No ambiente extremamente competitivo do esporte de alto rendimento, treinadores e técnicos são forçados a dedicar muita atenção a cada detalhe da preparação do atleta, para que seja possível pelo menos sonhar com um lugar no pódio. E um dos elementos que merece muito cuidado é a qualidade do sono. Uma boa noite de sono beneficia diversos fatores biológicos, incluindo a recuperação e o crescimento dos músculos, a redução de lesões, o equilíbrio hormonal e até a cognição. O sono dos atletas de alta performance é um dos temas de pesquisa do professor de educação física João Paulo Pereira Rosa. Graças aos seus estudos, ele foi chamado para conversar com equipes de atletas paralímpicos brasileiros, inclusive contribuindo para a sua preparação antes de grandes competições, como os Jogos de Londres-2012 e Rio-2016.
No caso do esporte paralímpico, o assunto é ainda mais delicado. “Atletas de alto rendimento dormem mal de forma geral, mas atletas paralímpicos dormem ainda pior”, diz Pereira Rosa, que é docente do Departamento de Educação Física do Instituto de Biociências da Unesp, no campus de Rio Claro. As maiores dificuldades neste caso não estão ligadas à higiene do sono, o nome dado ao conjunto de hábitos que podem ajudar a melhorar a qualidade do período de repouso noturno do indivíduo. A observação mostra que as noites mal dormidas podem ter relação com dores crônicas que, muitas vezes, estão presentes no cotidiano dos paratletas. E também não é incomum que lesões medulares demandem cuidados ao longo da noite, resultando em um sono fragmentado e, consequentemente, de pior qualidade.
Outro elemento que contribui para gerar alterações no sono de atletas, paralímpicos ou não, são os níveis de determinados hormônios que regulam nosso organismo. Esse aspecto foi investigado durante a tese de doutorado de Pereira Rosa, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Esporte da UFMG. A pesquisa focou especificamente as concentrações de dois hormônios, a testosterona e o cortisol, e analisou sua associação com alguns parâmetros psicológicos, como motivação, humor, ansiedade, recuperação do treinamento e também a qualidade do sono.
O cortisol é popularmente conhecido como o “hormônio do estresse”. Entre suas diversas funções está a de liberar energia para que o organismo possa lidar com situações adversas ou de perigo, e também colabora na regulação do ciclo circadiano. A testosterona, por sua vez, tem papel importante no desenvolvimento muscular e ósseo, mas também influencia no comportamento socioemocional e na tomada de decisão. “Alguns estudos mostram relação entre testosterona e agressividade. Então, do ponto de vista da disputa de uma prova, é preciso que haja uma curva ótima desses hormônios para que seja possível gerenciar essa competitividade de forma que seja positiva para o atleta”, diz.
Natação, rugby, atletismo e basquete
Ao longo da investigação, Pereira Rosa acompanhou onze atletas brasileiros da natação paralímpica em três momentos do ano anterior aos Jogos Paralímpicos de 2016: no início do ciclo de treinamento, na metade do ciclo, e dias antes da competição. Nestas avaliações, o pesquisador recolheu amostras de saliva para obter dados objetivos dos competidores, como os níveis hormonais e o grau de recuperação pós-treinamento. Ao mesmo tempo, foram aplicados questionários validados cientificamente para analisar questões subjetivas, como ansiedade, qualidade do sono ou motivação intrínseca. “Entendemos que o corpo é um sistema biológico dinâmico, em que existe uma interação entre as questões hormonais e os aspectos psicobiológicos, tendo como pano de fundo o esporte”, diz ele.
O monitoramento dos aspectos psicobiológicos é valorizado na ciência do esporte, uma vez que a incapacidade do atleta de se recuperar de um treinamento de alta intensidade pode resultar em maior estresse não apenas físico, mas também psicológico e social. Os estudos produzidos pelo professor da Unesp e seus colegas na UFMG apontam para um conjunto complexo de interações entre fatores psicológicos, biológicos e ambientais que podem afetar o desempenho desses atletas.
E, nos casos em que há possibilidade, eles propõem intervenções multidisciplinares capazes de minimizar seus impactos negativos. Estes estudos mostram, por exemplo, que atletas paralímpicos apresentam, no geral, alto grau de motivação intrínseca. Isso pode ser atribuído ao seu histórico pessoal de superação de adversidades e de barreiras físicas, mas também sociais. Já no aspecto dos níveis hormonais, ou de estresse e ansiedade auferidos durante o ano, as medições dos atletas paralímpicos não diferiram significativamente daquelas feitas em atletas sem deficiência.
Os resultados que ele levantou sobre a qualidade do sono dos atletas paralímpicos e a expertise do laboratório em que atuava na universidade mineira nesta temática chamaram a atenção do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), que recomendou o grupo para outras delegações. A reputação abriu portas para que atletas de outras modalidades recebessem avaliações sobre o sono e demais aspectos psicobiológicos, o que resultou em uma série de artigos que tiveram como objeto de estudo equipe nacional de rugby em cadeira de rodas, de atletismo e de basquete em cadeira de rodas, entre outras.
Em contrapartida, Pereira Rosa colaborou ministrando uma série de palestras para atletas paralímpicos sobre distúrbios e higiene do sono organizada pela Academia Paralímpica Brasileira, um braço do CPB que atua no fomento e no desenvolvimento das áreas de educação e formação, e na produção científica e tecnológica para o esporte paralímpico. “A grande maioria dos esportistas tinha questões simples. Elas foram resolvidas com o simples entendimento de como se preparar adequadamente para o momento de dormir. Porém, alguns tinham distúrbios do sono mais sérios, como a apneia, que só foram detectados por meio dos testes que realizamos em parceria com o CPB”, diz.
Atletas beneficiados disputaram Londres-2012 e Rio-2016
Como resultado das palestras e do diálogo, boa parte dos atletas adotou as orientações. No período entre os Jogos de Londres-2012, quando a parceria começou, e a Rio-2016, observou-se uma melhora na qualidade do sono dos esportistas. “Infelizmente não foi possível publicar esses resultados porque alguns atletas que participaram de uma edição dos jogos não se classificaram para a seguinte. Então, estaríamos comparando atletas diferentes. Mas observamos competidores que, depois do tratamento e das orientações, passaram a dormir melhor e tiveram avanços em algumas de suas variáveis de desempenho, como o humor.”
Atraindo cada vez mais atletas, espectadores e audiência mundial, os Jogos Paralímpicos se inseriram hoje entre os principais eventos esportivos da atualidade. Ainda assim, as pesquisas envolvendo paratletas de alto rendimento ainda são incipientes. Pereira Rosa diz que um dos motivos para esse quadro relaciona-se às dificuldades metodológicas. “Não acho que seja algo impeditivo, mas estamos falando de adaptações e questões éticas e metodológicas que podem gerar dificuldades em algum momento e desestimular a atuação de mais pesquisadores nessa temática”, lamenta o docente, que também observa pouco interesse dos alunos de educação física pela atividade esportiva adaptada.
E também há quem imagine que a educação física adaptada é algo muito complexo ou menos relevante. Esse ponto de vista, que leva alguns alunos a pensar que não teriam muitas oportunidades de colocar o conhecimento que adquiriram em prática, é equivocado, diz o docente. “A realidade é o oposto. Estudos apontam que quando a oportunidade de trabalhar nessa área aparece, cerca de 60% dos profissionais não se sentem preparados para prescrever ou delinear o treinamento físico para diferentes tipos de deficiência” diz o docente. “ E isso também impacta a pesquisa.”
Atuando na Unesp há um ano, Pereira Rosa João Paulo pretende dar continuidade às pesquisas sobre atividade física adaptada. O plano é a princípio focar nos indivíduos comuns, e aos poucos incluir também os grupos de alto rendimento. Nesse sentido, uma das áreas que o professor já está explorando é a interface entre atividade física e a tecnologia, por meio dos exergames. Esse é o nome que alguns pesquisadores usam para denominar uma nova geração de videogames dotados de sensores de movimento, e que demandam maior esforço físico do que os aparelhos tradicionais. Embora já exista uma quantidade expressiva de literatura tratando dos exergames, poucos estudos se debruçaram sobre os seus efeitos nas pessoas com deficiência. “Entendo que uma das minhas missões como professor da Unesp é oferecer aos alunos uma visão do campo que desperte neles o interesse pela área da educação física adaptada”, diz.
Imagem acima: equipe brasileira de 4×100 disputando a prova durante a Rio-2016. Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil.