Ainda nos anos 1990, estudiosos da Amazônia discutiam a possibilidade de que o desmatamento excessivo conduzisse o bioma a um ponto de não retorno, o que poderia comprometer a continuidade da floresta tropical tal como a conhecemos. Mas aquilo que já foi um debate largamente teórico tornou-se hoje uma questão urgente e desafiadora, num contexto em que os efeitos do desmatamento são turbinados pelas rápidas e intensas mudanças climáticas globais.
O pilar central do conceito de ponto de não retorno estipula que se os níveis de desmatamento e degradação da Amazônia atingirem certos patamares, a floresta perderá a capacidade de se sustentar, independentemente de quaisquer iniciativas posteriores no sentido de mitigar a perda de cobertura vegetal. Essa autodegradação poderia transformar vastas áreas da floresta tropical em áreas pobres em biodiversidade, o que traria implicações devastadoras não apenas para a região, mas também para o clima global. Para esboçar um quadro do aspecto que teria essa Amazônia sem a floresta, algumas pessoas recorrem ao termo savana. Mas não é uma descrição lá muito precisa: uma Amazônia sem floresta se mostraria muito mais pobre, tanto em termos de fauna quanto de flora, do que uma savana.
Uma das principais descobertas que fundamentam a preocupação com a possibilidade de que ponto de não retorno esteja se aproximando é a relação entre o desmatamento e a extensão da estação seca no sul da Amazônia. Nesta região concentra-se boa parte do chamado Arco do Desmatamento. Este nome foi proposto pelo movimento ambientalista, e se tornou internacionalmente reconhecido, para identificar um vasto segmento do bioma amazônico onde a devastação avança em ritmo mais acelerado há décadas
Estudos pioneiros indicaram que o desmatamento contínuo pode prolongar a duração da estação seca para além dos quatro meses habituais. Essa jornada estendida poderia inviabilizar a possibilidade de que a floresta tropical sobreviva às duras condições do período seco.
E, segundo o cientista Carlos Nobre, um dos maiores climatologistas brasileiros, que se dedica a estudar a resiliência amazônica há 30 anos, esse quadro já está acontecendo. “Atualmente, a estação seca em algumas regiões da Amazônia aumentou em até cinco semanas. Se esse prolongamento continuar, a floresta não sobreviverá a secas que duram mais de seis meses”, diz ele.
Os dados científicos recentes, gerados a partir de pesquisas conduzidas em diversas áreas do bioma, delimitam um cenário ainda mais perigoso, porque a combinação de desmatamento e aquecimento global exacerba os problemas.
O desmatamento afetou cerca de 18% da área da floresta. Quando se somas também as áreas degradadas já afetou um pouco mais de 20% da área do bioma. Os estudos multidisciplinares mostram que, se o desmatamento alcançar 25% da área, e o aquecimento global ultrapassar a média global em 2°C, grande parte da floresta entrará no ciclo de autodestruição. Se estas condições se verificarem, as previsões apontam para o ponto de não retorno sendo alcançado até 2050, ou seja, em menos de 30 anos.
E as pesquisas sugerem que os efeitos extremamente danosos não se limitarão apenas à Amazônia, espalhando-se por toda a América do Sul, como um efeito dominó. Em especial, por meio da interrupção do fenômeno conhecido como “rios voadores” — os fluxos de vapor d’água que circulam da Amazônia para outras regiões do continente. A floresta, nas regiões onde ainda está preservada em sua exuberância, funciona como uma bomba d’água ativa, que exala umidade para a atmosfera. Esses grandes canais aéreos de vapor são responsáveis por levar umidade para o Cerrado e a Mata Atlântica. O impacto chega ao sudeste do Brasil e partes da Argentina, do Paraguai e do Uruguai.
Sem essa umidade, os demais biomas do continente se tornarão mais secos, enfrentando estações sem períodos de chuvas prolongadas e temperaturas mais altas. Essas alterações colocariam sob ameaça não apenas a biodiversidade do país como também sua agricultura. Todo o agronegócio brasileiro, concentrado no Cerrado, estaria, portanto, sob risco.
Perda de biodiversidade já é alarmante
Quando a análise passa do ponto de vista macro para processos mais regionais, é como se a tese do ponto de não retorno ganhasse ainda mais nitidez.
“Os estudos que estamos desenvolvendo com ecologia dos peixes de igarapés não são muito animadores, pois têm apontado, de maneira geral, para a perda da biodiversidade desses ambientes”, afirma o ecólogo Gabriel Lourenço Brejão, professor do Departamento de Biodiversidade do Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro.
Em Rondônia, onde o grupo realiza as suas pesquisas, região onde o desmatamento e a degradação da maior floresta tropical do planeta é alto, a situação é classificada como “alarmante” pelo cientista da Unesp, por causa da perda de condições climáticas adequadas para a manutenção da biodiversidade aquática.
Brejão cita um estudo da International Union for Conservation of Nature, uma das mais reputadas ONGs ambientalistas, divulgado em 2023, que mostrou que um quarto das espécies de peixes de água doce do mundo estão ameaçados de extinção, principalmente devido às mudanças climáticas, à pesca excessiva e à poluição. “Esse cenário é mais grave se pensarmos que as áreas protegidas e unidades de conservação não protegem adequadamente os ecossistemas aquáticos. Em um contexto de mudanças climáticas, a previsão é que 2% das espécies de peixes da Amazônia sejam extintas e cerca de 34% delas sejam afetadas de diferentes maneiras, em um cenário em que as áreas protegidas preservam por volta de 60% da área de distribuição dos peixes no bioma”, explica o pesquisador, apoiado também em dados de outros trabalhos.
No caso particular de Rondônia, os pesquisadores da Unesp estimam que as mudanças nos ecossistemas aquáticos vão afetar tanto espécies que são muito sensíveis ao desmatamento quanto aquelas que suportam esse tipo de impacto, sendo até beneficiadas por ele.
“Nos dois últimos anos, em que testemunhamos secas severas na Amazônia, já registramos impactos profundos sobre a biodiversidade aquática. Além disso, a própria malha de estradas acaba fragmentando a hidrografia e dificultando o deslocamento das espécies de peixes entre as diferentes manchas florestais”, analisa Brejão. O que mostra que, para além da questão climática, a ação direta do homem sobre o bioma também tem deixado marcas bastante negativas.
Como evitar o ponto de não retorno
Embora as previsões e cenários problemáticos sejam abundantes, a boa notícia é que há também alguns estudos científicos que sugerem que é possível impedir que o bioma afunde no buraco negro do ponto de não retorno. E essa perspectiva otimista é reforçada por iniciativas e projetos socioambientais já em andamento, que procuram manter a floresta em pé e gerar renda para os moradores da região.
Uma das possibilidades mais promissoras para reverter esse cenário, diz o climatologista Carlos Nobre, é o plano conhecido como “Arco da Restauração”, nome que indica o desejo de reverter o estrago feito no Arco do Desmatamento.
O plano foi anunciado durante a COP28, no ano passado em Dubai, será liderado pelo Brasil e visa restaurar, empregando recursos do BNDES, 240 mil km² de floresta até 2050, começando com 60 mil km² até 2030. O financiamento incluirá também recursos do Fundo Amazônia e do Fundo Clima, com R$ 550 milhões voltados para pecuaristas e pequenos agricultores. Os objetivos de longo prazo serão reverter os danos causados pelo desmatamento, reduzir a duração da estação seca e estimular uma nova economia sustentável baseada na floresta. Tais objetivos são realizáveis, ele diz, desde que a iniciativa ganhe a escala necessária.
Em paralelo, e essa é a grande menina dos olhos de alguns cientistas que buscam soluções para a Amazônia, inclusive de Carlos Nobre, quem começa a ganhar tração é o programa Amazônia 4.0. A meta é capacitar comunidades locais para produzir e comercializar produtos da biodiversidade, como cacau, cupuaçu e castanha. “Em Santarém, uma biofábrica apoiada pelo grupo Carrefour está sendo construída para produzir chocolate de cupuaçu, beneficiando entre 80 e 120 famílias”, explica Nobre.
Além disso, está em desenvolvimento um Instituto de Tecnologia da Amazônia, nos moldes do ITA, para impulsionar a pesquisa e inovação sustentável na região, com apoio de Brasil, Colômbia e Peru. O instituto será focado em áreas como biodiversidade, sistemas fluviais e restauração de áreas degradadas. O lançamento está previsto para a COP 30, no final de 2025, junto com cinco polos de inovação destinados a criar startups voltadas para essa nova socioeconomia da floresta em pé.
O manejo do pirarucu no médio Juruá e a plantação de café orgânico no Sul do Amazonas também são exemplos de como comunidades, cientistas e profissionais de várias áreas podem trabalhar de forma integrada em busca da preservação e geração de riqueza. No caso do município de Apuí, a pressão da expansão da agropecuária, com o desmatamento ligado ao gado e ao cultivo de soja, é uma realidade. No entanto, produtores locais estão tendo a chance de trabalhar com uma alternativa sustentável para a região, a partir de um projeto de produção de café orgânico. Com um aporte de R$ 11 milhões, o projeto-piloto, que envolvia cerca de 50 famílias, agora inclui 250 produtores.
A iniciativa, liderada pela ONG Idesam, busca integrar a produção de café à preservação ambiental, cultivando o grão próximo à floresta, o que melhora a ciclagem de nutrientes no solo e reduz a necessidade de adubos. A expectativa é aumentar a produção em 5.000%, de 231 para 12 mil sacas de café, e expandir a área cultivada para mais de 600 hectares em dez anos. O café orgânico de Apuí já está sendo comercializado, com potencial de conquistar mercados internacionais. Além dos benefícios econômicos, o projeto visa a recuperação de áreas degradadas e a mitigação das emissões de carbono por meio do reflorestamento e da conservação ambiental.
O mesmo raciocínio é empregado no manejo do pirarucu, no interior do Amazonas. Uma das vitórias dos últimos anos da Associação de Produtores Rurais de Carauari (Asproc) é a abertura de um frigorífico na região de Manaus. A ideia dos associados, que estruturam a cadeia de produção há mais de uma década, sempre foi driblar os atravessadores. Por isso, todo o peixe pescado hoje é processado por parceiros, mas as receitas das vendas vão diretamente para os membros da associação, que fazem a divisão dos valores de acordo com as regras de cada comunidade.
Se a possibilidade de aumento de renda tem feito com que milhares de pessoas – mais de 2 mil segundo números oficiais da associação – aderissem ao manejo, isso não significa que o estoque pesqueiro do médio Juruá esteja em queda, muito pelo contrário. O número de famílias envolvidas com a pesca tem aumentado a uma taxa de 50% por ano. Isso porque o manejo, com regras definidas com base na ciência, controla o estoque de peixe de cada lago, ano a ano. Nos anos 1990, o pirarucu quase sumiu das águas amazônicas.
“Não temos tempo a perder. Mas, no caso dos peixes dos igarapés que nós estudamos, se a definição de áreas protegidas for repensada, e começar a ser feita para que os ecossistemas aquáticos e terrestres sejam vistos da maneira integrada, como de fato são, a proteção da biodiversidade aquática pode ser beneficiada em até 600% com perdas menores que 1% na proteção da biodiversidade terrestre”, avalia Brejão, ecólogo da Unesp.
Da forma como é feita hoje, explica o cientista, com foco na proteção dos ecossistemas terrestres, apenas 22% da biodiversidade aquática está sendo efetivamente protegida. “Além disso é urgente que se contenha a degradação das florestas remanescentes no bioma e seja feito um planejamento para priorizar a restauração e recuperação das florestas ripárias (ou matas ciliares), reconectando a floresta e facilitando o deslocamento de fauna terrestre. Para os peixes, essa recuperação florestal e reconexão dos fragmentos pode conter o processo de perda de diversidade a que estamos assistindo em tempo real”, diz o professor do IB de Rio Claro.
O climatologista Carlos Nobre, outro que deixou de se restringir a elaborar diagnósticos para os grandes problemas da Amazônia e partiu para o encaminhamento de soluções, também não jogou a toalha. “Ao tomarmos medidas de governança e que envolvem as comunidades locais, podemos evitar o pior cenário e garantir que a Amazônia continue desempenhando seu papel vital no equilíbrio climático global e na manutenção da biodiversidade”, afirma o pesquisador.