embora a gente não seja pioneira nessa causa, a gente é pioneira em alguns pontos da causa trans. A gente só chegou nesse lugar de ser indicada ao Grammy porque veio muita gente antes de Assucena, antes de Liniker, de Raquel, de Linn da Quebrada. Mas teve esse pioneirismo, e todo pioneirismo tem um ônus”, aponta a artista baiana. “Não é tão legal ser a primeira. Ainda há uma certa desconfiança em torno da nossa arte, em torno da qualidade. Há muita dúvida em torno da gente, mesmo quando você é boa, quando você tem uma caneta boa, você tem um canto que convence, mas depois não convence tanto, te olham com desconfiança. Às vezes, as pessoas me perguntavam se era eu mesmo que tinha composto algumas canções”, diz.

Assucena lamenta a desconfiança, mas tem a certeza de que o tempo e sua obra vão provar o seu talento artístico aos mais desconfiados. “As pessoas vão começar a se esquecer de que eu sou uma cantora trans e vão me ver como uma artista apenas. Uma cantora. Mas eu sou uma pessoa trans e tudo isso é político também”, destaca. Para ela, a indicação ao Grammy é uma chancela importantíssima para quem vive de música, para quem constrói sua vida em torno da música. “Apesar das contradições, o mais importante para mim no Grammy é a chancela. Essa abertura de caminhos é um registro importante para o currículo”. 

Assucena manteve-se na banda até os anos de 2021, quando saiu para seguir carreira solo. Nesse mesmo ano, apresentou o show “Rio e também posso chorar – Fatal 50”, em comemoração aos 50 anos do disco “Fatal”, da própria Gal. Em 2022, lançou seu primeiro single solo e autoral “Partido alto”. Realizou também o show “Minha voz e eu”, acompanhada do violonista Rafael Acerbi, com músicas autorais e versões de músicas lançadas por Elis Regina e Gal Costa. Ainda em 2022 interpretou Medeia na peça teatral “Mata teu pai, ópera-balada”, uma adaptação de Grace Passô para a obra do poeta grego Eurípedes, com direção de Inez Viana. Com a peça, foi indicada ao Prêmio Shell de Teatro na categoria de “Melhor Atriz”. Em 2023 apresentou na casa de shows Manouche, no Rio de Janeiro, o show “Rio e também posso chorar – Um tributo a Gal Costa”, em companhia dos músicos: Rafael Acerbi (violão, guitarra e direção musical), Beatriz Lima (baixo) e Bianca Predieri (bateria e programações). Nesse mesmo ano lançou seu primeiro álbum solo, intitulado “Lusco-fusco”, com dez faixas autorais, dentre as quais os singles “Menino da pele cor de jambo”, “Nu” e “A última quem sabe”.

De perfil autoral, o álbum Lusco-Fusco mostrou uma identidade tropicalista de Assucena (Crédito: Divulgação)

“Esse término da banda foi algo muito meu. Na real, eu acho que a banda já tinha acabado há algum tempo, como alinhamento estético e artístico”, lamenta a cantora. Na entrevista ao podcast, Assucena explica o contexto para o término do grupo, apesar de a banda estar em franca ascensão comercial. “Eu tive que ter muita coragem também para sair desse imaginário, desse lugar. Havia uma série de oportunidades atraentes, mas abusiva também no sentido de eu estar amarrada com contratos junto a gravadora entre outras questões que não faziam mais parte da minha música e da minha pessoa”, afirma Assucena.

De perfil autoral, o álbum “Lusco-Fusco” deu ainda mais visibilidade para a carreira de Assucena, inclusive ampliando seu viés artístico. “Eu quis mostrar um pouco da compositora e eu trouxe essa identidade meio tropicalista, que eu pretendo não trazer nos próximos trabalhos, mas eu trouxe justamente por ser uma fase de transição”, diz. Segundo a artista, o próprio nome do disco remete a uma contradição ensimesmada. “Eu era muita coisa ali nesse lusco fusco, eu era uma cantora saindo de uma banda e indo para a carreira solo, numa transição para a carreira solo. Sou uma pessoa que passou por uma transição de gênero nesse mundo, que é uma das coisas mais complexas de se dizer, sou uma brasileira saindo de uma pandemia, de uma transição, de um estado de exceção no mundo para um estado de normalidade, de um Brasil que estava num lugar também de contradição profunda, de um desmonte político enorme, de uma perversidade na gestão de uma pandemia pelo então Presidente da República. Para mim, esse olhar do Brasil era de muitas contradições, eu falei “vamos colocar lusco fusco”, explica.

Atualmente, com uma carreira direcionada, Assucena reflete sobre sua carreira artística. “Eu acho que é uma obra de coragem, porque tem que ter muita coragem para ser da música brasileira, a gente está falando de uma das músicas mais sofisticadas do mundo”, afirma a cantora, citando ainda os inúmeros mestres da MPB. “Mas em algum momento a gente tem que tirá-los para ficar leve, para a gente poder respirar e trazer a novidade. Nesse sentido, vejo que a minha obra envolve coragem, ousadia, novidade e respeito pela história e tradição da música brasileira”.

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp: