Governo Federal retifica certidões de óbito de mortos pelo regime militar

Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania realizou a entrega dos documentos corrigidos aos familiares de 63 vítimas, incluindo Rubens Paiva e Pedro Pomar. Correção atesta que indivíduos sofreram “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.

Familiares de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar receberam, em 8 de outubro, certidões de óbito retificadas, contendo novas informações sobre a causa da morte das vítimas do regime. Ao longo da cerimônia, que ocorreu no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foram entregues 63 certidões de óbito aos familiares que estavam ali presentes.

O evento foi uma realização da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), e contou com o apoio do Conselho Nacional de Justiça.

Vários dos familiares que receberam as novas certidões já possuíam documentos que atestavam a morte de seus entes durante o regime militar, com base em uma lei de 1995. No entanto, os dados que constavam nessas certidões antigas eram genéricos, e não deixavam claro que aquela morte havia sido violenta, causada pelo estado e em um contexto de perseguição política. Em alguns casos, registrava-se que a  morte havia se dado por causas naturais.

Agora, todas as certidões trazem, no campo da causa da morte, os dizeres de que a pessoa sofreu uma morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964”.

Além dos familiares das vítimas, estiveram presentes na cerimônia de entrega das certidões diversas autoridades públicas, como a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo. Em entrevista coletiva a veículos de imprensa, a ministra defendeu que a emissão dessas certidões é uma oportunidade para que “o Estado brasileiro possa regulamentar o crime de desaparecimento forçado”.

“Todo crime contra a vida, quando ele fica impune, quando ele não é efetivamente investigado, é um crime que se perpetua no tempo”, disse a ministra. “O STF, especialmente o ministro Flávio Dino, tem se debruçado sobre essa questão. Eu não conheço profundamente a tese que ele está desenvolvendo, mas o que a gente entende é que tem crimes que prescrevem, que eles são crimes continuados. Pessoas desaparecidas políticas no momento da ditadura, esse crime não prescreveu. Porque se o corpo não foi encontrado, e muitas vezes se sabe que essa pessoa foi retirada da sua casa, mas até hoje a família não tem acesso à verdade sobre o que aconteceu, a gente chama esse crime de crime continuado”, disse.

A ministra Macaé faz referência à tese apresentada em 2024 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, de que o crime de ocultação de cadáver não pode ser perdoado com base na Lei da Anistia, promulgada em 1979 no contexto de luta pela reabertura e redemocratização do Brasil. Para o ministro, a ação de desaparecimento forçado dos corpos de dissidentes políticos, junto ao impedimento da família ao sepultamento, é um crime permanente.

“Na verdade, nós estamos fazendo aqui a retificação das certidões de óbito, mas efetivamente, para muitos desses familiares, o crime não cessou, porque os corpos não foram encontrados, as famílias não sabem onde essas pessoas estão enterradas, e isso é inadmissível da gente conceber e pensar no âmbito do Estado democrático”, disse a ministra.

Familiares pedem punição a torturadores e golpistas

Ao defender a tese de que o desaparecimento forçado de opositores do regime é um crime que se perpetua, o ministro Flávio Dino citou o filme vencedor do Oscar, “Ainda Estou Aqui”. O longa retrata a história da tortura e assassinato do ex-deputado Rubens Paiva no ano de 1971, cujo corpo nunca foi encontrado.

O escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado e autor do livro homônimo que deu origem ao filme, esteve na cerimônia para receber a certidão de óbito retificada de seu pai. Pouco antes de receber o documento em mãos, Marcelo mencionou que o golpe de Estado em 1964, bem como outras tentativas de ruptura democrática na história do Brasil, são formas de manutenção das desigualdades:

“Você viu a tentativa de golpe no final de 2022 com o ano de 2023? É o mesmo golpe que houve em 1964, é o mesmo golpe que tentaram dar em Juscelino, é o mesmo golpe que os militares têm dado desde a Proclamação da República. É uma eternização no poder, que eles pretendem ter para evitar que o povo brasileiro tenha o país nas mãos. E, no entanto, existem aqueles que têm armas, que estão em defesa de quem tem poder, que pretendem manter a terra nas mãos de poucos, pretendem manter a renda nas mãos de poucos”, disse Paiva.

Ao lado da ministra Macaé Evaristo, os irmãos Marcelo Rubens Paiva e Vera Paiva recebem a certidão de óbito de seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva. Foto: Duda Rodrigues/MDHC

O escritor saiu em defesa da punição aos agentes do regime militar, e também daqueles que planejaram um golpe de Estado durante o período eleitoral de 2022, e que culminou com os ataques às sedes dos três poderes da república em 8 de janeiro de 2023. Ao relembrar o caso do brigadeiro João Paulo Burnier, notório torturador do regime militar e líder golpista, Marcelo argumenta que a falta de punição a essas pessoas leva a novas tentativas de golpe de Estado:

“Tiveram duas tentativas de golpe contra Juscelino Kubitschek. Em duas delas estavam entre os líderes o brigadeiro Burnier. Toda vez que eles tentaram o golpe, foram anistiados. Em 1964 o Burnier retomou e conseguiu finalmente aquilo que ele sempre tentou, que foi um golpe de Estado. Em 1968 o Burnier propôs explodir o gasômetro do Rio de Janeiro e a represa que dá energia ao Rio de Janeiro, para pôr a culpa nos comunistas. Outro militar, Sérgio Machado, o impediu de fazer essa loucura. Em 1971 o Rubens Paiva foi preso. Quem assistiu o filme viu aquelas pessoas na casa, aquelas pessoas estavam a mando de quem? Do brigadeiro Burnier. A primeira pessoa a começar a torturar o Rubens Paiva foi o brigadeiro Burnier. Então esse homem, que foi anistiado duas vezes, é quem assassinou meu pai”.

Significado prático e simbólico das certidões de óbito retificadas

Pedro Estevam Pomar, jornalista, mestre em História pela Unesp e doutor em Ciências da Comunicação pela USP, marcou presença na solenidade. Ele recebeu a certidão de óbito de seu avô, Pedro Pomar, um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil assassinado pelos militares no ano de 1976.

O jornalista acredita que a entrega desses documentos tem um impacto simbólico e pedagógico, especialmente para as gerações que não viveram o período do regime militar: “É importante porque você traz o tema à tona de novo. É como os filmes que têm saído a respeito do período da ditadura. Você recoloca em discussão, e as novas gerações não passaram por essa experiência terrível que os da minha idade, por exemplo, viveram. Então é importante que as pessoas saibam que aconteceu uma ditadura, e que há pessoas que querem implantar novas ditaduras, e que os militares continuam pensando com a mesma cabeça de antigamente. Por isso digo que [essa iniciativa] tem um conteúdo pedagógico, didático, político no sentido amplo da palavra”.

Por outro lado, Pomar minimiza o impacto da emissão desses documentos para um possível julgamento de torturadores e assassinos do regime militar: “Acho que do ponto de vista prático, não vai alterar significativamente, talvez em um caso ou outro. Na maioria dos casos, não, porque esses casos são todos documentados extensamente pela Comissão Nacional da Verdade. Então é uma medida pedagógica, educativa, sim, mas é ainda um avanço pequeno. Queremos muito mais”, disse.

Série de eventos para entrega das certidões

A solenidade na Faculdade de Direito da USP foi a segunda do tipo. No dia 28 de agosto, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos realizou a primeira entrega de 21 certidões de óbitos aos familiares de vítimas do regime militar, em evento na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte.

De acordo com o MDHC, foram identificados 109 casos em que havia necessidade de retificar a certidão de óbito. Uma vez que nem todos os familiares puderam estar presentes em nenhuma das duas solenidades já realizadas, a entrega deve continuar até o fim deste ano, na ocasião do II Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas, previsto para dezembro. A entrega das certidões de óbito retificadas é uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, e está em acordo com a Resolução nº 601/2024 do Conselho Nacional de Justiça.

Imagem acima: momento da cerimônia em que familiares ergueram as imagens de seus parentes assassinados pelo regime militar. Foto: Michel Amâncio