A contrabaixista, vocalista, compositora e produtora Sandra Coutinho é uma figura icônica do rock brasileiro, especialmente de sua vertente independente. Sandra colaborou com algumas bandas de destaque do rock brasileiro, incluindo Gang 90, Smack e AKT, mas foi à frente do grupo Mercenárias, do qual é uma das fundadoras e força motriz, que seu nome se projetou como um dos mais importantes do pós-punk nacional.
Nascida em São Paulo, Sandra ingressou em uma cena do rock quase integralmente composta por homens. Quando muito, as mulheres cavavam algum espaço como backing vocals ou vocalistas. Ao formar um conjunto apenas de mulheres e decidir empunhar o baixo e os vocais nas Mercenárias, ela e suas companheiras de banda abriram caminho para que a presença feminina na cena pudesse se expandir.
Em sua carreira, conseguiu construir um som característico, difícil de definir, que mistura punk rock, improvisação livre, música eletrônica e trilhas sonoras para dança e teatro. Essa versatilidade levou-a a construir uma carreira solo na Alemanha entre 1990 e 2004, onde explorou diferentes sonoridades e fez apresentações no formato “one-woman show”.
A musicalidade veio de berço. Nos dois lados de sua família havia pessoas que tocavam instrumentos, como amadores ou profissionais. Entre eles, seu avô materno, que além de tocar, também compunha. “Nasci numa família em que uma tia tocava bandolim, a outra cavaquinho, minha mãe tocava violão, os tios tocavam piano e outra tia tocava percussão. Era um sarau”, diz. No lado paterno, o avô se alternava entre o trabalho como ferroviário e sua atuação como saxofonista em um circo. Nesse ambiente, foi natural que, quando Sandra completou sete anos, a mãe a colocasse para estudar piano e até comprasse o instrumento. “Assim como era natural, desde cedo, cantar junto com outras pessoas, arriscar outra voz, conhecer a altura das vozes”, diz.
Na juventude, Sandra ingressou no curso de Jornalismo na USP. Nesse período, reunia-se para tocar com os amigos na faculdade, em festas, sítios e outros espaços ligados à vida de estudante universitário. Também acompanhava Eliete Negreiros e a Gang 90 tocando teclado. “Quando resolvi fazer a minha banda, não tinha espaço para teclado. E eu nem queria, queria explorar outras possibilidades. E, como todo mundo estava começando, falei que iria começar a tocar baixo.”
Nesta nova etapa, decidiu fazer música seguindo moldes diferentes. “Meu conhecimento de notas, de solfejo, de leitura de partitura ficou lá no piano. Lógico que tudo o que aprendi facilitou para saber quais regras não queria mais cumprir. Quando toco um acorde dissonante, uma sétima diminuta, em vez de um acorde maior, sei o que aquela sétima diminuta vai causar. E é aquilo mesmo que eu quero”, diz.
Esse conhecimento fundamentou uma obra original, erigida em torno de músicas que expressavam seus valores estéticos e pessoais. “O conhecimento ajudou a justificar até os momentos em que quis causar tensão na música e provocar algum tipo de incômodo. O meu raciocínio é que, a partir do momento em que a arte apresenta algo que sai do padrão e é novo, isso a abre para a busca de outra coisa que não é padrão na própria vida”, analisa.
As Mercenárias
No início da década de 1980, as então estudantes Sandra Coutinho, Rosália Munhoz (vocal) e Ana Maria Machado (guitarra) resolveram formar o grupo As Mercenárias. Vivia-se a onda de rock punk e New Wave, período em que surgiram outros grupos célebres como Inocentes e Ratos de Porão. O primeiro baterista do grupo foi Edgard Scandurra (que ficou famoso como guitarrista do Ira!). Scadurra, porém, já despontava como guitarrista em outras bandas, incluindo, Smack, Ultraje a Rigor e o Ira!, e teve que pedir o boné. No seu lugar, entrou a baterista Lou, e a formação clássica estava completa.
Em 1986, saiu o primeiro LP, Cadê as Armas?. O disco foi bem recebido. Faixas como Me Perco Nesse Tempo, Polícia e Pânico se tornaram destaques no álbum. A fama da banda de mulheres roqueiras começou a crescer, e chegaram a se apresentar em programas de TV. Em 2016, o petardo foi eleito pela revista Rolling Stone Brasil como o 5º melhor álbum de punk rock do Brasil.
Sandra destaca a liberdade artística que o punk proporcionou a todos que se aventuraram em suas águas. “No punk e no pós-punk, houve espaço para a mulher dar uma boa pirada. A gente experimentou de tudo, não seguíamos o padrão punk preto, cheio de tachinhas. Usávamos até vestido de baile amarrado com alfinete. Ou qualquer tipo de roupa que desse na telha, porque era um momento de ‘tudo pode’”, diz.

E foram bem recebidas pelas bandas masculinas e seus integrantes, com quem conviviam tanto na Galeria do Rock quanto nas casas de show, onde se apresentavam nas mesmas datas, dividindo os palcos. “Havia pessoas de várias linhagens do rock que conviviam na mesma cena”, lembra.
Em 1988, a banda gravou o segundo álbum, Trashland, por uma grande gravadora, a EMI. O disco teve uma boa aceitação de público e de crítica, chegando a ser escolhido álbum do ano pela revista Bizz. A gravadora, porém, não fez divulgação à altura, e o contrato foi encerrado sem muitas explicações. Como consequência, algumas das integrantes pausaram a carreira artística. Sandra, por razões pessoais, mudou-se para Berlim. Inseriu-se na cena alternativa local e lá ficou por 14 anos.
Em 2005, de volta ao Brasil, Sandra decidiu remontar o grupo junto com a vocalista Rosália, incorporando duas novas integrantes: Geórgia Branco e Pitchu Ferraz. No mesmo ano, foi lançado no exterior o CD O Começo do Fim do Mundo (Beginning of the End of the World: Brazilian Post-Punk 1982-85), coletânea com músicas dos dois discos da banda. Pouco tempo depois, Rosália saiu do grupo e Sandra assumiu os vocais. Em 2012, os 30 anos do grupo foram comemorados com um show no Centro Cultural da Juventude (CCJ), com a participação dos músicos Edgard Scandurra, Naná Rizzini, Karina Buhr, Maria Alcina, Clemente Nascimento (Inocentes) e Michelle Abu.
Em 2014, a banda se apresentou na Virada Cultural de São Paulo. No ano seguinte, entraram na banda Silvia Tape (guitarra e vocais) e Michelle Abu (bateria e vocais). Neste mesmo ano, foi lançada internacionalmente, em formato vinil, a primeira demo tape da banda. Em 2017, a banda se apresentou no Circo Voador, no Rio de Janeiro, abrindo para a banda Metá Metá.

Atualmente, As Mercenárias seguem com agendas de shows, apresentando-se em unidades do Sesc e diferentes casas de rock dentro e fora do Estado de São Paulo. A formação conta com Silvia Tape (guitarra e vocais) e Pitchu Ferraz (bateria e vocais). Sandra continua no baixo, movida por sua paixão pela música e mantendo-se como referência e inspiração para as novas gerações do rock brasileiro.
Confira abaixo a entrevista completa ao Podcast MPB Unesp.
Imagem acima: foto de @erikameier
