Inundações típicas de zonas tropicais estão se tornando mais frequentes em países temperados devido à mudança climática. Mas a ciência ainda sabe pouco sobre elas, dizem pesquisadores da Unesp

Aquecimento tem alterado condições climáticas e gerado mais tempestades convectivas intensas em regiões de clima mais frio, resultando em enchentes nos últimos anos. Tais países podem se beneficiar de experiências acumuladas por pesquisadores e gestores brasileiros.

Em um artigo publicado nesta semana na revista Nature Geoscience, pesquisadores da Unesp e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) chamam a atenção para o risco crescente que as inundações repentinas (flash floods, em inglês) representam para as cidades. Essas enchentes são listadas entre os principais perigos hidroclimáticos por conta de sua rapidez e letalidade, mas alterações nos padrões climáticos globais ampliaram sua área de ocorrência. Por outro lado, a existência de lacunas no entendimento científico desse fenômeno torna-o difícil de ser previsto.

Algumas das principais catástrofes climáticas ocorridas no Brasil nos últimos anos, como os eventos em Petrópolis (2022), Recife (2022) e Rio Grande do Sul (2023-2024), envolveram inundações repentinas. No artigo intitulado Tropical flash floods are becoming more frequent and widespread but are still underestimated (Inundações repentinas tropicais estão se tornando mais frequentes e generalizadas, mas ainda são subestimadas, em tradução livre), os autores alertam que tais eventos, que possuem características típicas dos Trópicos, estão se tornando cada vez mais comuns em outras regiões do globo, como as zonas temperadas.

Tradicionalmente, a ocorrência de inundações repentinas nos Trópicos está vinculada às chamadas tempestades convectivas intensas. Nessas tempestades, o ar quente que está próximo à superfície sobe e se esfria, condensando-se e formando grandes nuvens de tempestade. Esses colossos podem desabar na forma de chuvas com mais de 100 mm de precipitação por hora, que devastam pequenas áreas.

Nas regiões temperadas, explica Enner Alcântara, um dos autores do artigo, a dinâmica sempre foi diferente. “As inundações repentinas costumam ser desencadeadas por sistemas atmosféricos de maior escala que, embora também produzam acumulados elevados, tendem a atuar por mais tempo e de forma mais previsível”, afirma o docente do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp no câmpus de São José dos Campos. Entre os exemplos desses sistemas estão as frentes de ar ou os ciclones, fenômenos menos explosivos e mais permanentes, e por isso mais previsíveis, diz ele.

O ponto central do artigo está na afirmação de que, à medida que o planeta se torna mais quente, as tradicionais diferenças existentes entre as regiões Tropical e temperada, em termos da ocorrência das condições meteorológicas necessárias para a ocorrência de inundações repentinas, têm se mostrado menos nítidas. A mudança decorre do fato de que a atmosfera das zonas temperadas passa a reter cada vez mais umidade, o que a torna mais propensa a tempestades curtas, intensas e altamente localizadas. Essas características são típicas do que se vê nos trópicos.

“Essa convergência é preocupante porque amplia o risco hidrológico global e desafia sistemas de alerta e planejamento urbano que não foram concebidos para lidar com esse novo tipo de evento extremo”, aponta Alcântara.

O docente lembra que, em 2021, chuvas intensas estacionadas sobre regiões de vales estreitos formaram verdadeiras corredeiras em ruas de regiões de Luxemburgo, da Bélgica e da Alemanha, o que resultou em centenas de mortos, em uma dinâmica muito parecida com eventos ocorridos em regiões tropicais.

“Desde então, episódios semelhantes ocorreram na Eslovênia, no norte da Itália, no Reino Unido e na Espanha, sempre com o mesmo padrão: tempestades curtas, muito intensas e altamente localizadas atuando sobre áreas urbanizadas ou solos encharcados, produzindo enxurradas repentinas e difíceis de prever”, afirma o docente.

Além de apontarem a crescente convergência desses fenômenos climáticos tanto nas regiões tropicais como nas temperadas, os autores ressaltam assimetrias em termos de conhecimento científico, assim como na capacidade de instituições e governos de enfrentarem inundações repentinas.

“Por serem fenômenos mais lentos e previsíveis, as cheias de grandes rios e as secas prolongadas acabaram se tornando o foco prioritário de políticas públicas, sistemas de monitoramento e investimentos em modelagem climática e hidrológica”, explica o pesquisador. Para enfrentá-los, foram desenvolvidas diversas ferramentas, que incluem as estruturas de alertas de cheias fluviais, protocolos institucionais, políticas agrícolas específicas, atenção a programas de mitigação e menções em relatórios do IPCC e na agenda global para a adaptação climática. “Já as inundações repentinas foram tradicionalmente tratadas como eventos “locais”, difíceis de prever e de curta duração. Isso, historicamente, reduziu o interesse de cientistas e instituições em estudá-las”, afirma.

Essa falta de interesse tem consequências diretas na ciência climática, que dispõe de modelos globais e regionais muito eficientes para representar fenômenos de duração mais longa, como as estiagens e cheias de rios, mas ainda apresenta desempenho limitado para tempestades curtas e de extrema intensidade, que antecedem as inundações repentinas.

A modelagem desses últimos fenômenos, explica Alcântara, ainda exige melhores resoluções de imagens e parametrizações mais sofisticadas. “Se nada mudar, um dos fenômenos mais destrutivos do clima contemporâneo continuará operando à margem das estratégias globais de adaptação, justamente no momento em que tende a se intensificar e se expandir geograficamente em razão do aquecimento global”, alerta o professor da Unesp.

Os autores do artigo ponderam que o contexto brasileiro pode servir como uma referência para estudiosos de todo o planeta acerca do poder destrutivo desses eventos, bem como das possíveis estratégias para lidar com a tendência de aumento no número de ocorrências. A variedade hidroclimática de um país de dimensões continentais como o Brasil apresenta uma ampla variedade de gatilhos para a ocorrência de inundações repentinas. Apenas na região Sudeste foram registrados, entre 2015 e 2019, mais de 1.300 episódios de chuvas extremas.

Essas características meteorológicas, combinadas com um repertório de práticas inadequadas de manejo da terra, que incluem desmatamento, impermeabilização do solo pela urbanização não planejada, ocupações em áreas de encosta e deficiências nas redes de drenagem, contribuem para o rápido deslocamento da água das chuvas em direção a áreas mais baixas do território. Os autores lembram que esses elementos estiveram presentes nas grandes tragédias recentes em Petrópolis (2022), com 258 mm de chuva caindo em apenas três horas, em Recife (2022), onde, em um período de cinco dias, acumulou-se 551 mm de chuva, e no Rio Grande do Sul (2024), quando sistemas convectivos persistentes saturaram o solo e os rios e um episódio de inundação repentina escalou para uma catástrofe regional inédita no país.

“Não se trata de dizer que todos os países terão de lidar com o desmatamento ou a ocupação de encostas, como acontece no Brasil. Mas, sim, de mostrar que muitos territórios africanos, asiáticos, europeus e norte-americanos também enfrentam combinações perigosas de chuva intensa, impermeabilização, drenagem insuficiente e alta vulnerabilidade social”, diz Alcântara.

À medida que eventos desse tipo começam a ocorrer com cada vez mais frequência fora dos trópicos, argumentam os autores, o Brasil, por viver esses extremos com alta frequência, pode oferecer pistas valiosas para entender como diferentes regiões do mundo podem se preparar para um regime climático mais instável, mais úmido e mais propenso a eventos repentinos.

Por fim, o artigo sugere ações para melhorar a previsibilidade de inundações em regiões tropicais. Elas incluem a integração de dados de satélite de alta resolução, a expansão de redes de monitoramento hidroclimático e o investimento no desenvolvimento de modelos que conectem de forma eficiente o clima à hidrologia.

Em paralelo ao aperfeiçoamento da previsibilidade, apontam os autores, deve-se investir também em sistemas de alerta e na aplicação de políticas que regulamentem o uso do solo, com base em modelos que observem a ocorrência de inundações. Além disso, iniciativas globais, como os relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e os programas da ONU voltados para a questão da adaptação, devem incorporar inundações repentinas ao seu escopo. “Se ignorarmos sua dinâmica e os riscos [desses fenômenos], deixaremos bilhões de pessoas expostas a um dos perigos mais imediatos e injustos das mudanças climáticas”, pondera o texto do artigo.

Imagem acima: inundações no Clausen Park em Luxemburgo, em 2021. Crédito: Tristan Schmurr /Wikimedia