Nascida em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, Araceli Chacon encontrou no piano seu grande companheiro de vida. Seu talento natural para o instrumento levou-a a iniciar seus estudos ainda bem nova, e aos oito anos já ganhava um prêmio por sua capacidade de ler a pauta musical. Aos nove estreou como solista com orquestra, e deu início a uma trajetória que acumula apresentações, turnês, prêmios e passagens emblemáticas.
“Sou a caçula de uma família de dez filhos. Todo mundo gostava de música e fazíamos música em casa. Inclusive, grande parte chegou a estudar instrumentos. Eu tive um irmão mais velho que chegou a dar aula de piano por décadas e o outro que tocava de ouvido maravilhosamente bem. Ele também acabou me ensinando essa arte de dedilhar um instrumento de ouvido, sem abrir a partitura. Tive duas vertentes do ensino, a do ensino musical formalizado e essa parte do fazer música como um entretenimento familiar “, relembra.
Aos 6 anos, influenciada por um dos seus irmãos, iniciou seus estudos no Conservatório de Música de Rio Preto. “As coisas se iniciaram como uma brincadeira entre meu irmão, que tocava violão, e eu ao piano, com cinco anos. Mas no conservatório aprendi a perceber a beleza que existe em cada nuance expressiva. Além disso, aprendi a conhecer, respeitar e ver as qualidades que cada vertente possui, independentemente da música. Quando estava no ginásio, eu acabei tocando na fanfarra da escola. Eu gostava do batuque, da percussão, ia tocar repique, surdo, o que a fanfarra precisasse. Então, a educação foi bem eclética mesmo”, relata.
Durante a época no Conservatório, a diretora da instituição se impressionou com o seu talento e lhe deu a oportunidade de fazer um recital. “Meu primeiro recital solo foi aos 7 anos de idade. Em seguida, comecei a participar de concursos de piano, dentro e fora do Estado de São Paulo, e a ganhar. Logo de cara, ganhei menção honrosa. Em outro, conquistei o prêmio de Melhor Leitura À Primeira Vista. Por volta dos meus 9 anos, foi inaugurada uma rede de televisão lá na cidade, criaram uma programação local e com um programa infantil. Nesse contexto, decidiram ter uma sessão de calouros infantis. Me convidaram para acompanhar os calouros com dez anos. Nessa idade, e dessa forma, a minha profissionalização acabou se desenvolvendo”.
Aluna da Juilliard School
Aos 19 anos de idade, Araceli teve a oportunidade de cursar bacharelado na Juilliard School of Music, em Nova York, sob a supervisão de Jacob Lateiner e Seymour Lipkin. Depois, cursou lá também o mestrado. “Tive a possibilidade de fazer o piano interagir com instrumentos de percussão, fazer música de câmara com inúmeros instrumentos e aperfeiçoar os timbres”, diz. Ela conta que não sentia muita afinidade com a língua inglesa nem com a cultura norte-americana. Mas isso não impediu que se apresentasse em muitas ocasiões pela cidade. Entre os pontos altos cita suas performances no Summer Garden Music Festival do Museum of Modern Art, e no Focus Music Festival, interpretando obras de várias épocas e estilos do século 20. “Foi uma experiência fundamental e enriquecedora na minha vida pessoal e profissional”, diz.
Dentro os muitos prêmios que conquistou em sua carreira estão os de “Melhor Intérprete de Música Brasileira”, e “Prêmio Revelação”, outorgados pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Como solista, apresentou-se junto a várias orquestras, entre elas a Sinfônica do Estado de São Paulo, a Sinfônica da Universidade de São Paulo, a Sinfônica de Charleston (EUA) e a Sinfônica da Cidade do Cabo (África do Sul), sob a regência de nomes como Camargo Guarnieri, Claudio Santoro, Omri Hadari, e Roberto Minczuk, dentre outros. Ela também gravou diversos álbuns e atuou como docente do Departamento de Música da Universidade Federal de Uberlândia entre 1992 e 2008.
Os 12 Poemas da Negra e os 4 Poemas de Macunaíma
Em abril, Araceli lança um novo trabalho, em parceria com a cantora e intérprete Adélia Issa. O álbum chama-se Poemas da Negra e de Macunaíma, e o evento de lançamento está marcado para este fim de semana, com apresentações no sábado e no domingo, às 15hs, na Casa Mário de Andrade, na Barra Funda, em São Paulo. O projeto foi contemplado nos Editais ProAc, da Secretaria da Cultura e Economia Criativas do Estado de São Paulo. O álbum traz 16 faixas, 12 com o ciclo dos Poemas da Negra e quatro registrando os Poemas de Macunaíma, todos de autoria de Mário de Andrade, e musicados por Camargo Guarnieri. A obra já está disponível nas plataformas digitais de música.
O ciclo 12 Poemas da Negra foi escrito por Mário de Andrade em 1929 e publicado no livro Remate de Males em 1930. Na época, os poemas causaram estranheza até mesmo entre os intelectuais. Em vez de seguir os preconceitos e estereótipos do seu tempo, e retratar a mulher negra como um ser exótico, vulgar e socialmente inferior, Mário a retratou de outra forma, exaltando-a como musa, mulher amada e sublime. Essa abordagem era sem precedentes.
Camargo Guarnieri foi o compositor que esteve mais próximo dos ideais de Mário de Andrade. O escritor ajudou o compositor a ampliar sua cultura e seus conhecimentos a fim de aperfeiçoar sua música, que já apresentava características nacionais e um estilo composicional próprio consolidado no início da década de 1930.
Os 12 Poemas da Negra, que podem ser lidos como um longo poema dividido em doze partes, seguindo uma espécie de “roteiro”, foram musicados por Guarnieri sem seguir sua ordem original, entre 1933 e 1975. Mesmo assim, e considerando o grande intervalo de tempo entre as composições, o compositor conseguiu manter a unidade do ciclo e a coerência estética em todas as canções.
Na obra, os elementos da cultura popular não são explicitados, mas se entremostram nos versos. Guarnieri procura seguir exatamente essa ideia, criando uma textura musical intrincada, sobrepondo sutilmente elementos eruditos e populares com uma unidade expressiva perfeita.
O livro Macunaíma foi publicado em 1928 e é a obra mais importante de Mário de Andrade. O texto resultou de anos de pesquisas sobre a mitologia indígena e as lendas, costumes, superstições e modismos de linguagem dos brasileiros. A obra é uma verdadeira colagem de fragmentos de toda essa pesquisa, e o personagem Macunaíma representa uma alegoria da formação do nosso povo – nasce índio, torna-se negro e depois transforma-se em branco. É na identidade desse personagem híbrido que se observa toda a diversidade cultural brasileira. Os 4 Poemas de Macunaíma foram extraídos de alguns momentos do livro, onde são “cantados” na voz de Macunaíma e de outros personagens. Foram musicados originalmente para canto e orquestra por Camargo Guarnieri em 1931. No mesmo ano, o compositor fez também uma versão para canto e piano.
Nestas canções, observamos o uso de certas técnicas de composição, que foram provavelmente sugeridas a Guarnieri por Mário, que utilizam um amálgama de elementos heterogêneos, eruditos e populares, de maneira a criar melodias e ritmos brasileiros característicos. Nas canções dos Poemas de Macunaíma, ao contrário dos Poemas da Negra, os elementos das tradições populares são bastante utilizados e estão mais expostos, adequando-se perfeitamente às particularidades e aos textos dos personagens, que se expressam com diversos termos e pronúncias indígenas e africanas, e também com um português coloquial e sotaques regionais.
“Fiquei muito feliz em poder fazer este trabalho com Adélia, primeiramente por ser uma obra específica, repleta de peculiaridades e sonoridades diferenciadas”, diz Araceli. Ela diz que achou desafiador unir o piano e a voz num espectro diferente do que grande parte dos ouvintes de música está acostumado a ouvir. “Exigiu da gente muito mais concentração e estudos. Além disso, até onde sei, parece que é o primeiro registro de estúdio desta bela obra que envolve esses dois grandes nomes: Mário de Andrade e Camargo Guarnieri. Vale destacar a percepção que o Guarnieri tinha sobre essa temática; sem dúvida, era algo que já existia dentro dele ainda jovem. São elementos que mantém sua musicalidade e sua obra tão consistentes, amplas e atuais”, diz.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.