O aparecimento de escorpiões dentro de casas, e até de apartamentos, tem preocupado os moradores de centros urbanos do estado de São Paulo. Na capital, apenas em 2025, houve mais de 200 notificações de picadas, e relatos de avistamentos desses animais peçonhentos em bairros da zona leste e da zona oeste ganharam espaço no noticiário.
No interior do estado, a situação é igualmente preocupante. De acordo com dados da Secretaria Estadual de Saúde, no ano passado, os GVE (Grupos de Vigilância em Saúde) de Araçatuba, São José do Rio Preto, Campinas, Piracicaba e Ribeirão Preto registraram o maior número de ocorrências de picadas de escorpião, concentrando 48% do total de casos no estado.
Atentos aos dados epidemiológicos recentes, pesquisadores do Laboratório de Imunologia e Toxinologia da Unesp, no câmpus de Araraquara, procuraram mapear os números sobre os casos ocorridos na última década. Um levantamento junto ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, mostrou um crescimento de 250% em acidentes com escorpiões entre 2014 e 2023, totalizando 1,17milhão de casos.
Crise silenciosa
Mas, além de revisitar o passado, os pesquisadores também buscaram projetar um cenário futuro para acidentes com escorpiões. Para isso, empregaram um modelo matemático denominado ARIMA, que é indicado para análise de séries temporais. A modelagem mostrou que, até o ano de 2033, mais de 270 mil novos casos de escorpionismo devem ocorrer. Os dados foram publicados na forma de um artigo de opinião na revista científica Frontiers of Public Health, em que os especialistas alertam para uma “silenciosa e crescente crise de saúde pública no Brasil”.
Pesquisadora líder do laboratório, a biomédica Manuela Pucca explica que a tendência de aumento no número de acidentes também é observada com outros animais peçonhentos, como as serpentes. Isso está relacionado ao aumento da população e à expansão dos limites urbanos em direção às áreas florestais, que resultam em um maior número de encontros entre humanos e répteis e em mais acidentes.
No caso dos escorpiões, entretanto, esses encontros ocorrem dentro do ambiente urbano, e o aumento no número de casos é ainda maior doque no caso das serpentes. Segundo Pucca, além do aumento populacional, fatores ligados à urbanização e ao aumento das temperaturas em um contexto de mudanças climáticas também têm se mostrado fatores importantes.

Pucca explica que esses aracnídeos se alimentam de insetos em geral, mas têm preferência por baratas. Dessa forma, estruturas precárias de saneamento básico, descarte irregular de lixo ou má gestão de resíduos, problemas recorrentes na maioria dos centros urbanos brasileiros, acabam disponibilizando os alimentos prediletos dos escorpiões. Embora existam mais de 200 espécies de escorpiões no Brasil, a grande maioria dos casos reportados em São Paulo diz respeito ao Tityus serrulatus, conhecido como escorpião-amarelo.
“Esta é uma espécie em que só existem fêmeas, que se reproduzem por partenogênese. Qualquer lugar que lhes ofereça espaço, alimento e água é suficiente para que as fêmeas se reproduzam e gerem até 20 indivíduos por ninhada”, explica Pucca, que também é professora do Departamento de Análises Clínicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, no câmpus de Araraquara.
Do ponto de vista ecológico, o ambiente urbano também é carente de predadores do escorpião. Galinhas, apontadas como consumidoras vorazes do artrópode, são proibidas na cidade, e outro inimigo, as corujas, já quase não são encontradas por aqui. Soma-se a esses fatores a alta capacidade do escorpião para se adaptar às altas temperaturas, cada vez mais frequentes e intensas devido às mudanças climáticas. Em suma, nosso modelo de cidade tem–se tornado um espaço propício para essa praga urbana emergente.
Necessidade de políticas públicas
No artigo, os pesquisadores também apontam a necessidade da adoção de políticas públicas para a conscientização e o combate à praga. “Qualquer criança hoje sabe o que deve ser feito para combater o mosquito da dengue. Elas aprendem na escola ou em campanhas nos veículos de mídia. Mas não vemos esse tipo de tratamento com o escorpião”, questiona a pesquisadora. “Disseminar conhecimento, trabalhar com a educação, seja por meio de campanhas, deveria ser a primeira política para combater a praga.”
Outra abordagem defendida pela equipe liderada pela biomédica consiste na adoção dos mesmos procedimentos de vigilância aplicados, por exemplo, ao inseto barbeiro, que é o transmissor da Doença de Chagas. As orientações em andamento estabelecem que cada pessoa que aviste o inseto comunique o centro de zoonoses, para que uma equipe especializada seja enviada para inspeção do local e controle.
“Também é importante que seja disponibilizada a terapia com anti-veneno em mais centros de saúde, e que se aperfeiçoe o treinamento das equipes de saúde para o atendimento às vítimas. Muitos profissionais hoje não sabem o que fazer diante de uma pessoa que foi picada”, explica.

O Tityus serrulatus é a espécie mais comum na região Sudeste, onde foram registradas quase metade das ocorrências na última década. Trata-se de um escorpião de tom amarelado cujo tamanho não ultrapassa 7 cm. Apesar de pequeno, é a espécie mais venenosa dentre os escorpiões encontrados no Brasil. Sua picada dificilmente representa risco de morte para um adulto, mas pode gerar complicações em crianças menores de dez anos. Se elas forem picadas, devem ser levadas imediatamente para uma unidade de saúde para atendimento médico e, se for o caso, para uso do soro antiescorpiônico.
A pesquisadora conhece bem os escorpiões brasileiros. Antes de ingressar no corpo docente da Unesp, em 2023, Pucca passou sete anos na Universidade Federal de Roraima (UFRR) pesquisando espécies de escorpiões novas—algumas nunca descritas—e realizando estudos sobre envenenamentos por animais peçonhentos no estado do Norte do Brasil.
“Algumas espécies de Roraima são muito maiores, de cor preta e com grandes pedipalpos. Mas nenhuma possui um veneno tão tóxico quanto o Tityus serrulatus, que é o mais encontrado nos centros urbanos.”
Especialista em toxinologia, Pucca estuda a composição do veneno produzido por animais peçonhentos para prospectar aplicações biotecnológicas que sejam terapêuticas ou atendam às demandas de setores econômicos, como a agricultura.
“Identificamos algumas toxinas que têm perfil imunossupressor e pesquiso seu uso para o tratamento da artrite reumatoide. Mas existem estudos para aplicação antimicrobiana ou antibiótica, por exemplo. Mesmo que os escorpiões vivam em ambientes úmidos no esgoto, não vemos suas glândulas exibindo fungos ou bactérias. Essa característica fornece uma pista para os pesquisadores”, diz.
A estratégia de prospectar novos fármacos a partir das toxinas presentes no veneno de animais peçonhentos da biodiversidade brasileira não é inédita. Em 1965, cientistas brasileiros liderados pelo médico e fármaco Sérgio Henrique Ferreira identificaram enzimas presentes no veneno da jararaca-da-mata, capazes de provocar queda de pressão. A descoberta resultou no desenvolvimento de remédios contra hipertensão que hoje são usados por pacientes em todo o mundo para o controle da hipertensão arterial.
Recentemente, enzimas encontradas no veneno do monstro-de-gila—um lagarto que vive na América do Norte, entre os EUA e o México—forneceram as bases para o desenvolvimento de medicamentos que estão sendo usados no combate à diabetes tipo 2 e à obesidade.
Na Unesp desde 2023, Pucca trouxe para o câmpus de Araraquara um polo do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap), cuja sede e as principais atividades estão no câmpus de Botucatu. O centro é uma referência nacional para o estudo de animais peçonhentos, atuando principalmente com serpentes, e recentemente tem atuado para o desenvolvimento de pesquisas translacionais em biofármacos. Em Araraquara, Pucca se concentra no trabalho com aracnídeos, em especial aranhas e escorpiões.
O trabalho no centro envolve também o desenvolvimento de soros antivenenos mais modernos que os atuais. Pucca explica que, hoje, qualquer soro antiveneno é produzido a partir de anticorpos de cavalos, moléculas que são estranhas ao nosso organismo. Essa tecnologia é empregada desde o início do século 20 e pode disparar reações anafiláticas no paciente. Por conta desse risco, o soro deve ser sempre administrado junto a um anti-histamínico.
Em Araraquara, o laboratório da pesquisadora trabalha para desenvolver anticorpos monoclonais mais modernos, uma tecnologia conhecida e que já é aplicada no tratamento da artrite reumatoide, e mesmo para alguns tipos de câncer.
“Desenvolvemos anticorpos monoclonais no nosso laboratório, mas em nível de pesquisa. Para atender à população, é preciso escalonar esse processo para um nível industrial, e isso demanda investimento, algo que ainda não temos”, lamenta a pesquisadora. “São desafios como esse que caracterizam uma doença negligenciada.” Enquanto medidas para a prevenção de acidentes e para investimento em pesquisas com escorpiões continuam à margem das prioridades em políticas públicas, Pucca segue seu trabalho de quase duas décadas com esses animais. “Os escorpiões nem sempre precisam ser os vilões da história”, diz.
Imagem acima: o escorpião Tityus serrulatus. Crédito: Laboratório de Imunologia e Toxinologia