Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho / Mas eu vim de lá, pequenininho / Alguém me avisou/Pra pisar neste chão devagarinho
Os versos da canção “Alguém me avisou”, eternizados pela autora, a sambista Dona Ivone Lara, transmitem a necessidade de adotar respeito e cautela em nossas caminhadas existenciais. E foi respeitando estes valores que a cantora Fabiana Cozza construiu sua carreira e chegou a ser vista como referência artística dentro e fora do Brasil.
Apontada como uma das principais vozes de sua geração, e frequentemente comparada a outras grandes cantoras e intérpretes da música brasileira, Fabiana Cozza nasceu em 16 de janeiro de 1976, na cidade de São Paulo. Seu pai era um entusiasta do samba e ela, filha primogênita, cresceu acompanhando as rodas de samba que ele organizava. Essa origem lhe proporcionou grande familiaridade e afeição pelo samba, e também pelo ambiente cultural que o rodeia. E, no seu processo de desenvolvimento musical, a humildade, o respeito e os desafios sempre estiveram presentes.
“Eu não venho necessariamente de uma família de músicos, mas de uma família de pessoas que amavam a música e tinham a música no seu cotidiano. A exceção foi meu pai. Esse, sim, tentou uma carreira artística. E, de certa forma, teve êxito durante algum tempo, porque meu pai foi intérprete de samba enredo de uma tradicional escola de samba de São Paulo, a Camisa Verde e Branco”, conta. “Meu pai fazia rodas de samba na casa da minha avó materna, e assim eu fui criada. Também pelo fato de minha mãe ser professora, ela cantava para os seus alunos. Havia isso na escola que a gente frequentava. A primeira fase da minha educação, até a oitava série, foi em escola pública. E me lembro de várias festas em que participei do coral na escola. Tive uma infância alimentada de música”, relembra.
Enquanto crescia, Fabiana ganhou acesso a discos, ambientes e experiências que fundamentaram suas referências musicais. Entre elas estava o samba enredo, o partido alto e artistas de samba ou que gravavam sambas, como Alcione, Almir Guineto, Paulinho da Viola e Maria Bethânia. Também se misturaram nessas vivências o repertório de músicas infantis da sua geração e canções religiosas que fizeram parte de sua vivência de fiel católica enquanto menina. Já adulta, converteu-se ao Candomblé.
Aos 18 anos ingressou no curso de Jornalismo na PUC-SP e aos 19 anos entrou na Universidade Livre Música. Frequentou ambas paralelamente. “Meu pai ficou sabendo que haveria um teste de canto e me disse para participar. Ele não tinha condição de pagar estudos de música para mim, nem para a minha irmã. Eu passei no curso de canto popular e fui estudar. Aí eu fui meio que largando a PUC. Foi uma confusão, porque eu só queria estar na música. O meu pai ficou bravo. Mas eu me formei, depois de muitos anos. Posteriormente fui fazer mestrado lá também, em fonoaudiologia”, diz.
Nessa etapa inicial de seus estudos, outra grande cantora brasileira, Jane Duboc, teve um papel fundamental. Segundo Fabiana, Jane foi convidada para ser professora de canto popular em 1996 no Festival de Inverno de Campos do Jordão, e fez a proposta de que a escola criasse um grupo vocal, pois gostaria de ter nove cantores ao seu lado. Abriram-se então as inscrições para fazer o teste de seleção para o grupo vocal. “Me recordo que fui cantar uma canção do Paulinho da Viola. Estava começando a estudar música, era muito nova e fui cantar à capela. Ela ficou tocada por aquele canto. Eu fiquei feliz, porque era uma grande oportunidade, a primeira grande oportunidade de conviver com uma excelente artista e de aprender com ela, e com os meus oito colegas. A Jane gostou tanto do resultado que ainda ficamos mais um ano estudando na casa dela. Jane é muito generosa. Colocava todo mundo para dentro de casa e cuidava da gente, orientava, levava para conhecer estúdios etc. Ela também nos apresentou artistas como Arismar do Espírito Santose Silvia Goes… Nós ficávamos encantados”, diz.
Ela relata que seu trajeto em direção à profissionalização foi “natural”, dentro dos parâmetros da realidade do mercado musical brasileiro. “Tomando um pouco emprestado as palavras do Marcelino Freire, meu querido amigo e parceiro: o processo “natural” de alguém que não nasce em uma família de músicos famosos, não nasce em uma família rica e não tem sobrenome, é complicado. Para uma criança, adolescente e mulher negra, o processo natural é de luta, de receber muitas negativas e ter que perceber de que maneira vai traçar o seu caminhar sem perder o foco do estudo. Porque isso foi algo presente na minha casa. Eu sou a segunda geração da minha família que estudou, se eu considerar os meus pais como a primeira geração. Os meus avós não tiveram quase nenhum estudo. A minha avó paterna foi estudar aos cinquenta e poucos anos de idade para poder ler e escrever. Tendo esse histórico, uma mãe muito focada e trabalhadora e um pai negro e rígido que sabe o valor do estudo para poder sobreviver, minha irmã e eu não tínhamos outra escapatória a não ser dedicação e estudo. Então, minha trajetória é marcada por algumas teimosias, positivas e negativas. Quais eram essas teimosias? Primeiro, mesmo que não te incentivem, você ergue a cabeça e vai para a frente. Outra coisa é: uma porta fecha hoje, mas tem outra que pode abrir amanhã. Eu não desisti; no fundo, é isso. Além da Jane, que acolheu esse grupo de jovens cantores, eu não tive mais ninguém que me ensinasse como era começar na música.”
Fabiana construiu uma carreira sólida e bem-direcionada, que contabiliza oito álbuns lançados sob a assinatura de Fabiana Cozza, inúmeras premiações, diversas parcerias com outros grandes nomes da música brasileira e turnês nacionais e internacionais. Seu primeiro disco, O Samba é o Meu Dom, lançado em 2004, de cara conquistou o público e a crítica, levou prêmios e abriu portas para a cantora paulista no universo da música brasileira.
“É um título muito feliz, tirado de uma canção do Wilson das Neves com o Paulinho Pinheiro. Por que O Samba é o Meu Dom? Porque eu cantava essa canção duas, três vezes por noite às segundas-feiras no bar Ó do Borogodó. O povo que não chegava no primeiro set, pedia essa música no segundo set. O público ia me dizendo o que eu tinha que fazer também. Porque era o público que dizia “canta de novo”. Por que cantar de novo? Porque a música contamina, mexe com as pessoas. É aquilo em que as pessoas te reconhecem. Ninguém me pedia para tocar alguma música do Tom Jobim, que eu cantava também toda noite. Mas ninguém me pediu para gravar Tom Jobim. As pessoas me pediram para gravar aquilo que as eletrizava. Isso me lembra muito uma entrevista do Hermeto Pascoal, quando ele diz que se entendeu como músico desde que aprendeu a tocar para as pessoas dançarem. E isso é muita coisa, né? Isso é mobilizar o corpo do outro, a emoção do outro. A gente canta o que a gente carrega”, analisa.
E é então que Fabiana evoca a sabedoria incrustada na letra de Dona Ivone Lara. “Então, desde o início, minha carreira foi assim. Respeitar quem chegou antes. Isso é um aprendizado que tive dentro da minha casa pelos dois lados. Mas, dentro das culturas negras que frequentei, isso é uma regra de construção, junto com a educação, que também tem muito a ver com a minha formação no Candomblé. Então, sempre fui fazendo desse jeito. Nunca passei por cima de ninguém, nunca desrespeitei as pessoas que eram mais velhas, que chegaram antes de mim. Pelo contrário, sempre ouvi os conselhos, sobretudo dos que eu sabia que tinham algo a dizer. Fui indo naquele processo que é uma filosofia de vida que a Dona Ivone Lara nos deixou: ‘Alguém me avisou/Pra pisar neste chão devagarinho’. Devagarinho eu vou seguindo, e isso já faz vinte e cinco anos.”
Confira abaixo a entrevista completa com Fabiana Cozza no Podcast MPB Unesp.