Em fevereiro de 1989, semanas depois do decreto que garantiu a autonomia universitária para as três universidades estaduais paulistas, o Estatuto da Unesp definiu os parâmetros vigentes para a concessão do título de “doutor honoris causa”, destinado a personalidades que se destacam por valores que se confundem com a própria essência da universidade. Passados 32 anos, dezoito pessoas receberam da Unesp esta honraria, uma das mais tradicionais do mundo universitário. Por ora, entre elas, apenas uma mulher: a crítica, pesquisadora e curadora do design Adélia Borges.
Autora de 19 livros, 21 capítulos de publicações, dezenas de catálogos e outros textos sobre a sua área de pesquisa, Adélia Borges é uma historiadora do design com uma trajetória de mais de 30 anos norteada pela valorização de projetos que promovam o bem-estar das pessoas, respeitem o meio ambiente e, em especial, expressem a cultura brasileira. Possui livros, ensaios e/ou artigos publicados em alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, polonês, coreano e japonês. Algumas dessas publicações cumprem papel vital para entender o design nacional, como aquela veiculada no aniversário de 60 anos da poltrona Mole, um símbolo do design brasileiro, de autoria de Sergio Rodrigues (1927-2014). Adélia a associa às redes de dormir, “o equipamento doméstico brasileiro por excelência, que já existia antes da chegada dos portugueses, foi incorporado pelo colonizador e ainda hoje permanece na casa brasileira, de norte a sul”, escreveu.
Faço parte de uma corrente que pensa o Design como expressão cultural também, e não só como algo estritamente funcional, porque isso não existe. Porque nossa vida é carregada de subjetividades, coisas de que gostamos e falam dos nossos afetos. Há uma série de questões que levamos em conta quando escolhemos objetos que nos cercam”, diz Adélia Borges.
A homenagem à crítica de design foi uma iniciativa da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (Faac), do câmpus de Bauru, aprovada em outubro do ano passado no Conselho Universitário, instância máxima da Universidade.
“Muita gente ainda associa design principalmente a móveis e objetos para a casa. Ele também é isso, mas não só. O design está nas carteiras escolares e nos caminhões. Nos azulejos e nas marcas. Nas embalagens e nos sapatos. Nos cartazes e nos aplicativos digitais. Nos espaços privados em que vivemos e nos espaços públicos que compartilhamos. Nos pontos de ônibus e nos respiradores de uso hospitalar”, disse Adélia em seu discurso durante a cerimônia de outorga do título concedido pela Unesp, realizada em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. “O que me interessa de verdade é como o design pode melhorar a vida não da elite, mas da população em geral. Projetos que proporcionem bem-estar às pessoas, estejam elas em suas plenas potencialidades físicas ou mentais ou tenham dificuldades temporárias ou permanentes de visão, locomoção, audição”, enfatizou na ocasião.
A primeira doutora honoris causa da Unesp nasceu no interior de Minas Gerais. No estado de São Paulo, para onde a família se mudou, graduou-se em jornalismo pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Trabalhou na Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e TV Globo, entre outros veículos. Em 1987, começou a trabalhar em uma revista especializada em design. Três anos depois, participou de um evento que marcou o início da trajetória como crítica: foi indicada ao júri de um dos principais prêmios de design em Stuttgart, Alemanha. Era a única mulher entre os escolhidos e também a única representante do Hemisfério Sul. “Foi meu ponto de virada, de jornalista à pessoa que pensa o design”, diz Adélia Borges.
Em 2003, assumiu a diretoria do Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, onde fez a curadoria de exposições sobre o design nacional, carreira consolidada nos anos seguintes. “Seu olhar revela a identidade do design brasileiro como a soma de um caldeirão de múltiplas culturas, entre elas a europeia, africana, indígena, asiática, e de outros países latino-americanos. Todas essas mãos e cabeças juntas vêm criando objetos em torno da inventividade e da capacidade de se ‘fazer muito com pouco’, aliando-se tecnologias industriais a heranças ancestrais que, na contramão do capitalismo desenfreado, enaltecem a solidariedade, a colaboração e a sustentabilidade”, escreveu a pesquisadora Alessandra Simões, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia.
A docente, cuja área de atuação engloba comunicação, crítica, teoria e história da arte, destaca o livro “Design + Artesanato: O Caminho Brasileiro” (Editora Terceiro Nome, 2011) como uma das obras mais importantes de Adélia Borges, que se destacou ao longo de sua trajetória por abordagens alinhadas ao pensamento decolonial, ou seja, alheias ao eurocentrismo historicamente predominante. “Embora seja lida e reconhecida pela cultura e história hegemônica europeia, Adélia desenvolve conceitos e abordagens decoloniais sobre o design no Brasil (…) Adélia valoriza a produção autóctone e popular não apenas como cultura material, mas como design”, escreveu a professora Ana Mae Barbosa, da USP, no parecer favorável ao título concedido pela Unesp. “Trabalhar criticamente reconhecendo códigos híbridos ou originários de multiculturas que enriquecem nossa produção de design eliminando ou, pelo menos, estabelecendo equilíbrio valorativo entre o erudito universitário e o popular dos pobres a tornaram uma das curadoras culturalistas mais importantes do Brasil.”
A vice-reitora da Unesp, professora Maysa Furlan, que esteve à frente da cerimônia de outorga do título a Adélia Borges, lembrou da questão da sub-representatividade das mulheres em muitas áreas e posições de liderança. “É preciso avançar, lutar e alcançar a igualdade de gênero e justiça. Portanto, empoderar as mulheres e meninas é um assunto inacabado do nosso tempo e um dos maiores desafios dos direitos humanos em todo o mundo”, afirmou a vice-reitora.
Crédito da foto: Mariana Chama