Há quase um ano, escrevi sobre as posições absurdas — e anticientíficas — do então futuro secretário (ministro) do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) dos Estados Unidos, Robert F. Kennedy Jr. Entre elas estavam seu posicionamento antivacina; as intenções de transformar a alimentação dos americanos ao, basicamente, substituir óleos vegetais por sebo bovino; e acreditar que a fluoretação do suprimento público de água seria causa de problemas de saúde, entre outros despautérios.
Meu plano para este artigo era revisar quais ações foram executadas em um ano de governo e comentar seus impactos nos órgãos sob a égide do HHS. A ideia era mostrar como a presença de uma figura que não entende — ou pior, acha que entende — como a ciência opera pode, em pouquíssimo tempo, destruir a confiança nas instituições; ampliar a circulação de desinformação sobre saúde; cercear a tão prezada “liberdade de expressão” quando os trabalhos científicos não refletem sua opinião; e, em síntese, tornar-se um verdadeiro perigo à saúde pública — algo que vivenciamos no governo Bolsonaro durante a pandemia ou, mais recentemente, na aprovação da ozonioterapia pelo CFM.
Contudo, duas situações me obrigaram a alterar o roteiro e refletir sobre como é possível um movimento — e, principalmente, uma figura — dedicar-se tanto a um “trabalho incansável para estar sempre errado”.
A primeira foi a declaração de que, até setembro — mês em que estamos — ele e sua equipe conduziriam testes e pesquisas massivas para determinar as causas do autismo, eliminar os fatores de exposição e encontrar uma possível cura para os sintomas.
A segunda foi a publicação recente do relatório Make America Healthy Again, voltado a “tornar as crianças mais saudáveis”, no qual se apresenta um panorama da crise enfrentada pelos pequenos, os fatores que a impulsionam e os esforços futuros para saná-la — alerta: trata-se de uma mistura de poucas verdades com muitas pseudociências.
Ambas são problemáticas por inúmeros fatores e devem ser tratadas em artigos separados. No caso de hoje, vamos nos ater à causa — equivocada — do autismo e ao motivo pelo qual a propagação desse discurso pode gerar graves danos à saúde de gestantes e crianças.
Em busca da causa do autismo
Antes de iniciarmos esta seção, é importante destacar: não existe uma causa única para o autismo não sindrômico (Transtorno do Espectro Autista – TEA – sem associação com síndromes genéticas conhecidas). Trata-se de um transtorno multifatorial.
Tendo isso explicado, antes mesmo da revelação bombástica da — suposta — causa do autismo, RFK Jr. já afirmava que investigaria todas as possibilidades: vacinas, sistema alimentar, água, ar e até estilos de criação de filhos. Em uma coletiva de imprensa realizada em abril de 2025, Kennedy Jr. declarou: “o autismo era uma doença evitável e sabíamos que era causado por exposições ambientais; já que genes não causam epidemias. Eles (genes) podem gerar uma vulnerabilidade, mas é necessária uma toxina ambiental” — em tradução livre.
Agora, em setembro, o tão aguardado pronunciamento finalmente ocorreu e, para minha surpresa, foi muito pior do que eu imaginava. O anúncio começou com Trump abraçando mentiras propagadas pelo movimento antivacina. Partindo da mesma suposição espúria de que o aumento dos casos de autismo só poderia ser causado por algo “artificial” que as pessoas consomem, citou a comunidade Amish, uma cultura religiosa cristã-protestante conservadora.
Repetiu o mito de que nesse grupo não ocorrem casos de autismo, associando a suposta “imunidade” dos Amish a sua – também suposta – recusa em usar medicamentos modernos e tomar vacinas. Há várias camadas de falsidade aí: primeiro, embora a taxa de vacinação entre os Amish seja menor do que a da população em geral, eles não recusam vacinas por princípio; segundo, existe autismo entre os Amish, embora numa taxa inferior à da população em geral, diferença normalmente atribuída à forma como essa comunidade interpreta o comportamento das crianças: a causa estaria na busca por diagnóstico, não na presença (ou não) do transtorno.
Em seguida, anunciou que a FDA notificaria médicos sobre o uso de acetaminofeno (princípio ativo do Tylenol, conhecido no Brasil como paracetamol) durante a gestação, alegando que estaria associado a um risco elevado de autismo. Segundo Trump, o medicamento só deveria ser prescrito em doses muito baixas, por períodos curtíssimos e apenas em casos extremos, como febres elevadas. Além de ser uma completa estultice — considerando que febres podem ser perigosas para o feto —, esse raciocínio ainda transfere à mãe a culpa pelo possível transtorno.
Mas ele foi além, afirmando que, em sua visão, a gravidez deveria ser totalmente livre de paracetamol. Defendeu também que nem as crianças deveriam utilizá-lo após receberem vacinas. O presidente dos Estados Unidos repetiu diversos outros pontos “clássicos” do manual de propaganda antivacinas, dando voz a temores infundados que cientistas sérios vêm tentando debelar há décadas, como os contra a presença de mercúrio (na verdade, o conservante timerosal, considerado universalmente seguro) e alumínio em alguns imunizantes.
Contudo, uma das maiores atrocidades foi o comentário sobre a vacina contra a hepatite B. Trump argumentou que, por se tratar de uma doença sexualmente transmissível, a vacina só deveria ser administrada aos 18 anos. Esqueceu, porém, que mães infectadas pelo vírus podem transmiti-lo para os filhos, seja durante o parto ou em situações cotidianas após o nascimento.
Ao final de sua primeira participação, quase gritando, pediu que não se utilizasse paracetamol, destacando que existem partes do mundo, como Cuba, que não usam o medicamento por falta de recursos e, supostamente, apresentam índices muito baixos de autismo.
Após essa apresentação, RFK Jr. tomou a palavra. Afirmou que, durante 20 anos, os Institutos Nacional de Saúde (NIH) concentraram-se apenas em pesquisas politicamente motivadas e infrutíferas, focadas em supostos marcadores genéticos para o autismo, sem chegar a uma conclusão concreta sobre a causa da “epidemia”. Por isso, destacou que estão substituindo a cultura institucional de “ciência politizada e corrupta” por uma abordagem de medicina “baseada em evidências”.
Destacou que estudos indicam que a deficiência de folato no cérebro de bebês e crianças pequenas pode contribuir para o desenvolvimento do autismo, e que cerca de 60% das crianças com TEA e deficiência de folato podem apresentar melhora na comunicação verbal ao receber leucovorina (também conhecida como ácido folínico — abordaremos o tema com mais detalhes adiante).
Em seguida, apareceu o líder dos NIH, Jay Bhattacharya, que anunciou o lançamento do Autism Data Science Initiative, uma iniciativa que utilizará recursos de dados em larga escala para investigar as causas e o aumento da prevalência do TEA. Com mais de US$ 50 milhões em financiamento, 13 projetos irão integrar dados de diferentes aspectos possivelmente relacionados ao autismo.
Logo depois, o diretor da FDA, Martin Makary, citou estudos observacionais para afirmar que o paracetamol aumenta o risco de autismo na gravidez. Também anunciou que a FDA mudará a bula de um tratamento experimental, tornando-o disponível para crianças com autismo e deficiência de folato, baseado em pesquisas que indicam que até dois terços das crianças com essa deficiência e TEA apresentam melhora significativa nos sintomas.
Na sequência, apareceu o Dr. Oz — sim, a figura televisiva que caiu de paraquedas no governo americano — afirmando que o CMS, agência federal que agora dirige, garantiu que, graças à alteração da FDA, programas estaduais de seguro de saúde, como o Medicaid e o CHIP (o programa de seguro de saúde das crianças) poderão passar a cobrir a leucovorina para crianças com autismo, desde que o medicamento seja prescrito por um médico.
Por fim, vale mencionar a presença de duas mães de filhos dentro do espectro, convidadas para comover o público e reforçar a imagem de um governo supostamente preocupado.
Conexão paracetamol
Diante de tantas afirmações descabidas, resolvi conferir as fontes primárias. Para minha surpresa, encontrei uma matéria publicada em 9 de setembro na revista The Atlantic que demonstrou, em partes, como foi que o governo chegou ao “verdadeiro culpado” do autismo. Segundo a notícia, RFK Jr. — e, de certa forma, o governo — está apenas propagando uma versão da visão de outro outsider, William Parker, um bioquímico e imunologista que durante muitos anos tentou convencer outros cientistas de sua teoria: o paracetamol seria a principal causa do autismo.
A produção acadêmica de Parker nessa área é limitada, mas três trabalhos ajudam a entender sua tese: “The Dangers of Acetaminophen for Neurodevelopment Outweigh Scant Evidence for Long-Term Benefits”, “Paracetamol (Acetaminophen) Use in Infants and Children Was Never Shown to Be Safe for Neurodevelopment: A Systematic Review with Citation Track” e “An Interview with Dr. William Parker on the Connection between Acetaminophen and Autism”.
Parker afirma que, embora o paracetamol possa ser relativamente seguro para bebês e crianças saudáveis, uma parcela dessa população apresenta neuroinflamação e, por isso, torna-se mais suscetível a lesões do neurodesenvolvimento, como o TEA, ao receber doses desse fármaco.
Segundo ele, o período mais crítico é o início da gestação, quando o fígado ainda não está plenamente funcional. Contudo, ressalta que ainda não há evidências conclusivas de que o uso do acetaminofeno durante a gravidez seja capaz de causar TEA.
Parker também afirma que a mídia favorece uma narrativa incorreta sobre a causa do TEA, ignorando evidências e baseando-se exclusivamente em um número limitado de estudos observacionais.
Ele declarou à The Atlantic que tinha “99,99% de certeza” de estar correto e que bastaria suspender o uso do medicamento em crianças para que 95% dos casos desaparecessem, sendo os 5% restantes reclassificados como outro transtorno. Contudo, quando solicitado a mencionar outros cientistas que apoiassem sua teoria, não conseguiu citar nenhum.
Infelizmente, a narrativa de Parker encaixa-se perfeitamente no filtro ideológico de RFK Jr.: atribui a culpa a um produto da indústria farmacêutica, parece de fácil solução — bastaria eliminar a “causa” — e, sobretudo, conecta-se de forma indireta à teoria conspiratória das vacinas. Parker não afirma que vacinas causam autismo, mas ressalta que o paracetamol é amplamente usado para controlar febre e dor pós-imunização.
Então?
Recentemente, foi publicada a pesquisa “Evaluation of the Evidence on Acetaminophen Use and Neurodevelopmental Disorders Using the Navigation Guide Methodology”, cujo objetivo foi avaliar de forma abrangente a influência do uso pré-natal de paracetamol sobre o desenvolvimento cerebral, com foco nos transtornos do espectro autista.
O diferencial do estudo é a aplicação do Navigation Guide, método que recolhe evidências vindas de diferentes linhas de pesquisa, combinando estudos observacionais em humanos e experimentais em animais.
A revisão incluiu 46 estudos; especificamente sobre TEA, foram analisados 8, dos quais 5 relataram associações positivas, 1 apresentou resultados mistos e 2 não mostraram associação.
A maioria indicou relação entre uso pré-natal de paracetamol e TEA. Muitos controlaram fatores de confusão, como idade materna, doenças, consumo de álcool, tabagismo, drogas, genética, entre outros. Alguns utilizaram métodos mais robustos, como detecção do fármaco no plasma ou urina materna, avaliação de dose-resposta e cegamento em estudos prospectivos. As associações persistiram após ajustes, sugerindo efeito real, embora não se descarte confusão residual.
Em modelos experimentais, observou-se plausibilidade biológica para efeitos adversos do paracetamol no cérebro fetal. Além disso, como disruptor endócrino, o fármaco pode interferir em processos hormonais críticos, afetando o desenvolvimento neural e reprodutivo e causando potenciais danos à placenta.
Os autores concluem haver evidências consistentes de associação entre exposição pré-natal ao paracetamol e risco de TEA e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Essa relação é plausível pela consistência dos resultados, controle de vieses, efeitos biológicos conhecidos e tendência temporal: desde que o paracetamol passou a ser o analgésico recomendado na gestação, taxas de TEA e TDAH aumentaram mais de 20 vezes.
Mas há limitações apontadas pelos próprios autores que indicam que essa conclusão deve ser interpretada com cautela. Por exemplo, o “Navigation Guide” atribui peso igual a todos os domínios analisados para avaliar a qualidade da evidência, o que pode dificultar a distinção entre estudos com problemas metodológicos leves e aqueles com falhas mais graves.
Outra limitação é que, embora os estudos tenham ajustado as análises para os confundidores mais relevantes, é possível que existam outras variáveis de confusão residuais ou não mensuradas, particularmente a confusão por indicação. Basicamente, atribui-se o desfecho observado ao paracetamol quando, na realidade, o fator determinante pode ser a própria condição para a qual o medicamento foi prescrito — como uma infecção, dor de cabeça ou outra doença de base.
É igualmente relevante destacar que, embora o paracetamol tenha sido associado a possíveis riscos ao neurodesenvolvimento — o que não parece se confirmar, já que os estudos apontam apenas correlação, não causalidade —, ele continua sendo recomendado para gestantes por apresentar um perfil de segurança relativamente favorável em comparação a outros fármacos, como os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), que podem ter efeitos teratogênicos. Além disso, febre e dor não tratadas durante a gestação oferecem riscos, incluindo defeitos do tubo neural e parto prematuro.
Diante disso, os próprios autores, ainda que reconheçam potenciais riscos, defendem o uso criterioso do paracetamol: sempre na menor dose eficaz, pelo menor tempo possível, sob orientação médica e considerando a avaliação individual de risco-benefício — em vez de uma restrição generalizada.
Por fim, embora os pesquisadores tenham incluído na revisão um estudo publicado no periódico JAMA em 2024, conduzido na Suécia, e apontado suas limitações, considero que esse trabalho mereça atenção especial.
Trata-se do “Acetaminophen Use During Pregnancy and Children’s Risk of Autism, ADHD, and Intellectual Disability”, que investigou o uso de paracetamol durante a gravidez e o risco de autismo, TDAH e deficiência intelectual em uma coorte de quase 2,5 milhões de nascidos na Suécia.
O estudo incluiu todos os nascidos vivos únicos na Suécia entre 1995 e 2019 (2.489.721), acompanhados até 2021, sendo que após exclusões, a amostra final foi de 2.480.797 indivíduos.
O uso de paracetamol na gestação foi identificado no Registro Médico de Nascimentos, a partir de entrevistas no pré-natal e registros médicos; a partir de 2005, o Registro Médico de Nascimentos foi complementado com dados do Registro de Medicamentos Prescritos, que contém informações de todos os fármacos prescritos na Suécia.
A principal métrica foi o uso de paracetamol em qualquer momento da gravidez.
Das 2.480.797 crianças, 185.908 (7,49%) foram expostas ao paracetamol, sendo que esse grupo apresentava maior frequência de baixo status socioeconômico, IMC materno elevado, tabagismo, condições psiquiátricas e uso concomitante de outros medicamentos.
Durante seguimento mediano de 13,4 anos, 188.929 crianças (7,62%) receberam diagnóstico de algum transtorno do neurodesenvolvimento: 2,76% de autismo, 5,9% de TDAH e 0,99% de deficiência intelectual. Idades medianas ao diagnóstico foram 11,6 anos (autismo), 12,2 anos (TDAH) e 8,2 anos (deficiência intelectual).
Análises iniciais mostraram risco ligeiramente maior de TEA, TDAH e deficiência intelectual entre crianças expostas, mas com pequenos riscos absolutos. Para reduzir vieses, conduziu-se uma análise entre irmãos biológicos (total de1.773.747), controlando fatores genéticos, ambientais e socioeconômicos compartilhados.
Nessas análises, não houve associação entre paracetamol e nenhum dos desfechos. Simulações adicionais indicaram que, mesmo com subnotificação, seria improvável que erros de mensuração explicassem a ausência de associação.
Associações iniciais também foram observadas para outros analgésicos, mas desapareceram nas análises com irmãos, com exceção da aspirina, que mostrou associação inversa com todos os desfechos.
Quanto ao padrão de dose-resposta, gestantes com maior uso de paracetamol apresentavam mais diagnósticos psiquiátricos, uso de outros medicamentos e indicações clínicas, além de diferenças sociodemográficas.
Com base nesses achados, os autores concluem que as análises entre irmãos não encontraram evidências de associação entre o uso de paracetamol na gestação e o risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual, sugerindo que os pequenos aumentos observados em modelos convencionais derivam de confundimento não mensurado.
Entre as limitações do estudo, destaca-se que, embora os diagnósticos de autismo tenham sido validados em uma subamostra (83 de 88 indivíduos diagnosticados pelo DSM-IV confirmados), os diagnósticos de TDAH e deficiência intelectual não foram validados.
Ademais, a avaliação da exposição apresentou algumas limitações. Por exemplo, os dados do Registro Médico de Nascimentos registravam apenas se a gestante havia utilizado paracetamol, sem informações sobre dose, duração ou momento do uso. De forma semelhante, os registros de prescrição podem não refletir o uso efetivo do medicamento adquirido e ingerido.
Observou-se também que apenas 7,49% das gestantes relataram uso de paracetamol durante a gravidez, um valor inferior ao observado em alguns estudos, possivelmente sujeito à subnotificação. No entanto, mesmo grandes erros de mensuração da exposição dificilmente explicariam a ausência de associações nas análises com controle entre irmãos.
Em outras palavras, mesmo a análise mais conservadora não sugere a eliminação completa do uso de paracetamol. A recomendação permanece a prática padrão: conversar com o médico antes de utilizar o medicamento, limitar o uso a doses baixas e por curtos períodos, lembrando que os riscos de recorrer a outros fármacos ou de deixar condições maternas sem tratamento são significativamente maiores do que o temor — infundado — de aumento no risco de autismo ou outros transtornos.
E a suposta cura?
Antes de discutir a leucovorina, é importante lembrar que a suplementação de ácido fólico (vitamina B9 sintética) é recomendada para mulheres que desejam engravidar, prevenindo defeitos do tubo neural, como a espinha bífida. No Brasil, a fortificação de farinhas de trigo e milho é obrigatória desde a Resolução 640/2022 (140–220 mcg/100 g); nos EUA, a FDA exige fortificação de produtos de grãos desde 1998 (95–309 mcg/100 g).
Falando especificamente da leucovorina (também conhecido como ácido folínico), trata-se de um medicamento da classe dos análogos do folato. Suas indicações reconhecidas — ao menos com base nas evidências de segurança e eficácia — restringem-se ao tratamento da anemia megaloblástica (um tipo de anemia caracterizada pela produção de hemácias grandes, decorrente de deficiência de vitamina B12 ou folato) e à proteção de células saudáveis contra os efeitos do metotrexato (um fármaco utilizado na quimioterapia). Ou seja, até o momento, ela não é recomendada para o tratamento do TEA.
Como o folato é um nutriente essencial, envolvido em múltiplos processos fisiológicos e bioquímicos relevantes, e sua deficiência está associada a doenças neurológicas, cardiovasculares e ao aumento do risco de defeitos do tubo neural, muitos pesquisadores passaram a investigá-lo no contexto do TEA.
Nesses indivíduos, observou-se que determinadas alterações genéticas podem comprometer o metabolismo do folato. Estudos iniciais em diferentes modelos, incluindo humanos, identificaram que alguns indivíduos com TEA apresentam polimorfismos genéticos que reduzem a eficiência do nutriente.
Com base nessa hipótese, sugeriu-se que a correção dos níveis de folato poderia, ao menos, amenizar os sintomas do TEA. Alguns estudos preliminares e relatos de caso observaram que altas doses de ácido folínico melhoraram os sintomas de crianças autistas com baixas concentrações de folato no líquido cefalorraquidiano.
Diante dessas observações iniciais, vários pesquisadores passaram a investigar se tal intervenção poderia, de fato, ser útil no tratamento de determinados sintomas.
Em tempos normais, eu destacaria que, embora já existam alguns ensaios clínicos randomizados e promissores sobre o tema, o ácido folínico ainda não foi aprovado como fármaco indicado para o autismo. Ensaios clínicos de maior porte, duplo-cegos, controlados por placebo e multicêntricos ainda são necessários para comprovar sua eficácia e segurança a longo prazo.
Infelizmente, não vivemos tempos normais e, ao que tudo indica, a maioria das agências de saúde americanas foi sequestrada por negacionistas; deixando de lado todo o rigor metodológico que os cargos demandam e servindo, simplesmente, de aspones às visões deturpadas tanto do presidente quanto do ministro da Saúde.
Ao menos para mim, isso ficou nítido quando RFK Jr., em um momento de seu pronunciamento, afirmou que “evidências científicas” apontam que crianças com TEA, ao receberem leucovorina, apresentam melhora na comunicação verbal.
De fato, há estudos sugerindo esse efeito, mas, além de serem pequenos — na maioria das vezes com menos de 50 participantes —, seus resultados são preliminares e precisam ser confirmados em ensaios multicêntricos maiores e de maior duração. Também faltam estudos que determinem a dosagem ideal e a segurança do tratamento — nada disso temos até o momento.
Tragicamente, essa evidência frágil foi suficiente para convencer o diretor da FDA, Marty Makary, a aprovar a droga — mesmo sem o rigor metodológico necessário — para o tratamento do autismo. É o equivalente, por exemplo, a liberar cogumelos psicodélicos para o tratamento da depressão simplesmente porque algumas pesquisas iniciais sugerem que eles podem vir a funcionar.
Temo pelo que possa vir a ocorrer. Se, em menos de um ano, tanto estrago já foi feito na saúde, variando de explosões nos casos de doenças decorrentes da falta de vacinas, passando pela tentativa de ressuscitar uma “alimentação ancestral” e, agora, prescrevendo medicamentos não comprovados para um transtorno cuja causa alegam conhecer, não consigo sequer imaginar o que o futuro reserva.
Mas uma coisa fica clara: coloque um negacionista da ciência no comando de um órgão cujo principal instrumento de trabalho é a própria ciência e, surpresa, ele consegue destruir anos de esforço e conquistas duramente alcançadas.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
PARKER, W. et al. The Dangers of Acetaminophen for Neurodevelopment Outweigh Scant Evidence for Long-Term Benefits. Children (Basel). 2023 Dec 29;11(1):44. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38255358/.
SARAFIAN, J. et al. Paracetamol (acetaminophen) use in infants and children was never shown to be safe for neurodevelopment: a systematic review with citation tracking. Eur J Pediatr. 2022 May;181(5):1835-1857. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35175416/.
BAKER, S. An Interview with Dr. William Parker on the Connection between Acetaminophen and Autism. Integrative Medicine. Vol. 23, No. 4. September 2024. Disponível em: https://imjournal.com/oa/pdf/Parker1.pdf.
PRADA, D.; BAUER, A. e BACCARELLI, A. Evaluation of the evidence on acetaminophen use and neurodevelopmental disorders using the Navigation Guide methodology. Environmental Health volume 24, Article number: 56 (2025). Disponível em: https://ehjournal.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12940-025-01208-0.
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Publicado originalmente em Questão de Ciência