Como surgiu o mundo? Do que ele é feito? Por que nascemos e morremos? Desde a Antiguidade, a humanidade tenta responder a perguntas como essas. Tais inquietações estão na gênese da filosofia, “a mãe de todas as ciências”. Quando Tales de Mileto, após observar a água em diferentes estados físicos, propôs que esta seria a substância primordial, inaugurou um novo modo de conceber o mundo estribado no pensamento racional, sem recorrer a deuses ou mitos.
E neste século 21, a filosofia parece estar um pouco mais em evidência no Brasil. Por aqui, pelo menos meia dúzia de intelectuais com formação nesta área alcançou um papel de destaque na vida cultural nacional, e levam suas reflexões, supostamente embasadas em ideias filosóficas, a dezenas de milhares de pessoas por meio de palestras, livros, colunas de jornal, redes sociais etc. Em paralelo, tornaram-se comuns no YouTube canais que discutem o pensamento de filósofos e até oferecem cursos livres de filosofia a quem quiser se aprofundar um pouco mais, porém sem ter que passar pelos bancos da universidade.
Para conversar sobre a filosofia no Brasil do século 21, o podcast Prato do Dia recebeu Kleber Cecon, pesquisador em Filosofia da Ciência e docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília.
Cecon explica que a filosofia se distingue de outras áreas da academia por não possuir um método único, ou mesmo um objeto de estudo bem definido. Diferentemente do que acontece nas ciências duras ou nas humanidades, o pensamento filosófico se renova a cada nova tentativa de compreender o mundo. “Mesmo entre os próprios filósofos, não há um acordo sobre o que é filosofia. Ela é construída historicamente, a partir dos problemas que a tradição foi deixando em aberto como, por exemplo, o que é bom, belo ou verdadeiro”, diz. Esses problemas estruturam os campos da ética, da estética e da lógica e atravessam desde a filosofia antiga até as reflexões contemporâneas.
O docente diz que o aprendizado da filosofia passa também por compreender as diferentes escolas de pensamento e seus contextos culturais, e pondera que, embora busque universalidade, a filosofia sempre se desenvolve em diálogo com as culturas nas quais está inserida. “É possível pensar em filosofias particulares, mas todas elas tentam pensar questões universais recolocadas dentro de um determinado parâmetro cultural”, diz.
Questões práticas
Quanto ao crescimento do interesse por filosofia fora do âmbito da Universidade, o professor de filosofia enxerga aí um movimento de busca por respostas para questões práticas da vida. Em particular, as obras escritas pelos filósofos estoicos – corrente que propõe ensinamentos para alcançar a felicidade através da virtude, do autocontrole e da aceitação do que não se pode controlar – ampliam o alcance de algumas mensagens. “O estoicismo funciona muito bem como dicas de vida, uma espécie de auxílio. Acho que estamos em tempos em que isso chama muito a atenção das pessoas”, diz.
Ainda assim, o professor alerta para as diferenças entre a filosofia acadêmica e os debates filosóficos “de internet”. Segundo Cecon, muito do que circula na rede se aproxima mais de uma conversa do que de uma investigação filosófica profunda. “Você pode ter um texto que apresenta alto grau de erudição, mas que não precisa ser, necessariamente, filosófico”, diz.
Filosofia como opção de trabalho
A procura pelo curso de graduação em filosofia, no entanto, ainda não reflete este interesse observado em outras esferas. O docente diz que a decisão do governo federal, em 2008, de tornar a filosofia uma disciplina obrigatória no ensino médio ensejou um expressivo aumento na relação candidato–vaga do vestibular. “As pessoas buscaram o curso de filosofia interessadas nas possibilidades de trabalho”, explica. Em 2017, porém, uma nova administração federal reverteu a decisão, e a busca pelo curso decresceu. “O que regula essas altas e baixas não é tanto o interesse pela filosofia, mas a disponibilidade do mercado de trabalho”, avalia.
A área de pesquisa do docente envolve a história da ciência e o desenvolvimento das sociedades científicas. Mais recentemente, ele vem se debruçando sobre o relacionamento entre a esfera dos pesquisadores e a sociedade em geral.
Ele explica que esse relacionamento pode resultar em posições extremadas, o que gera resultados indesejados. Dois exemplos desses extremos são o cientificismo, no qual a ciência se arroga poder absoluto, e o negacionismo, no qual o conhecimento acumulado é simplesmente ignorado. O ideal é que o relacionamento entre ambas as esferas se desenvolva no sentido do diálogo, e não da submissão de um a outro, estabelecendo um equilíbrio.
Nesse modelo, a ciência contribui por meio de orientação e de subsídios para a tomada de decisões, enquanto a sociedade preserva sua autonomia, podendo buscar múltiplas opiniões antes de agir. O conhecimento científico é um recurso para orientar escolhas, não um instrumento de controle. “A sociedade científica é parte da sociedade humana; não manda na sociedade, faz parte dela.” “A sociedade deve tomar suas decisões de forma livre, em um processo comunicativo e democrático, podendo consultar a ciência e levar em conta seus pareceres”, acredita.
Ouça a entrevista completa com o professor Kleber Cecon no podcast Prato do Dia, disponível nas principais plataformas de áudio e no player abaixo.