Desde que ocorreram as mais recentes eleições presidenciais na Venezuela, em 28 de julho, o país vive um quadro que combina intensa tensão política e enfrentamento institucional. Nesta segunda-feira, 5/8, o presidente do CNE (Conselho Nacional Eleitoral) da Venezuela, Elvis Amoroso, informou ter entregado as atas relativas a à votação ao Tribunal Supremo de Justiça, (TSJ), o órgão máximo do judiciário nacional.
Tanto o CNE quanto o TSJ são alinhados ao governo do presidente Nicolás Maduro (Partido Socialista Unido da Venezuela). No dia 2/8, mesmo sem dispor da totalidade destas atas, o órgão eleitoral confirmou a reeleição de Maduro, com supostos 51,95% dos votos. Porém, o Conselho até agora não havia divulgado as atas, o que era uma exigência do processo eleitoral, e também uma demanda do Brasil e de outras nações para reconhecerem a vitória de Maduro. A oposição contesta o resultado e afirma que o vencedor do pleito foi Edmundo González Urrutia (Plataforma Unitária Democrática).
O TSJ solicitou ao CNE a entrega da ata de escrutínio das mesas eleitorais de toda a nação, da ata de totalização final do processo eleitoral, da ata de julgamento e da proclamação das eleições. A presidente do TSJ, Caryslia Rodríguez, confirmou a entrega do material. Disse que o tribunal vai investigar acusações de fraude. A apuração poderá durar até 15 dias.
Edmundo González e outros três candidatos da oposição que participaram das eleições de 28 de julho foram convocados a comparecer perante o tribunal na 4ª feira (7/8). A sessão com Maduro foi marcada para 6ª feira (9/8). Segundo a corte, o objetivo é “a consolidação de todos os instrumentos eleitorais que se encontram em posse dos partidos políticos e dos candidatos”. Os citados “deverão entregar a informação requerida e responder às perguntas”.
Neste início de semana, Edmundo González divulgou uma carta em que, na prática, também se proclama como vencedor do pleito e pede o apoio dos militares para encerrar o conflito. Os EUA já se posicionaram no sentido de reconhecer Edmundo González como vencedor do pleito atual, mas não o consideram presidente da Venezuela. A União Europeia também não reconheceu os resultados proclamados das eleições venezuelanas. Em comunicado, o bloco disse que aceita a veracidade das atas publicadas pela oposição liderada por María Corina Machado, ratificando que o candidato opositor Edmundo González Urrutia parece ser o vencedor por uma maioria significativa.
O governo Lula até agora não reconheceu oficialmente o resultado proclamado pelo CNE, e condicionou este reconhecimento a uma apresentação da documentação eleitoral.
Carolina Silva Pedroso, pesquisadora do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp e pós-graduada pelo programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Thiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), analisa o conflito que engoliu o processo eleitoral na Venezuela, e também aborda as divisões que surgiram entre os grupos de esquerda e até mesmo dentro do governo brasileiro.
Pedroso explica que este pleito, em particular, atraía muita atenção porque, pela primeira vez desde que o Chavismo chegou ao poder na Venezuela, 25 anos atrás, parecia haver condições concretas para uma vitória da oposição. Como preparação para uma eleição tão importante, governo e oposição haviam inclusive se encontrado em um outro país, Barbados, para acordar o calendário eleitoral e as condições em que a campanha aconteceria. Entre os pontos estipulados estavam a de uma atitude de respeito mútuo e de cordialidade durante a campanha. “O fato de que foi preciso fazer estas definições em um encontro no exterior, ao longo desse primeiro semestre de 2024, era na verdade, era a ponta do iceberg de uma situação muito mais complexa e de enorme disparidade”, analisa ela.
Para além de uma rivalidade política, governo e oposição enfrentam profundas divergências quanto aos projetos que sustentam para o país. “E eu diria que são projetos mutuamente excludentes de país. Essa divisão profunda da sociedade venezuelana ficou muito evidente durante a campanha eleitoral. E a própria oposição teve que lidar com suas próprias rivalidades para conseguir se organizar atrás de uma candidatura fortalecida e única.
O dia da eleição, embora bastante tenso, foi relativamente tranquilo, e o processo foi acompanhado por uns poucos observadores internacionais. “O problema foi exatamente o fechamento das urnas. Após essa etapa, houve um problema na transmissão dos dados, dos votos dos centros de votação para o Conselho Nacional Eleitoral, que é esse centro que é esse poder, na verdade constitucional, independente, que organiza as eleições no país”, diz.
O CNE alega que passou por um processo de ataque hacker de cunho terrorista. A oposição, por sua vez, diz que, no momento da transmissão dos dados, muitos dos seus observadores e testemunhas partidárias não puderam estar presentes para verificar se o processo estava acontecendo da maneira como consta no regulamento eleitoral do país.
“Então nós não temos certeza quanto ao número exato de pessoas que foram votar. A oposição alega um determinado número. O governo alega que determinado número mais do que dá para saber que foi em torno de mais ou -60% do universo total de pessoas que estavam aptas para votar. E a grande questão não é nem só quantas pessoas foram votar, mas sim quantos votos cada candidato obteve”, diz.
Na contagem oficial do Conselho Nacional Eleitoral, Nicolás Maduro teria recebido pouco mais de 5 milhões de votos, enquanto o seu adversário mais direto, Edmundo González, teria tido cerca de 4.400.000 votos. Porém, a oposição diz ter tido acesso a parte da documentação oficial das urnas eletrônicas e que, na verdade, Edmundo González foi o vencedor. O Conselho Nacional Eleitoral, até o presente momento, ainda não apresentou essas atas, todas na sua totalidade e separadas por centro eleitoral, que comprovariam aquele total que foi divulgado como resultado oficial. “Em linhas gerais, esse é o cenário da Venezuela hoje.”
Posicionamento brasileiro reflete divisões entre diferentes correntes
Ela explica que a posição do governo Lula diante da crise é fruto de diversos fatores. Pedroso lembra que o padrão histórico da diplomacia brasileira, que remonta ainda ao Barão do rio Branco, é de não interferência em assuntos domésticos de outros países, e mais ainda no que diz respeito a nações vizinhas. Por outro lado, as relações entre a esquerda brasileira e o governo da Venezuela remontam há décadas. N entanto, o governo Lula é o resultado de uma frente ampla eleitoral, e abriga diferentes pontos de vista.
“Dentro do próprio governo Lula, há visões bastante conflitantes sobre o que a Venezuela representa. A ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, por exemplo, uma liderança que foi essencial para a vitória do Lula em 2022, declarou que não considera a Venezuela uma democracia. O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, também tem as suas críticas ao regime de Maduro. Por outro lado, o partido do presidente Lula, o PT, soltou uma nota reconhecendo o processo eleitoral como sendo legítimo, como sendo confiável, enviou seus próprios observadores para esse pleito. Então, o governo fica numa encruzilhada em relação a esses apoios internos e também às próprias críticas internas”, diz.
E a escalada e a duração da crise terminam por trabalhar contra as pretensões diplomáticas do Brasil na esfera global. O governo atual procura projetar o Brasil como um ator ativo na construção de uma nova ordem internacional multipolar. E o caso da Venezuela coloca em xeque a capacidade de que o país possa efetivamente desempenhar este papel.“Se trata de uma situação de instabilidade, de violência que está aqui na nossa fronteira. Então, falando de maneira muito simplificada: como é que o Brasil quer dar pitaco na guerra da Ucrânia se ele não consegue resolver um imbróglio aqui no seu entorno regional mais imediato? Essa postura do Brasil mais cuidadosa, mais cautelosa se explica por todos esses fatores”, diz.
Defesa da democracia x perspectiva geopolítica
O posicionamento de nomes como marina Silva e Randolfe Rodrigues reflete a profunda divisão que a Venezuela ocasiona dentro de correntes que, em outros momentos, conseguem atuar lado a lado nas disputas políticas.
“As eleições de 2022 trouxeram lições importantes, principalmente no que se refere à possibilidade de chegar ao poder pela via institucional. Isso requer possibilidades de conciliação, de formação de frentes amplas que tenham um mínimo denominador comum. E houve uma pauta importante na eleição de 2022, que foi a possibilidade do Brasil descambar para uma autocracia, uma escalada autoritária que estava sendo entendida pelo governo Bolsonaro e pelo grupo de direito de extrema direita liderado por ele”, diz a cientista política.
“Então houve, digamos, um mínimo consenso costurado naquele momento, que permitiu, por exemplo, que figuras históricas que polarizaram também por muito tempo a política brasileira se unissem à chapa que venceu a eleição. Isso seria impensável uma década atrás. Esse contexto interno brasileiro nos ajuda compreender também essas diferentes visões da esquerda em relação ao processo venezuelano.”
“Uma parte da esquerda vai entender que a democracia é um valor importante, que não pode ser negociado. Então, se o governo de Nicolás Maduro empreende, por exemplo, repressões contra manifestantes civis, ou cria o dificuldades institucionais para que a oposição não consiga participar do jogo político, isso é algo a ser combatido. Outra parte da esquerda adota uma perspectiva que dá mais relevância às questões geopolíticas sobre as dinâmicas políticas internas. E acha que, no fim, tudo diz respeito ao posicionamento internacional e ao incômodo que o projeto venezuelano representa para o capital privado das grandes potências ocidentais.”
Ditadura ou autocracia
Ela discorda, porém, que o governo Maduro possa ser descrito como uma ditadura. “Ditadura é um termo que diz respeito a processos políticos muito específicos do século 20. Que implicavam em, digamos, fechamentos mais óbvios dos canais de contestação política. Por exemplo, ditaduras militares que, quando chegavam ao poder, fechavam o Congresso e impediam qualquer outra possibilidade de partido político que não aqueles que compunham a base do governo. Não é exatamente o que acontece na Venezuela.” Ela diz que, em termos de ciência política, seria mais rigoroso referir-se ao regime como uma autocracia.
“Uma autocracia que em determinado momento se abre para algum grau de competição. Então, o regime autoritário competitivo, em alguns momentos ele se fecha em um regime autoritário mais fechado. E, de novo, essa classificação só faz sentido para aqueles que estão partindo dessa perspectiva da democracia liberal. O próprio processo de revolução bolivariana não parte dessa perspectiva”, diz.
Ouça a íntegra da entrevista abaixo.
Imagem acima: multidão em rua de Caracas protesta contra resultados divulgados pelo CNE que atribuíram vitória a Nicolás Maduro.