Novos componentes do LHC, o maior acelerador de partículas do mundo, usam tecnologia de ponta desenvolvida no Brasil

Sistema elaborado por pesquisadores do SPRACE e fabricado em São Paulo irá monitorar desempenho e boas condições de placas eletrônicas que registram dados de colisões de partículas no CMS, o principal detector do LHC. É a primeira vez que a produção destes componentes envolve uso de código aberto, o que abre portas para aplicação em outras áreas de estudo.

Um ano e meio após ser oficializado como um dos membros associados do CERN, o Brasil dá outro passo importante para firmar-se como colaborador do Grande Colisor de Hádrons (LHC), o maior e mais potente acelerador de partículas do mundo, ao iniciar a produção de novos componentes para o CMS, um dos detectores do acelerador. Chamado de OpenIPMC, o sistema será responsável por monitorar as placas ATCA (Arquitetura de Computação de Telecomunicações Avançada, em português), que dão suporte a toda a parte eletrônica do experimento, processando em tempo real os imensos fluxos de dados gerados nas colisões de partículas e garantindo a eficiência e confiabilidade das operações do CMS.

O anúncio foi feito pelo SPRACE (Centro de Pesquisa e Análise de São Paulo), sediado no Núcleo de Computação Científica da Unesp, câmpus da capital paulista. O SPRACE contribui para a colaboração do CMS ao realizar, em seus supercomputadores, parte da análise dos dados do experimento. Agora, passa a atuar também de forma mais efetiva no desenvolvimento de instrumentação científica. “A especialização em instrumentação científica é fundamental para qualquer grupo de física de altas energias”, diz o físico Sérgio Novaes, que ocupa a função de pesquisador responsável do SPRACE. “O OpenIPMC nos posicionou na vanguarda da instrumentação, abrindo portas para projetos de maior responsabilidade na colaboração internacional e elevando o prestígio de todos os grupos brasileiros no LHC”, diz Novaes, que é docente do Instituto de Física Teórica da Unesp.

As funções do OpenIPMC incluem o monitoramento e a avaliação automatizada do desempenho e da condição das placas eletrônicas que participam da coleta de dados do detector. Ou seja, ele permite acompanhar, em tempo real, informações como temperatura, tensões e correntes — uma tarefa que, dado o grande número de componentes eletrônicos que integram a infraestrutura do CMS, não poderia ser realizada por pessoas. Não é exagero dizer que a coleta de dados é a parte central de qualquer experimento: no caso do LHC, foi graças aos registros das colisões entre partículas que, em 2012, foi possível confirmar a existência do bóson de Higgs, o que evidencia o papel central desempenhado pelo OpenIPMC no âmbito do CMS.

Frente da placa OpenIPMC. Crédito: Luiz Coelho

Para garantir que tudo opere de maneira efetiva e ordenada, qualquer falha ou funcionamento impróprio é detectado pelo OpenIPMC, que, a partir da interação com as placas ATCA, decide ligar ou desligar os componentes para evitar maiores prejuízos. “Se a temperatura se tornar excessiva, o OpenIPMC pode desativar os componentes eletrônicos para evitar que sofram algum dano”, explica Luigi Calligaris, jovem pesquisador da Fapesp, que liderou o desenvolvimento do projeto no SPRACE.

Uma alternativa aberta

Sistemas de gerenciamento IPMC (sigla para Intelligent Platform Management Controller, ou Controlador Inteligente de Gerenciamento de Plataforma, em português) não são novidade. Uma primeira versão desse dispositivo foi publicada pela Intel em 1998 e, desde então, tem recebido atualizações e melhoramentos. Hoje, ele é parte essencial do funcionamento dos data centers, de diversos serviços ligados à indústria de telecomunicações, do desenvolvimento da computação quântica e dos demais setores nos quais é fundamental um alto desempenho no processamento das informações.

Embora essa tecnologia ocupe um lugar central na computação de ponta, cientistas e instituições de pesquisa vinham enfrentando dificuldades para trabalhar com ela, devido às exigências de acordos de confidencialidade e à necessidade de firmar contratos com o setor privado. “Quando começamos a trabalhar nesse projeto, foi preciso comprar uma licença. E tivemos de assinar acordos de confidencialidade a fim de ter acesso ao código, que é necessário para customizar nossas próprias placas”, diz Calligaris, que hoje atua como professor assistente na Universidade de Pisa e como pesquisador no Instituto Nacional de Física Nuclear (INFN), da Itália.

A customização é um ponto-chave no uso do IPMC no CMS. As placas ATCA funcionam de forma que lembra as peças de Lego: há uma base sobre a qual são posicionados circuitos, chips, sensores e todos os componentes necessários para seu funcionamento. A posição das peças, porém, e suas características, variam conforme a função específica de cada placa. Por conta disso, é importante que o IPMC seja customizável, pois é isso que vai garantir a possibilidade de integrar suas funções corretamente.

Luigi Calligaris e o engenheiro eletrônico Carlos Dell’Aquila testando placas OpenIPMC no laboratório de instrumentação científica do SPRACE. Crédito: Luigi Calligaris.

Um dos problemas levantados em ambientes de ensino e pesquisa pelos acordos de confidencialidade é que estes limitavam o acesso aos códigos apenas aos funcionários das instituições, reduzindo o número de profissionais autorizados a desenvolver as customizações. Esse pré-requisito excluía do processo produtivo uma classe importante de colaboradores: os estudantes que participam do experimento. “Em atividades de pesquisa, os estudantes representam o futuro. É preciso treiná-los, ensiná-los a realizar, de maneira independente, os processos necessários para a operação dos experimentos”, diz Calligaris. “Segundo os acordos de confidencialidade, os estudantes sequer poderiam ver os códigos com que estávamos trabalhando. Não era possível trabalhar dessa forma”, diz.

Diante desse entrave, e com a necessidade do uso dessa tecnologia, Calligaris sugeriu a criação do primeiro sistema IPMC de código totalmente aberto. Isso permite que ele seja acessado e utilizado por qualquer pesquisador no mundo e, ao mesmo tempo, preserva a possibilidade de customização para atender às necessidades de diferentes grupos de pesquisa.

E embora o projeto tenha sido originalmente elaborado para atender a uma demanda do CMS, também é possível utilizar o OpenIPMC em outros experimentos. Entre as diferentes aplicações, Calligaris menciona projetos de pesquisa na área de neutrinos e computação quântica. “O OpenIPMC também está sendo utilizado por empresas do setor privado, nos setores de aeronáutica e telecomunicações”, diz.

Parceria entre universidade e empresa

Além do desenvolvimento do OpenIPMC no Brasil, a fabricação dos componentes também vem sendo realizada em solo nacional e está a cargo da empresa Lynx Tecnologia Eletrônica, sob supervisão de Luiz Antonio B. Coelho da Escola Politécnica da USP. A empresa está produzindo um lote de 1.100 unidades que serão necessárias para o CMS, dessas 100 já estão prontas e foram enviadas para o Cern em agosto deste ano, e a expectativa é que o restante seja finalizado no próximo mês.

“As oportunidades de envolvimento de empresas brasileiras nos projetos do CERN aumentaram muito em consequência do ingresso do Brasil como Membro Associado do laboratório em 2024. Essa associação permite que as empresas nacionais assumam licitações e forneçam serviços para o CERN, contribuindo ao desenvolvimento da indústria nacional de alta tecnologia”, afirma Calligaris. Para garantir sua permanência, o governo nacional paga uma anuidade de US$ 12 milhões de dólares ao CERN. É justamente ao assumir licitações que esse valor pode retornar ao país, por meio de contratos firmados entre a instituição e a indústria nacional.

Primeiras 100 placas OpenIPMC enviadas ao Cern, em agosto. Crédito: Luiz Coelho/LYNX

“Esta experiência demonstra que o Brasil pode desenvolver instrumentação de classe mundial. Estamos ajudando a transformar o Brasil de consumidor em fornecedor de tecnologia crítica na fronteira do conhecimento científico”, diz Novaes. “Com o OpenIPMC, demonstramos a nossa capacidade industrial de fabricar tecnologia de ponta para uso no laboratório mais avançado do mundo”, reforça Calligaris.

A previsão é que as placas sejam instaladas ao longo de 2027 e 2028, quando o LHC pausará as operações para iniciar uma fase de atualização que aumentará a quantidade de colisões que o equipamento consegue gerar e, também, a precisão das informações captadas pelo acelerador de partículas, permitindo expandir ainda mais o conhecimento sobre os blocos construtores da natureza. A versão atualizada será chamada de High-Luminosity Large Hadron Collider (Grande Colisor de Hádrons de Alta Luminosidade, HL-LHC) e, dentre as muitas expectativas, está a de testar o Modelo Padrão da física de partículas com um rigor inédito. A teoria é considerada uma das mais bem-sucedidas da física e descreve como as estruturas que compõem o universo são formadas por meio da interação entre 17 partículas elementares.

“Apesar do sucesso do Modelo Padrão, ele ainda não explica alguns dos fenômenos mais curiosos do universo, como a natureza da matéria escura”, diz Calligaris. Esses são alguns dos grandes mistérios que, espera-se que sejam resolvidos com o HL-LHC. “Um dos desafios será pesquisar a manifestação da matéria escura como partículas elementares muito pesadas e, com certeza, essas pesquisas contarão com uma contribuição brasileira significativa.”

Imagem acima: placa OpenIPMC (na frente) instalada em uma placa Apollo, que será utilizada no CMS. Crédito: Luigi Calligaris