Os biólogos Victor Ambros, da Universidade de Massachusetts, e Gary Ruvkun, da Universidade Harvard, ambos norte-americanos, foram os laureados do Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2024. A dupla recebeu o reconhecimento pela “descoberta dos microRNAs e seu papel na regulação gênica pós-transcricional”. De maneira geral, os pesquisadores foram responsáveis por identificar uma família de moléculas, denominadas microRNAs, que atuam em mecanismos importantes de regulação da expressão gênica, contribuindo para o entendimento dos mecanismos de ativação e desativação dos genes nas células.
Desde cedo aprendemos que os cromossomos, presentes nas células, são responsáveis por abrigar os genes, que contêm todas as instruções para o funcionamento celular. No entanto, embora em cada célula esteja presente o mesmo conjunto de genes, o que as dota com um mesmo “pacote de instruções”, elas podem se especializar em funções muito diferentes, tornando-se, por exemplo, células musculares ou nervosas. A regulação gênica é, justamente, um dos mecanismos que permite a existência dos diferentes tipos de células. É por meio desse processo que cada célula é capaz de selecionar especificamente quais instruções são úteis para ela, o que irá assegurar que apenas os grupos de genes corretos sejam ativados.
A dupla laureada se debruçou sobre essa questão, buscando maneiras de explicar os diferentes aspectos envolvidos na especialização e nas diferentes funções das células. Foi em meio a intensas pesquisas que Ambros e Ruvkun descobriram os microRNAs, ou miRNAs, que, como o próprio nome indica, são pequenas moléculas de RNA.
“Os microRNAs são responsáveis por controlar a expressão dos genes e por isso sua descoberta foi tão importante”, afirma a pesquisadora Patricia Pintor dos Reis, da Faculdade de Medicina da Unesp, campus Botucatu. A docente explica que o papel dos microRNAs está em controlar a quantidade de proteínas que as células produzem, mecanismo essencial para que cada célula desempenhe um papel específico.
Nas células animais, o DNA contém as informações que determinam as características de produção de proteínas, responsáveis por definir a forma e o funcionamento da célula. Para que esse processo de produção ocorra, parte dos genes do DNA são copiados por uma molécula chamada mRNA, ou RNA mensageiro, que irá levar a informação até o citoplasma celular. Dessa forma, dependendo das informações transcritas pelo mRNA, são produzidos tipos diferentes de proteínas, garantindo a especificidade de cada célula. Entretanto, outro fator essencial nesse processo é o controle da quantidade de proteínas produzidas, função desempenhada pelos microRNAs.
“Esses pequenos RNAs atuam regulando os genes por um processo chamado regulação pós-transcricional. Isso significa que, após a produção do RNA mensageiro (mRNA), que carrega as instruções genéticas para a fabricação de proteínas, os miRNAs interferem nesse estágio, modulando o processo de tradução do mRNA. Com isso, eles controlam a quantidade de proteína que a célula efetivamente produz”, explica Reis.
Para além do entendimento sobre o funcionamento de células, essa descoberta também permitiu expandir a compreensão de determinadas doenças, visto que alterações no funcionamento dos miRNAs podem levar ao desenvolvimento de enfermidades como câncer, diabetes e doenças cardiovasculares e neurodegenerativas, entre outras. Nessa linha, cientistas no mundo inteiro também vêm se dedicando a explorar o potencial dos microRNAs na busca por novos tratamentos médicos. “O uso de miRNAs como alvos terapêuticos vem crescendo, com pesquisas focadas em manipular sua atividade para modular processos biológicos, como o crescimento de tumores ou de inflamação”, relata Reis.
Tudo começou com um verme
O mergulho da dupla sobre o funcionamento de células teve início no final da década de 1980, quando ambos realizavam pós-doutorado no laboratório de Robert Horvitz, vencedor do Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2002. A dupla tinha como objeto de estudo um pequeno verme chamado Caenorhabditis elegans. Apesar de medir apenas 1 milímetro de comprimento, o estranho animal conta com um grande número de células especializadas, o que o tornou um importante objeto de estudo na busca da compreensão sobre como as células se desenvolvem e funcionam.
Ambros e Ruvkun estavam interessados em dois genes específicos, chamados lin-4 e lin-14 que apresentavam uma interação curiosa: quando o gene lin-14 era ativado, uma proteína lin-14 era produzida; entretanto, quando o gene lin-4 era ativado, ele reduzia a produção de proteína lin-14. Observando as interações entre esses dois genes específicos, a dupla identificou que havia algum processo que fazia com que o lin-4 funcionasse como um bloqueador do gene lin-14. Entretanto, a natureza exata do mecanismo por trás desse funcionamento era um mistério que perdurou por vários anos.
Apenas em 1993, de maneira independente, Ambros descobriu que o gene lin-4 produzia um pequeno pedaço de RNA que, ao contrário do que acontece normalmente, não era transformado em proteína. Já Ruvkun mostrou que o gene lin-14 continuava a produzir seu RNA, mas esse RNA não era transformado em proteína. Juntos, eles perceberam que o pequeno RNA de lin-4 tinha uma função especial: ele se encaixava perfeitamente em uma parte do mRNA do gene lin-14, como duas peças de quebra-cabeça. Quando o RNA de lin-4 se ligava ao mRNA de lin-14, ele bloqueava o processo que normalmente transformaria o mRNA de lin-14 em proteína, “desligando” o gene.
“Em 1993, a comunidade científica pensou que essa seria uma peculiaridade específica desse pequeno verme. Hoje, já identificamos milhares de microRNAs em diferentes organismos”, afirmou Olle Kämpe, membro do Comitê do Nobel de Fisiologia ou Medicina. O primeiro salto, do verme para o reino animal como um todo, foi dado também por Ruvkun. Nos anos 2000, o biólogo publicou a descoberta de um microRNA produzido por um gene chamado let-7. A importância dessa descoberta é que, ao contrário do lin-4, exclusivo do C. elegans, o let-7 é um gene presente em todos os representantes do reino animal, o que serviu para evidenciar que a descoberta da década anterior era de um impacto maior do que o imaginado inicialmente.
Os microRNAs e o câncer
“A descoberta seminal de Ambros e Ruvkun no pequeno verme C. elegans foi inesperada e revelou uma nova dimensão na regulação dos genes, essencial para todas as formas de vida complexas”, afirmou o comitê responsável pela láurea. O achado permitiu que pesquisadores tivessem uma maior compreensão sobre o funcionamento das células e, por consequência, abriu novas portas para pesquisas sobre doenças causadas por alterações ou por um mau funcionamento desses componentes, como é o caso dos vários tipos de câncer.
Basicamente, o câncer ocorre quando há um crescimento desordenado de várias células. Isso ocorre porque células cancerosas apresentam um funcionamento anormal dos microRNAs, o que leva a sua proliferação descontrolada, evitando os sinais que normalmente inibiriam seu crescimento, resistindo à morte celular e se espalhando para outras partes do corpo. Entretanto, acredita-se que pode ser possível regular ou controlar o funcionamento dos microRNAs para prevenir que esse tipo de comportamento celular ocorra. Essa ainda é uma hipótese a ser investigada, que tem levado pesquisadores do mundo inteiro a olharem para essas pequenas moléculas com atenção redobrada. “Infelizmente, ainda não existem aplicações dessa tecnologia”, afirma Kämpe. Ele ressalta que as investigações em andamento ainda estão em fase exploratória, testando caminhos que possam, eventualmente, redundar em novas terapias e tratamentos.
“Apesar dos avanços significativos na pesquisa com miRNAs, ainda há desafios, como a validação experimental dos genes-alvo regulados por essas moléculas”, diz Reis. Segundo a pesquisadora, um dos principais entraves na pesquisa com essas moléculas está na complexidade de interações que elas podem apresentar, que variam de acordo com as células e organismos envolvidos. “Outro desafio importante é a variabilidade na expressão de miRNAs entre diferentes pacientes e tecidos, o que dificulta a padronização de diagnósticos e tratamentos”, afirma a pesquisadora. Apesar disso, Reis destaca o potencial dos miRNAs serem utilizados como biomarcadores, já que alterações na expressão dessas moléculas podem ser úteis nos diagnósticos de câncer, doenças cardiovasculares e distúrbios neurodegenerativos.
Essa é a terceira vez que pesquisas com RNA são reconhecidas na láurea sueca. No ano passado, o prêmio foi para Katalin Karikó e Drew Weissman por seu trabalho com vacinas de mRNA durante a pandemia de Covid-19. Já, em 2006, Andrew Fire e Craig Mello receberam o reconhecimento pela descoberta de RNA interferente. Nesta semana ainda conheceremos os laureados de Física (8), de Química (9), Literatura (10) e Paz (11), encerrando a série de anúncios na próxima segunda (14) com o Nobel de Economia. A cerimônia de entrega dos prêmios será realizada no dia 10 de dezembro.
Ilustração de Victor Ambros (esquerda) e Gary Ruvkun (direita). Crédito: Ill. Niklas Elmehed © Nobel Prize Outreach