Seja no diagnóstico de câncer, na identificação da doença de Parkinson, ou em outras aplicações médicas, o uso de ferramentas computacionais para auxiliar o diagnóstico de enfermidades tornou-se um tópico quente de pesquisas na academia. A perspectiva é que a aplicação de técnicas de inteligência artificial (IA) possibilite identificar males de forma automática, e em diferentes graus de desenvolvimento, viabilizando a indicação de tratamentos e cuidados mais específicos para cada caso. E, em alguns casos, até sintomas que passariam despercebidos para humanos.
A promessa de que a IA pode se mostrar capaz de identificar padrões que talvez os médicos ignorem é particularmente atrativa para o caso da doença de Alzheimer. Uma iniciativa que busca desenvolver esta tecnologia é o estudo liderado por Andriana S. L. O. Campanharo, pesquisadora do Instituto de Biociências da Unesp, que culminou no artigo “Computational methods of EEG signals analysis for Alzheimer’s disease classification”, publicado na revista científica Scientific Reports, da editora Nature.
Segundo dados da OMS, em 2019, 55 milhões de pessoas apresentavam algum tipo de demência. Destas, a mais comum é a doença de Alzheimer, que atinge sete entre dez indivíduos com demência. Estima-se que o número de pessoas afetadas pela patologia esteja crescendo e chegue a 139 milhões em 2050, superior à atual população do México. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, estima-se que haja aproximadamente 2,4 milhões de pessoas afetadas. Entretanto, calcula-se que a maior parte dos casos, entre 75% e 95%, não foram sequer diagnosticados.
Embora a doença seja incurável, a ausência de diagnósticos precisos é motivo de preocupação. A identificação antecipada é essencial, uma vez que há tratamentos capazes de retardar sua progressão. Entretanto, ainda não existem exames 100% precisos para identificar a enfermidade. “A única maneira de certificar-se de que uma pessoa sofre de Alzheimer é por meio de biópsia do tecido cerebral, que é feita após a morte do indivíduo”, conta Campanharo. Atualmente, o diagnóstico é feito por exclusão e envolve a aplicação de testes neuropsicológicos por neurologistas especializados, além da realização de exames de imagem e de sangue. O pacote de exames, porém, pode envolver um custo alto, o que pode desmotivar os indivíduos a investigarem os sintomas.
Nesse contexto, o diagnóstico por meio de eletroencefalogramas (EEGs) desperta a atenção dos pesquisadores por se tratar de uma técnica barata e não invasiva. Os EEGs registram a atividade elétrica do cérebro por meio de eletrodos fixados no couro cabeludo. O resultado são registros das ondas cerebrais, semelhantes às ondas de rádio, que podem ser lidas por especialistas. No entanto, a leitura e a interpretação dos resultados, feitas por profissionais treinados, podem demandar tempo considerável, uma vez que a compilação dos dados de EEG pode se estender por horas ou mesmo dias. E a etapa de leitura e interpretação não é isenta de erros, uma vez que os dados registram também a presença de ruídos causados pelo equipamento, e mesmo por movimentos musculares do paciente.
Esse quadro faz do uso de técnicas computacionais para a interpretação automática dos dados uma aposta promissora para o estudo da doença de Alzheimer. Em especial, devido ao alto poder de processamento dos computadores atuais. Pensando nisso, Campanharo e seu grupo de pesquisa conduziram um estudo para comparar diferentes técnicas computacionais para identificação da doença de Alzheimer que são amplamente utilizadas na literatura científica. O objetivo era identificar qual, dentre elas, apresenta a melhor capacidade para a identificação de indivíduos com a doença, e também a melhor performance em termos de tempo de processamento dos dados de EEG.
O uso da complexidade
Para o estudo, os cientistas contaram com uma base de dados de pesquisadores da Universidade Estadual da Flórida, Estados Unidos, que cederam sinais de EEG de 184 pacientes. Destes, 160 eram testes de idosos que provavelmente têm a doença de Alzheimer em seu estágio final, e 24 eram testes de idosos saudáveis. O grupo de indivíduos sem a enfermidade foi utilizado como grupo de controle da pesquisa, para validar os resultados obtidos.
Os testes registraram a atividade cerebral dos pacientes por oito segundos, a partir de 19 eletrodos posicionados em diferentes regiões da cabeça. A partir das ondas de frequência obtidas pela atividade cerebral, foram aplicadas as seis técnicas mais utilizadas no estudo da doença de Alzheimer a partir de dados de EEG. “Utilizamos quatro técnicas clássicas de análise de sinais denominadas Coerência Wavelet, Dimensão Fractal, Entropia Quadrática e Energia Wavelet, que utilizam o domínio do tempo ou da frequência, e que estão presentes na literatura há várias décadas”, explica Campanharo. Além delas, os pesquisadores utilizaram duas técnicas mais contemporâneas, que utilizam o conceito de redes complexas, chamadas de Grafos de Visibilidade e Grafos de Quantis.
Uma rede complexa pode ser definida como um conjunto de elementos interconectados entre si. A rede mundial de computadores, a internet, e as redes sociais são exemplos de redes complexas. Nesse sentido, as técnicas que utilizam esse conceito são capazes de criar uma representação baseada em vértices, referentes aos pontos onde há mudança de padrão no registro da atividade cerebral, e conexões que possuem a informação dos dados de cada EEG estudado.
“Esse tipo de análise, baseada em redes complexas, foi desenvolvido para tentar suprir algumas deficiências apresentadas por outras técnicas”, diz Campanharo. Em 2011, a docente desenvolveu em conjunto com colaboradores a técnica de grafos de quantis durante seu doutorado nos programas de Computação Aplicada no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e no Departamento de Engenharia Biológica na Northwestern University, Estados Unidos. Anos mais tarde, a técnica foi aperfeiçoada e aplicada na pesquisa Quantile graphs for EEG-based diagnosis of Alzheimer’s disease, que marcou o ponto inicial do seu trabalho com a Doença de Alzheimer.
Segundo a pesquisadora, uma limitação que sua pesquisa buscou superar ao desenvolver tal técnica estava associada à não estacionariedade intrínseca, presente nos dados de EEG. “Em um processo não estacionário, os dados estatísticos se alteram de uma amostra para outra. E muitas técnicas partem do pressuposto de que essas estatísticas se mantêm constantes ao longo do tempo”, explica. “Além disso, as técnicas clássicas também têm a eficácia comprometida quando analisam sinais contaminados por ruídos, produzidos pelo equipamento de medida ou pelo próprio paciente. Nesse último caso, o tipo mais comum é o ruído muscular que ocorre quando a atividade elétrica dos músculos de um paciente é registrada, resultando em leituras e interpretações errôneas da atividade cerebral”, diz Campanharo.
As técnicas selecionadas foram empregadas para analisar os sinais de EEGs dos 184 pacientes com foco em dois objetivos principais: avaliar a eficácia do diagnóstico produzido por cada técnica, e calcular o tempo de processamento necessário para executar cada uma delas. “Algumas ferramentas podem ser muito eficazes no diagnóstico, mas demandam tempo elevado de processamento e uso excessivo de memória das máquinas, o que torna a análise inviável”, diz Campanharo.
Ondas cerebrais permitem identificar o estágio da doença
Praticamente todas as técnicas apresentaram bons resultados nos testes e se mostraram capazes de identificar os indivíduos afetados pela doença. Os melhores resultados, entretanto, foram alcançados pela técnica baseada em quantis, que foi desenvolvida pela própria Campanharo, seguida pela técnica clássica Coerência Wavelet. Ambas apresentaram uma acurácia de praticamente 100% no diagnóstico, independentemente da presença de ruídos ou do estado dos pacientes. Porém, a técnica baseada em grafos de quantis desenvolvida pela docente da Unesp se mostrou a mais eficiente no processamento dos dados de EEGs.
Uma vez obtidos os resultados promissores, o grupo se questionou se as técnicas utilizadas nesse estudo também seriam capazes de identificar o estágio da doença de cada indivíduo a partir dos sinais de EEGs. Para isso, é necessário observar o registro da frequência das diferentes ondas cerebrais produzidas. Alfa, beta, teta e delta são alguns exemplos de ondas produzidas pelo cérebro, cada uma associada a um nível diferente de consciência e atividade cerebral. Por exemplo, as ondas alfa estão ligadas à relaxação e meditação, enquanto as ondas beta estão associadas ao alerta e foco.
“Segundo a literatura, à medida que a doença de Alzheimer avança, ocorre uma diminuição da contribuição das ondas cerebrais de alta frequência, como as ondas beta e alfa, e um aumento da contribuição das ondas cerebrais de baixa frequência, como as ondas teta e delta. Por conta disso, o sinal de EEG de um paciente com a doença em seu estágio avançado é menos complexo e mais regular”, explica Campanharo. Mais uma vez, a técnica baseada em quantis foi a que obteve a melhor performance na identificação do estágio em que se encontravam os 164 pacientes com a doença. Nesse caso, todos os indivíduos apresentavam nível avançado de desenvolvimento da patologia.
O bom desempenho levou os pesquisadores a conceber uma versão ampliada do estudo para verificar se o grau de efetividade apresentado pela técnica baseada em quantis se manteria mesmo com pacientes em outros estágios da doença, especialmente em sua fase inicial. “O Declínio Cognitivo Leve é um estágio de transição entre o envelhecimento e a doença de Alzheimer e, frequentemente, um alerta precedente dessa doença. Consequentemente, a identificação desse declínio desempenha um papel importante na detecção precoce da doença de Alzheimer e no monitoramento de pacientes, como também, na busca por métodos de tratamento. Entretanto, bases de dados de domínio público de pacientes com diferentes níveis da doença de Alzheimer são escassas, o que dificulta o estudo”, diz Campanharo. O projeto resultou em uma parceria entre o grupo de Campanharo e outro da Itália, coordenado pelo neurologista e diretor do Centro de Neurologia do Instituto Bonino-Pulejo Angelo Quartarone. Em dezembro de 2023 o grupo teve um Projeto Fapesp aprovado, para expandir a investigação no uso de ferramentas computacionais, utilizando a técnica baseada em grafos de quantis tanto em sinais de EEGs, como também em imagens de Ressonância Magnética. “Mais difícil do que diferenciar entre o estágio inicial e o final é distinguir a normalidade da doença”, relata a docente. “Se pudermos diferenciar entre o processo de envelhecimento que acarreta um esquecimento natural, de um quadro de envelhecimento que envolve sinais de demência será uma grande contribuição, porque permitirá que o tratamento possa ser iniciado o quanto antes”, diz.