No início de março, os governos estaduais de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná orientaram as respectivas secretarias de educação que retirassem dos acervos das escolas o livro O Avesso da Pele, do autor Jefferson Tenório, sob o argumento de que ele contém expressões impróprias para menores de 18 anos. A obra, vencedora do prêmio Jabuti de 2021, foi selecionada para distribuição nas escolas públicas por meio de edital do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) publicado pelo Ministério da Educação em 2021. A iniciativa foi recebida com uma saraivada de críticas, e após algumas semanas os três governos estaduais reverteram suas decisões. A controvérsia, porém, somou-se a outros episódios de tentativa de censura e de cancelamento de obras literárias registrados no país nos últimos anos, e que afetaram, principalmente, obras destinadas ao público infantojuvenil.
Dentre os autores que vêm sendo combatidos por críticos das duas extremidades do espectro ideológico encontram-se desde novos valores, como o próprio Tenório, até escritores do cânon da literatura infantil brasileira, como Monteiro Lobato, cuja obra vem sendo frequentemente criticada na última década, acusado de apresentar personagens estereotipados e empregar termos racistas em seus livros.
Escritores e acadêmicos que atuam no segmento da literatura infantojuvenil dizem que o que está ocorrendo é uma tentativa de censura e apontam desdobramentos, entre eles uma crescente insegurança, por parte das editoras, de abordar determinados temas em seus livros. Esse movimento, que em certos momentos parece configurar quase uma autocensura, estaria ocorrendo à margem do debate público, mas recentemente foi discutido em um evento denominado “A censura e a literatura infantojuvenil”, que foi sediado pela Academia Paulista de Letras (APL), no início de maio.
Adequação a expectativas
Durante o evento, quem primeiro tocou no assunto foi Ana Maria Machado, um dos mais expressivos nomes da literatura infantojuvenil do país. Ela relatou as pressões que são enfrentadas pelas editoras hoje em dia. “Muitas vezes o editor se vê pressionado e é obrigado a mudar o livro. Caso contrário, a obra pode não ser adotada (pelo PNLD), e não haverá compra governamental ou das escolas particulares”, disse ela. “O que fazemos com essa pré-censura [das editoras], onde ela está se exercendo com mais intensidade neste momento e com uma força extraordinária? A mídia raramente vê esse ponto de vista [das editoras] porque tem a ideia de que o editor é um empresário e vai ganhar dinheiro com isso, quando, na verdade, essa é uma questão cultural que precisa ser discutida”, diz a escritora, que também é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Também se manifestou a pesquisadora Marisa Lajolo, uma das maiores especialistas na vida e obra de Monteiro Lobato. Ela chamou a atenção para a forma como a pré-censura pode afetar a relação entre autor e editor. “Os autores recebem sugestões de editores de fazer pequenas alterações no texto de forma a se adequarem às expectativas contemporâneas, geralmente ligadas ao politicamente correto”, aponta a professora aposentada da Unicamp, hoje vinculada à Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Essa é uma questão bastante delicada e complexa porque a editora pode dizer ‘ou você mexe [no texto] ou não publicamos’, e cabe ao autor tomar essa decisão”, argumenta.
Após o recente episódio envolvendo a tentativa de censura do livro de Jefferson Tenório, uma série de entidades ligadas às editoras e profissionais da área, como a Liga Brasileira de Editoras (LIBRE) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), divulgaram uma nota conjunta com outras entidades do setor “repudiando toda e qualquer forma de censura a livros”. O texto afirma ainda que “censurar livros é atacar a democracia, a liberdade de expressão e a formação de cidadãos e cidadãs”.
A nota das entidades lembra que as obras distribuídas gratuitamente para as escolas públicas integram o PNLD, e só são aprovadas após passarem por um rigoroso processo de avaliação técnica, que prioriza a transparência, a integridade e a produção editorial de excelência. Ao final do processo, as obras são disponibilizadas a mais de 138 mil escolas públicas, beneficiando mais de 35 milhões de alunos.
Obras “põem o dedo na ferida”
Especialista em literatura infantil, João Luís Tápias Ceccantini é professor do Programa de Pós-graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis, e recentemente foi um dos organizadores de um livro que abordou as controvérsias em torno de diferentes autores, intitulado “Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira”. Ele explica que para muitas editoras, participar do edital do PNLD e ter uma obra selecionada pode representar um impacto grande no faturamento, tendo em vista o volume dessa aquisição governamental voltada para distribuição nas escolas públicas.
“Há o interesse em desenvolver um livro de qualidade, mas pode existir a preocupação em agradar os comitês que selecionam as obras do programa”, diz. “Diante de todas essas pressões em torno do politicamente correto e das campanhas de cancelamento, ao tentar atender a esses pré-requisitos, as editoras já começam a exercer uma autocensura, podendo ir muito além do que consta nos editais e do que vai ser analisado pelos avaliadores”, diz. Ele diz que as obras de destaque desde os contos de fadas até os grandes clássicos do romance mundial, costumam apresentar representações simbólicas ou elementos violentos que podem ser vistos como inadequados para determinadas audiências.
A autocensura, não apenas das editoras, mas também de escritores e profissionais ligados à escola, como bibliotecários, professores e diretores, é um dos temas abordados no novo livro, que é uma produção do grupo de pesquisa que ele coordena. “Essa autocensura depõe contra a própria literatura. As grandes histórias, os grandes clássicos, eram politicamente incorretos na época deles. E hoje são muito mais ainda, porque não tinham medo de colocar o dedo na ferida.”
Critérios para escolha dos livros envolvem até legislação
Com mestrado e doutorado em educação cursados na Unesp, Fernando Rodrigues de Oliveira se especializou no ensino de literatura infantil, e atuou em diferentes funções dentro do processo de avaliação das obras literárias do PNLD. Hoje vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele explica que o PNLD estabelece uma série de critérios de avaliação das obras literárias, que incluem mais de vinte leis brasileiras.
Temas mais complexos, quando surgem nas obras, são exaustivamente discutidos entre coordenadores e avaliadores, considerando, entre outros pontos, a pertinência destes elementos para a compreensão geral da obra e para aquilo que ela propõe. Além disso, quando se trata de temas mais delicados, como uma cena de suicídio, por exemplo, o programa exige, além da obra em si, um material para orientar o professor na mediação da leitura em sala de aula. “Acho que o princípio de mediação de leitura precisa ser melhorado tanto no conteúdo dos editais quanto por parte das editoras. O que temos visto nos últimos editais do PNLD é que quando as obras tratam dessas questões mais complexas esse material é muito frágil”, aponta.
Ele acha compreensível que as editoras sejam cautelosas em relação ao conteúdo das obras, posto que a literatura não é um território de ninguém. “Por mais que eu seja um grande defensor da literatura, há de se discutir se existe um limite estético. Não dá para repetir certas práticas somente sob o argumento de que a obra literária está isenta. Afinal, a obra literária não é apenas uma representação do seu tempo, ela também produz um novo tempo. Por outro lado, me parece que também existe um exagero sobre algumas questões que acabam limitando a própria natureza artística do texto. Há de se pensar o limite dessa cautela para entendermos quando ela deixa de ser um olhar mais apurado e crítico para se tornar uma pré-censura”, diz.
Oliveira avalia que parte das iniciativas que contestam trechos de obras literárias se baseiam em motivações ideológicas de determinados grupos políticos. Outras se originam de demandas mais sólidas, advindas de movimentos sociais que questionam, por exemplo, conteúdos que poderiam legitimar estruturas racistas da sociedade. A aderência a essas pautas, entretanto, também está relacionada a um cenário em que o mais comum é o de sujeitos com pouca leitura, que demonstram dificuldade em transcender a literalidade das palavras e formular uma visão mais complexa daquilo que é apresentado no texto.
Como alternativa ao puro e simples banimento de obras, Oliveira propõe que se avance em relação a mera oferta de livros aos alunos das escolas públicas. Um caminho pode ser o oferecimento de uma formação sólida e específica aos professores, que atuam como mediadores de leitura. Ele diz que o entendimento de determinados fatos e contextos históricos contribui para evitar que se repitam. “Isso não significa colocar um livro numa redoma de cristal e obrigar todo mundo a ler. Precisamos debatê-los, até para entender por que as coisas eram de outra forma, e como chegamos até aqui”, diz.
O que fazer com o acervo de Lobato?
Além das editoras, outras instituições ligadas ao universo literário estão sendo afetadas pelas críticas e ameaças de censura e de cancelamento a autores consagrados. Em março passado, o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp organizou uma mesa-redonda intitulada “O IEL deve cancelar Lobato?” para debater qual a melhor forma de trabalhar o acervo do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, que desde 1999 está abrigado no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae), que pertence à universidade. A ideia da mesa-redonda surgiu porque, em 2023, o Cedae organizou uma exposição que apresentou imagens e informações sobre alguns dos 70 autores cujos acervos estão preservados no Cedae. Uma pessoa não identificada escreveu sobre o cartaz destinado a Monteiro Lobato a palavra “racista”, e a peça foi retirada da exibição. O evento na Unicamp não chegou a apresentar um veredito quanto a conveniência de por de lado ou não a obra lobatiana, e nem se propôs a tal, servindo, antes, como fórum para debater publicamente estas questões que serviu para fomentar o diálogo,
Especialista na obra lobatiana, Lajolo rememorou, em sua fala durante o evento na Academia Paulista de Letras, a perseguição que a obra do autor sofreu por parte da ditadura de Getúlio Vargas nos anos 1930 e 1940. E apontou a difícil condição em que são colocados os professores que, em meio às crescentes polêmicas, lidam com essa literatura no cotidiano da sala de aula. Ela diz que os docentes não suscitam mais, junto aos alunos e seus pais, o mesmo respeito que era característico até décadas atrás. “O professor é o lado frágil nesse aparato violento e censório”, disse. “Nesse contexto, cabe ao professor, na sua dimensão pequena da sala de aula, onde é autônomo, fazer aquilo que seu coração e seu estudo lhe dizem que deve ser feito”, diz.
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