Canto antecipado, comida no lixo, ninhos em prédios: pesquisas mapeiam adaptações de aves para viver em metrópoles

Caso do sabiá-laranjeira, que passou a fazer vocalizações de madrugada para driblar o ruído do cotidiano, é exemplo dos percalços que a fauna silvestre enfrenta ao tentar a sorte no habitat urbano. Mas as ruas também oferecem boas oportunidades de sobrevivência, que muitas espécies de pássaros exploram com sucesso.

O sabiá-laranjeira, um pássaro de 23 cm comum nas metrópoles brasileiras, é conhecido por cantar a plenos pulmões poucas horas antes do amanhecer. O canto é uma ferramenta destinada a atrair as fêmeas da espécie, e tentar transformar esse encontro em uma oportunidade reprodutiva. E a escolha por fazer seu recital de madrugada também é estratégica. O elevado nível de ruído que caracteriza a vida nas maiores aglomerações urbanas, em especial durante o horário comercial, simplesmente impossibilita que as fêmeas escutem a melodia. Já em cidades menores ou na natureza, essa ave de peito ruivo pode soltar a voz num horário mais tardio.

Alguns anos atrás, as dificuldades do sábia-laranjeira com o ruído urbano foram abordadas por diversos veículos de imprensa graças a um projeto de ciência cidadã chamado A Hora do Sabiá, iniciado em 2013. O biólogo Sandro von Matter coletou dados com auxílio de milhares de voluntários não especialistas em diversas cidades dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, e concluiu que o canto do animal nas metrópoles se inicia até cinco horas antes, em relação às cidades menores, interioranas.

Não há um artigo que aborde os horários do sabiá publicado em um periódico científico, mas pesquisadores consultados pelo Jornal da Unesp confirmam que os efeitos ensejados pelas cidades sobre a rotina desses pássaros. Na verdade, há evidências semelhantes coletadas mundo afora.

Em um artigo publicado na Science, uma dupla de biólogos americanos analisou 60 milhões de amostras de canto coletadas de 583 espécies de pássaros diurnos, e conclui que elas estão prolongando seu canto por uma média de 50 minutos diários. O artigo atribuiu o fenômeno principalmente à luz artificial das cidades, que engana o relógio biológico da fauna fazendo parecer que ainda é dia.

Esse resultado, porém, se baseia em dados de pássaros de regiões temperadas, em que a extensão do dia varia perceptivelmente ao longo do ano (em Londres, o Sol se põe às 16h em dezembro e às 21h em julho). Isso significa que a fauna local é sensível à duração da luz. Em locais mais próximos do Equador — como no Norte do Brasil —, o tempo total de luz solar é praticamente fixo ao longo do ano, e faz sentido levantar a hipótese de que outras variáveis interfiram mais no comportamento dos pássaros.

Pesquisadores da Fundación Chimbilakom, dedicada à preservação da biodiversidade na Colômbia, analisaram o canto de tico-ticos (Zonotrichia capensis) em 33 pontos da capital Bogotá e concluíram que a poluição sonora é mais relevante que a luminosa: indivíduos de lugares mais ruidosos começam, de fato, a cantar mais cedo — mas a presença de luzes artificiais não tem o mesmo efeito. Por lá, a variação na duração dos dias ao longo do ano é de apenas 21 minutos. O artigo foi publicado no periódico Royal Society Open Science.

Em BH, espécies diferentes selecionam ruas com perfis distintos

O horário e a duração das melodias é só um dos indicadores de como as cidades interferem na rotina das aves. Em um trabalho publicado em 2023 no periódico Landscape and Urban Planning, o ornitólogo João Carlos Pena, pesquisador do Centro de Estudos Ambientais (CEA) no câmpus da Unesp em Rio Claro, descreve como ambientes urbanos variados atraem ou afastam diferentes tipos de espécies aladas. Ele e seus colegas coletaram dados sobre 73 variedades de pássaros em 60 pontos no centro e no sul da capital mineira de Belo Horizonte.

Pena concluiu que em áreas arborizadas, silenciosas e com construções mais baixas, como parques e ruas residenciais, há um predomínio de espécies de menor porte com ninhadas maiores. Pássaros que se alimentam principalmente de néctar são mais comuns por causa da maior presença de flores, bem como espécies acostumadas a forragear no chão ou em plantas baixas como arbustos. Por fim, a biodiversidade é maior, e representantes da fauna nativa são mais frequentes do que aves originárias de outras partes do planeta.

Por outro lado, locais que apresentam prédios mais altos e maior circulação de pessoas têm menos biodiversidade e mais espécies de grande porte, que costumam ser onívoras, insetívoras ou frugívoras. Trata-se de um contexto mais propício a animais generalistas, de hábitos flexíveis, como as pombas. As aves do centrão das cidades tendem a fazer ninhos em árvores e explorar menos o nível do solo. Por fim, a população de espécies nativas é menor em relação à de não nativas (um exemplo numeroso de bicho estrangeiro é o pardal, oriundo da Eurásia). 

“A cidade funciona como um filtro ambiental”, explica Pena. “Por exemplo: aves com bicos específicos podem ser selecionadas por causa do tipo de alimento que elas encontram ali. Mesmo o lixo pode ser uma alternativa para algumas espécies também que conseguem explorá-lo.” E os dados listados nos parágrafos anteriores demonstram que esse filtro não é homogêneo: cada bairro tem um conjunto de características que beneficia ou coíbe animais conforme suas características. A diversidade não necessariamente está restrita às bordas da cidade ou a manchas verdes maiores.

Os prós e contras da vida urbana

Muito além de pombas, há centenas de espécies de pássaros que frequentam e habitam as cidades brasileiras. O Inventário da Fauna Silvestre do Município de São Paulo de 2024, por exemplo, lista 523 variedades. O público não especialista está alheio à presença da maioria delas.

“Em um trabalho que publicamos em 2024 sobre percepção de aves, demonstramos que as pessoas até conseguem identificar as espécies mais abundantes na cidade — mas que, na loucura do dia a dia, não param para observar com calma a biodiversidade ao redor”, explica Pena. (Leia mais sobre este trabalho nesta outra reportagem do Jornal da Unesp.)

Esses animais se dão ao trabalho de viver entre nós porque a natureza nem sempre é uma boa opção. “As cidades e as plantações ao redor são lugares com muito alimento. Não é fácil encontrar comida, especialmente em épocas secas”, explica Marco Pizo, professor do Instituto de Biociências (IB) do câmpus da Unesp em Rio Claro.

A disponibilidade de alimento compensa perigos urbanos como, por exemplo, a abundância de predadores como gatos e gambás e o perigo de colisões com vidros. “Temos acompanhado, no campus da Unesp de Rio Claro, ninhos de avoante (um pombo de nome científico Zenaida auriculata), e mais de 70% são predados”, diz Eduardo Guimarães, pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Biociências (IB) do câmpus da Unesp em Rio Claro.

Nem todo animal se adapta ao burburinho. Espécies muito sensíveis a luz, ruído ou com exigências muito específicas para a construção de ninhos são alguns exemplos de perfis que não dão match com a selva de pedra. Por outro lado, existem penudos que já descobriram as benesses da vida em apartamento:

“A gente tem notado que o sabiá-barranco constrói muitos ninhos em prédios”, conta Pizo. “Ainda é só uma suspeita, mas nós acreditamos que esses lugares tragam algumas vantagens. São protegidos da chuva e do vento, podem durar muitos anos e têm uma temperatura mais estável por causa do concreto.” Dados preliminares indicam que os indivíduos que vivem nesses ambientes alcançam maior sucesso reprodutivo do que seus colegas silvestres.

A crise dos pardais

Na contramão dos sabiás de ambientes urbanos, os já mencionados pardais (uma espécie do Velho Mundo trazida para o Brasil no século 19 que se tornou corriqueira nas cidades) não são fãs de inovações arquitetônicas, e podem estar encarando uma crise populacional grave por causa deste e de outros fatores.

Eles gostam de fazer ninhos nos vãos de telhados tradicionais, com telhas de cerâmica vermelha, calhas e beirais — e não se adaptam tão bem a construções contemporâneas sem cavidades desse tipo. Luís Fábio Silveira, curador do Museu de Zoologia da USP, explica que mesmo uma mudança no modelo de semáforo predominante nas metrópoles brasileiras, com menos vãos e buracos, acabou eliminando um local de nidificação valioso.

Não há dados sólidos sobre o declínio dos pardais especificamente no Brasil, mas o guia estadunidense Birds of North America registrou uma queda de 2,6% por ano, em média, na população destes animais nos EUA desde o final da década de 1960.

Por sua vez, este artigo publicado no Journal of Ornithology identifica uma situação similar em áreas rurais do norte da Europa, e atribui o problema à eficácia do agronegócio contemporâneo: cada vez menos grãos se perdem na colheita e no transporte, o que diminui a disponibilidade de alimento. A mesma publicação reconhece, porém, que “o declínio nas áreas urbanas tem sido objeto de muita especulação, mas as razões não são bem conhecidas”. Uma possibilidade curiosa aventada pelo paper é que a substituição de cavalos por automóveis ao longo do século 20 diminuiu a quantidade de ração e de matéria orgânica disponíveis nas ruas, e que esse material era uma fonte valiosa de sementes na alimentação dos pardais.

Metrópoles são laboratórios de seleção darwiniana, em que alguns animais têm características ideais para lidar com a vida no asfalto, enquanto outras não conseguem prosperar. Em Belo Horizonte, por exemplo, 41,2% do total de espécies de aves encontradas na natureza aparece também no perímetro urbano. Em suma: “dependendo da forma como a gente vai construindo nossa cidade, oferecendo recursos para os bichos, a gente pode favorecer ou não determinadas espécies”, diz Pena.

Imagem acima: pardal em cidade. Crédito: Deposit photos