“Se nada for feito em dez anos, os dez anos seguintes serão piores”, diz José Marengo

A poucos dias da COP 30 em Belém, da qual irá participar, o professor do Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais da Unesp/Cemaden reflete sobre o aumento da temperatura média acima do limite de 1,5 °C registrado ano passado, o desafio de neutralizar os discursos negacionistas e a necessidade de estimular futuras gerações a se interessarem pela pesquisa em clima.

Enquanto o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU preparava seu primeiro relatório, lançado em 1990, o peruano José Marengo fazia seu doutorado em meteorologia na Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Na tese, ele já analisava fenômenos climáticos amazônicos e como eles influenciam a circulação atmosférica nos trópicos — a preocupação com a floresta permanece, até hoje, no cerne de seu trabalho.

Em 1995, ano da segunda edição do relatório, Marengo já constava da lista de colaboradores, de onde nunca mais saiu. Sua carreira acadêmica se entrelaça com a história do painel, e ele se tornou um porta-voz eloquente do combate à poluição atmosférica e ao negacionismo climático. Na sétima publicação do IPCC, prevista para 2029, Marengo exerce a função de review editor (“editor de revisão”): supervisiona o processo de revisão do capítulo 8 no Grupo de Trabalho 1, e ajuda os autores a lidar com problemas e controvérsias.

Radicado no Brasil há três décadas, Marengo é pesquisador no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), e colabora com o Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais da Unesp, que é uma parceria entre a universidade e o Cemaden, e está sediado em São José dos Campos (SP).

Sempre atento aos desdobramentos políticos e diplomáticos nos bastidores da agenda ambiental, Marengo estará em Belém (PA) para a 30ª Cúpula do Clima da ONU, a COP 30. Participará de eventos da Casa da Ciência no Museu Emílio Goeldi e da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), e estará no lançamento do relatório SPA-15, produzido pelo Painel Científico para Amazônia (SPA, na sigla em inglês).

Em entrevista ao Jornal da Unesp, Marengo conversou sobre o futuro incerto da Amazônia, as metas esperançosas do Acordo de Paris e a frustração de combater as mudanças climáticas enquanto negacionistas do calibre de Donald Trump ou do presidente argentino Javier Milei semeiam desinformação.

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O Acordo de Paris previa limitar o aumento da temperatura média global a um máximo de 2 °C em relação aos níveis pré-industriais — e considerava 1,5 °C como ideal. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (WMO), a média do ano passado já ultrapassou o teto de 1,5 ºC. Ainda faz sentido manter essa meta como limite do aquecimento até 2030? 

Marengo: Acho que sim, porque precisamos tomar ações, e para tomá-las precisamos de um limiar. Eu vejo isso como a luz amarela de um semáforo. Significa que estamos perto demais do limite e que algo precisa ser feito. Se nós emitirmos menos gases de efeito estufa, então talvez possamos reduzir um pouco a tendência. Não vamos virar para o esfriamento, vamos continuar com mais aquecimento, mas com um aquecimento menor teríamos talvez menos extremos e menos desastres associados aos extremos. As negociações da COP são justamente para isso, para os países mostrarem o que têm feito em termos de suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Mas, pelo que li nas notícias, apenas 62 países mandaram seus resultados até agora, cerca de um terço do total, e alguns membros da União Europeia ainda não enviaram seus valores. O que se espera agora, na COP, é algo como uma professora que vai avaliar tarefas de casa: quem fez, quem não fez, por que, e talvez fazer novas NDCs ou atualizá-las.

Eu vejo a meta de 1,5 °C como a luz amarela de um semáforo. Significa que estamos perto demais do limite

Sua tese de doutorado, no início dos anos 1990, já falava de eventos extremos na Amazônia, e o senhor colaborou com vários relatórios do IPCC. Como as ciências climáticas avançaram desde então?

Marengo: Nos anos 1980, quando eu estava na Universidade de Wisconsin-Madison, o evento extremo mais recente tinha sido o El Niño de 1982 e 1983, que gerou uma grande seca no Nordeste e na Amazônia, os níveis dos rios caíram. Naquela época não tínhamos internet, não se falava empontos de não retorno, o IPCC estava começando [a organização foi criada em 1998, o primeiro relatório saiu em 1990].

Mas, de lá para cá, é uma continuação. Naquela época não discutíamos tanto o efeito humano, nem o desmatamento, porque fazer a modelagem era mais complicado que agora. Mas já havia artigos publicados por professores como o Enéas Salati, o Jagadish Shukla e o Carlos Nobre sobre possíveis efeitos do desmatamento na Amazônia.

As coisas têm evoluído muito nos últimos 30, 40 anos. Muitas vezes se repetem as mesmas análises que foram feitas nos anos 1990, mas com novas fontes de dados, novos satélites, novos modelos. Tem crescido muito o interesse. No final dos anos 1990, veio a ideia de ponto de não retorno [o grau de degradação máximo que um ecossistema como a Amazônia ou o permafrost siberiano suportam antes de decaírem em uma espiral irreversível e se estabilizarem em uma forma diferente da atual]. Já havia a preocupação de que o clima da Amazônia afeta as regiões próximas e também o resto do mundo.

E quais dúvidas os cientistas climáticos ainda têm? Há algum ponto, em especial, que o senhor possa apontar?

Marengo: Um ponto importante, que tem evoluído desde os anos 1990, é o fato de que a Amazônia funciona como um sumidouro de carbono por causa da fotossíntese. Alterações nas temperaturas e na duração da estação seca podem mudar esse efeito: passaria a haver outro tipo de vegetação, que emitiria carbono. O que se sabe é que, se chegarmos a um certo valor de temperatura ou de extensão da estação seca, a floresta pode parar de funcionar como um sumidouro e passaria a funcionar como fonte. Mas ainda há incerteza em relação a quando isso poderia acontecer.

Alguns dizem que já acontece agora, que partes do Leste da Amazônia, em alguns anos de seca, já se comportam como fonte. Mas, para falarmos de uma mudança climática, isso teria que ser permanente. Atualmente, depois de uma seca, a floresta volta a ser um sumidouro. Mas vai chegar um momento em que a floresta já não será mais uma floresta. Não sabemos quando isso pode acontecer. Há outras regiões importantes, como o gelo da Groenlândia subindo o nível do mar em metros, ou o permafrost da Sibéria derretendo, soltando milhões de toneladas de carbono, piorando o efeito estufa e aumentando ainda mais a temperatura do planeta. As incertezas são sobre quando virão essas viradas no clima. Alguns sinais já aparecem.

Nos últimos anos houve uma série de eventos climáticos extremos no Brasil, secas na Amazônia, chuvas no Rio Grande do Sul e no litoral paulista. O Brasil é especialmente vulnerável às mudanças climáticas?

Marengo: Na verdade, todos os países são vulneráveis de uma forma ou outra. O que observamos é que os extremos estão aumentando e todo o Brasil é vulnerável. Mas há uma faixa ao longo do litoral, do Sul até o Nordeste, em que há a maior concentração de população. E quando se fala em concentração, sempre haverá pessoas morando em áreas de risco, perto de um morro, perto de um riacho, córrego ou rio. Como um climatologista que agora trabalha com desastres, quero saber qual chuva pode afetar as pessoas.

Já ocorreram vários extremos de chuva: na frente fria que gerou as inundações no Rio Grande do Sul, uma chuva intensa que afetou o Recife (PE) em maio de 2022, um evento similar em fevereiro de 2022 em Petrópolis (RJ). Houve muitos desastres nos anos quentes de 2023 e 2024, mas o Brasil, neste ano, ainda não registrou algo dessa magnitude. Agora, talvez, haja uma certa tendência de redução da capacidade hídrica no Sudeste, mas não sei se isso vai levar a uma nova crise hídrica.

O Brasil vai sediar a COP. Qual é sua opinião sobre o processo multilateral de gestão climática global? A impressão que dá é que ele não é visto com a urgência necessária.

Marengo: Depois do Acordo de Paris, houve acontecimentos em que os governos precisaram tomar ação imediata. Como a Covid, por exemplo. E aí foi preciso deixar de lado todas as outras agendas, incluindo a ambiental, para salvar vidas em tempo real, de imediato. Mas sempre se levanta o assunto quando se aproxima uma COP, aí todo mundo quer mostrar serviço. Este ano, aconteceu igual.

Vamos deixar claro que a COP não é uma conferência científica, é uma conferência das partes da Convenção Global das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Ou seja: negociações. É claro, haverá eventos científicos e tudo mais, mas o mais importante são as negociações.

Não se trata de discutir se a mudança climática existe ou não. Ela já existe, já gera impacto, há países mais pobres que precisam se adaptar.

Não se trata de discutir se a mudança climática existe ou não. Ela já existe, já gera impacto, há países mais pobres que precisam se adaptar, e os fundos de adaptação são justamente para isso. Só que não se chega a valores definidos para esses fundos porque quem deveria contribuir mais são os países que mais poluíram o meio ambiente — e são eles que querem evitar a responsabilidade histórica, certo?

Isso é sempre um incômodo, é por isso que essas negociações às vezes duram até o amanhecer. Como é a ONU, tem que ser aprovado linha por linha. Essa vírgula não deveria estar aqui, deveria estar ali… É um parto. Nós, cientistas, não temos essa paciência, por isso que quem assume esse trabalho são diplomatas e advogados, porque é uma posição oficial do país. Alguns cientistas podem dizer: “Ah, eu sugiro isso, isso, aquilo”, mas a decisão final vem do Itamaraty.

Desde o Acordo de Paris, houve uma ascensão do negacionismo climático, que alcançou até chefes de Estado, e emergiram tensões geopolíticas que não estavam presentes em 2015. Como conseguimos pôr a pauta do clima acima das demais?

Marengo: É um pouco difícil. O meio ambiente é bandeira de muitos, mas quando acontece uma tragédia, quando acontece a pandemia de Covid, a guerra na Ucrânia ou em Gaza, os governos se dedicam a outras coisas. Nas Nações Unidas, o presidente Trump já falou que as mudanças climáticas são um engodo, uma farsa. É a posição dele, e o pior é que muitos compartilham dessa posição dentro do governo americano. O presidente da Argentina já deixou claro que se alinha com Trump e que acha que mudanças climáticas não existem. E esses negacionismos, obviamente, criam dúvidas.

A margem para dúvida está menor do que antes, porque a natureza já nos mostrou impactos fortes. Se nada for feito em dez anos, os próximos dez serão piores

Mas eu acho que agora a margem para dúvida está menor do que antes, porque a natureza já nos mostrou impactos fortes. Não é algo pontual. Se nada for feito em dez anos, os dez anos seguintes serão piores. Temos que encontrar uma forma de neutralizar o discurso dos negacionistas, porque há um forte lobby das companhias de petróleo.

Aqui no Brasil existem um ou dois negacionistas que têm certo peso entre alguns setores do agronegócio, já fui a congressos em que senadores disseram “ah, tal professor disse que isso é mentira”. E aí, você sabe como é: quem critica o negócio passa a ser considerado antibrasileiro. Precisa haver um certo equilíbrio para deixar todo mundo feliz sem alterar o planeta.

Eles acham que, como têm dinheiro, têm formas de irrigação por pivô central ou por goteio, estão salvos. Mas todas essas estratégias precisam de água, de rios, e eles seguem secando. Então eles [o agronegócio] serão os maiores impactados.

O meio-ambiente passou a ser também um tema político. É bom que todos estejam informados, que os estudantes saibam um pouco disso, porque é algo que motiva as novas gerações a continuar fazendo pesquisas sobre clima e sobre desastres. Se os extremos aumentarem, mais pessoas vão morrer. Vamos precisar de novos métodos, sensores, técnicas. Ou seja: precisamos motivar mais gente a trabalhar com isso. E é assim que neutralizamos os negacionistas.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Unesp na COP 30 do Jornal Unesp.

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