Cérebro Sob Pressão

Levantamento mostra que, a longo prazo, a hipertensão pode prejudicar pressão intracraniana, barreira hematoencefálica e complacência craniana, todos aspectos essenciais para a saúde cerebral. Mas alguns danos podem ser revertidos.

A ciência tem feito avanços importantes na compreensão dos efeitos da hipertensão arterial sobre diversos órgãos. Os riscos para o bom funcionamento do coração, das artérias, dos rins e dos olhos já estão bem documentados. Além disso, centenas de estudos clínicos comprovaram que a hipertensão é um dos principais fatores de risco para o acidente vascular cerebral (AVC).

No entanto, os impactos diretos da pressão alta não controlada sobre o funcionamento cotidiano do cérebro ainda estão sendo investigados. Na última década, um conjunto robusto de informações vem sendo reunido por pesquisadores para revelar os mecanismos pelos quais a pressão arterial elevada afeta diretamente a função cerebral.

Em março deste ano, um grupo de pesquisadores brasileiros e norte-americanos, liderado pelo neurocientista Eduardo Colombari, professor titular da Faculdade de Odontologia da Unesp, câmpus de Araraquara, avançou nessa investigação ao publicar uma revisão dos principais trabalhos na área. O levantamento mostra que, a longo prazo, a hipertensão provoca efeitos prejudiciais interligados sobre três variáveis fundamentais para a saúde cerebral: a pressão intracraniana (PIC), a complacência craniana (ICC) e a barreira hematoencefálica (BHE). O artigo foi publicado na revista científica The Journal of Physiology.

A pressão intracraniana (PIC) representa a força exercida dentro do crânio pelos volumes do cérebro, sangue e líquor, normalmente entre 5 e 15 mmHg. Alterações nesse equilíbrio, como nos casos de hipertensão ou lesão cerebral, podem elevar a PIC e comprometer a função cerebral.

Já a complacência intracraniana (ICC) refere-se à capacidade do crânio de se adaptar a aumentos de volume (como sangue ou líquor) sem que a pressão interna suba excessivamente. Quando essa capacidade diminui, a pressão intracraniana pode aumentar perigosamente.

Nos casos em que essa pressão se mantém elevada de forma crônica, a forma da onda de pressão dentro do crânio sofre alterações progressivas. No artigo publicado recentemente, Colombari e seus colegas explicam que essa variação na forma da onda de pressão intracraniana pode revelar informações importantes sobre a saúde cerebral. Essa onda apresenta três picos, sendo os dois principais o P1 e o P2. O P1 reflete a pressão do pulso arterial, enquanto o P2 está relacionado à complacência intracraniana (ICC). O P1 reflete a pressão do pulso arterial, enquanto o P2 está relacionado à complacência intracraniana (ICC).

Onda pode servir como indicador de risco precoce

Quando o cérebro está funcionando normalmente, o P1 é mais alto que o P2. No entanto, se o P2 começa a ultrapassar o P1, isso indica uma redução na complacência, o que pode sinalizar um aumento crônico da pressão intracraniana. Esse desequilíbrio pode ser medido pelo índice P2/P1, citado no estudo como um indicador útil para monitorar alterações cerebrais em casos de hipertensão, embora os autores não tenham realizado essa medição diretamente em seus experimentos.

Segundo Colombari, “a mudança na forma da onda de pressão pode ocorrer antes mesmo do surgimento de qualquer sintoma clínico. Isso torna o índice P2/P1 um importante marcador precoce de risco cerebral, até mesmo em pacientes com hipertensão leve ou moderada.” Sensores não invasivos, como sensores de superfície, podem capturar essas alterações de forma indolor e acessível.

O terceiro elemento dessa equação do organismo é a integridade da barreira hematoencefálica (BHE). Altamente seletiva, essa estrutura regula a passagem de substâncias entre o sangue e o cérebro, impedindo a entrada de toxinas, patógenos e moléculas inflamatórias, ao mesmo tempo em que permite o acesso de nutrientes essenciais, como glicose e oxigênio. Seu comprometimento aumenta os riscos de danos neuronais e agrava os efeitos da elevação da PIC e da perda de complacência intracraniana. A disfunção da barreira hematoencefálica, portanto, representa um fator central no impacto da hipertensão sobre a saúde cerebral.

As consequências desse processo podem ser severas. A disfunção da BHE está associada ao risco de acidente vascular cerebral (AVC), demência, declínio cognitivo e inflamações neurovasculares. “A ruptura da barreira pode preceder os sinais clássicos de neurodegeneração, como a perda de memória, e facilitar a entrada de células inflamatórias e radicais livres no sistema nervoso central”, explica Colombari, cuja principal linha de pesquisa envolve a modulação neuro-humoral de processos fisiológicos, com foco em mecanismos centrais de controle cardiovascular e respiratório, especialmente em condições como hipertensão e obesidade.

Danos podem ser revertidos

A boa notícia é que parte desses danos pode ser revertida com tratamento adequado. No modelo experimental de hipertensão renovascular (2K1C) estudado pela equipe de Colombari, o uso da losartana — um medicamento antagonista do receptor de angiotensina II — foi capaz de reduzir a pressão intracraniana, melhorar a complacência cerebral e restaurar parcialmente a barreira hematoencefálica. Já a hidralazina, outro fármaco anti-hipertensivo que atua apenas como vasodilatador, não apresentou os mesmos efeitos protetores sobre o cérebro.

O estudo também chama a atenção para o fato de que, mesmo em pacientes com hipertensão controlada por medicamentos, um histórico prolongado da doença pode manter elevados os riscos de lesões cerebrais silenciosas. Isso ocorre porque o cérebro sofre remodelações estruturais, como o espessamento das paredes vasculares, que persistem mesmo após a normalização da pressão arterial.

“Os possíveis danos cerebrais silenciosos da hipertensão prolongada incluem lesões neurais, isquemia crônica, disfunção da BHE e inflamação neurovascular, condições relacionadas a um maior risco de AVC, demência e declínio cognitivo. Considerando que o encéfalo é responsável por coordenar o funcionamento integrado de diversos sistemas — cardiovascular, respiratório, renal, pulmonar, glandular, muscular, térmico e metabólico —, os efeitos podem se manifestar de formas diferentes em cada indivíduo, dependendo da área cerebral inicialmente afetada”, alerta o pesquisador.

Ciclo vicioso entre pressão alta e regulação cerebral

Além disso, as evidências indicam uma interação complexa entre a hipertensão, a complacência cerebral e o sistema nervoso autônomo. “Com o passar do tempo, o sistema nervoso simpático se torna hiperativo, e os mecanismos de autorregulação cerebral vão perdendo sua capacidade de se ajustar a variações da pressão.” Isso cria um ciclo vicioso: a hipertensão desregula o cérebro, e o cérebro desregulado compromete ainda mais o controle da pressão.

O estudo conduzido por Colombari e seus colaboradores traz insights valiosos sobre os efeitos da hipertensão no cérebro e reforça a importância das práticas preventivas. “O uso de marcadores como o índice P2/P1 e a análise da BHE representam avanços que podem ser incorporados ao diagnóstico clínico, permitindo a identificação precoce de riscos antes que ocorram danos irreversíveis”, afirma o pesquisador.

Isso pode ser especialmente relevante para pacientes assintomáticos, mas que apresentam risco aumentado de desenvolver doenças cerebrovasculares e neurodegenerativas. Ao integrar essas descobertas ao acompanhamento clínico de hipertensos, será possível implementar medidas de intervenção mais eficazes, com tratamentos direcionados e tecnologias de monitoramento precoce, viabilizando um controle mais preciso da pressão arterial e a preservação da saúde cerebral.

A pressão arterial elevada (PA) pode representar um risco importante para o cérebro, especialmente quando atinge níveis iguais ou superiores a 140 mmHg e quando não há a queda natural da pressão durante a noite — condição conhecida como non-dipping. Nessas situações, cresce a chance de ocorrer disfunção da barreira hematoencefálica (BHE) e aumento da pressão intracraniana (PIC), o que pode comprometer o funcionamento cerebral.

A Organização Mundial da Saúde também recomenda o monitoramento ambulatorial da pressão arterial (MAPA) ou monitoramento residencial (MRPA) para confirmar o diagnóstico e identificar padrões como “non-dipping” (ausência de queda noturna da PA), associados a maior risco cardiovascular e cerebral.

“Uma maior atenção a esses aspectos por parte dos médicos durante consultas e exames, assim como o registro da morfologia da onda da PIC, certamente serão dois grandes diferenciais que permitirão um diagnóstico e um tratamento personalizados para os pacientes”, afirma Colombari.

Imagem acima: Deposit photos