O impacto das ações humanas sobre o planeta é inegável. A exploração exacerbada dos recursos naturais e a conversão da vegetação nativa têm se mostrado como grandes inimigos da biodiversidade, levando a diferentes pressões ambientais, como a alteração de habitats naturais, a poluição e o acentuamento das mudanças climáticas. Evidenciando as consequências das ações humanas sobre a fauna e flora, o Relatório de Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, publicado pela ONU em 2019, apontou para a dura realidade de que quase 1 milhão de espécies de animais e plantas correm risco de extinção nas próximas décadas.
A perda de biodiversidade e o agravamento das mudanças climáticas formam um ciclo vicioso: à medida que mais espécies desaparecem, os mecanismos naturais de mitigação climática — como a regulação do carbono e a estabilidade dos ecossistemas — tornam-se menos eficazes. Por sua vez, o avanço do aquecimento global acelera ainda mais a extinção de espécies. Essa relação pode ser vista como dois lados de uma mesma moeda: enfrentar um desses problemas exige, inevitavelmente, atuar sobre o outro também.
Por esse motivo, entender como quantificar e avaliar a biodiversidade é um passo essencial para estimar a saúde dos diferentes ecossistemas e pensar em medidas de conservação. Em um estudo recente, publicado na revista científica Nature, uma colaboração de mais de 200 pesquisadores revelou uma nova camada nos estudos da biodiversidade. A partir da análise em 5.500 locais, distribuídos em 119 regiões diferentes do planeta, o grupo descobriu que muitas espécies de plantas nativas estão ausentes de ecossistemas onde poderiam viver. A ausência dessas espécies é particularmente alta em regiões fortemente afetadas por atividades humanas, onde menos de 20% das espécies que poderiam existir no local estão, de fato, presentes.
Intitulado Global impoverishment of natural vegetation revealed by dark diversity, o estudo, iniciado em 2018, foi coordenado por Meelis Pärtel, professor de botânica da Universidade de Tartu, na Estônia. A pesquisa contou com a colaboração de duas pesquisadoras da Unesp: a docente Alessandra Fidelis, do Instituto de Biociências, câmpus de Rio Claro, e Mariana Dairel, que na época era doutoranda sob orientação de Fidelis e atualmente realiza pós-doutorado na mesma unidade.
Uma diversidade ausente
A pesquisa partiu de um conceito cunhado por Pärtel em 2011: dark diversity, ou diversidade escondida, ou faltante, em tradução livre. Ela corresponde ao conjunto de espécies que estão ausentes em um determinado recorte da área de estudo, mas que estão presentes na região e, potencialmente, poderiam crescer nos espaços investigados. “É como se fosse a diversidade que está faltando”, explica Fidelis. “É o conjunto de espécies que estão nas proximidades, e que poderiam estar presentes no local do estudo, mas não estão”, completa.
A ausência dessas espécies pode se dever a diversos motivos, indos dos mais simples – como o fato de as sementes simplesmente não terem chegado naquele terreno – até outros complexos, associados aos impactos causados por ações humanas. Embora o conceito tenha sido proposto r há mais de uma década, até o momento não havia sido possível testá-lo na prática para averiguar quais novos conhecimentos a diversidade escondida poderia trazer. Isso mudou com a criação do grupo DarkDivNet, que reuniu pesquisadores de todos os continentes com o objetivo de mensurar a diversidade escondida em diferentes locais do globo.
Sob coordenação de Pärtel, estabeleceu-se uma metodologia comum a ser aplicada por todos os colaboradores no momento do levantamento de dados. Essa padronização permitiu que o estudo mobilizasse uma ampla gama de colaboradores; mais de 220, dos quais pelo menos quatro são do Brasil. Com as diretrizes bem definidas, desde 2018 os pesquisadores saíram a campo com o objetivo de contabilizar e criar uma base de dados na qual esteja descrita todas as espécies presentes nos diferentes locais de estudo.
No Brasil, Fidelis e Dairel realizaram o levantamento na Estação Ecológica e Experimental de Itirapina, no interior do estado de São Paulo. Uma descrição do local foi introduzida em uma plataforma especialmente utilizada pelo grupo de pesquisa que criou um mapa com 35 parcelas de 100m² distribuídos aleatoriamente na área da cidade. “Isso permitiu estudar a vegetação do Cerrado em áreas naturais e em áreas com invasão biológica, consideradas antropizadas, com impacto humano”, explica Dairel. Ao longo de um mês, a dupla foi a campo com o objetivo de registrar todas as espécies vegetais presentes nas 35 parcelas do estudo. “Nós somos ecólogos de vegetação, então esse é o nosso trabalho. Coletamos todas as espécies em cada parcela: desde capim até árvores. Fizemos a listagem de tudo o que encontramos, com descrições da área, como as coordenadas e se ela tinha algum tipo de uso específico”, conta Fidelis.

Assim como Fidelis e Dairel, a partir de 2018 todos os demais colaboradores seguiram o mesmo método para descobrir qual era a biodiversidade presente em cada uma das suas regiões analisadas. Os dados foram, então, reunidos e enviados para a equipe de Pärtel que ficou responsável por fazer as análises para determinar o índice da diversidade escondida de cada local, assim como o grau do impacto humano sobre cada região.
As diferentes parcelas em cada região foram essenciais para determinar o índice de diversidade ausente de cada localidade. Isso porque elas serviram de comparação com o que poderia ser encontrado naquele espaço. De maneira simplificada, imagine que o grupo observou três parcelas: na primeira, foi possível encontrar guatambu, mangabeira, ipê-verde, cocão e aroeirinha. Na segunda, não estavam presentes o ipê-verde e a mangabeira. Já na terceira faltava a aroeirinha.
Com esse levantamento, realizado na mesma região, porém em locais distintos, é possível deduzir que todas as espécies encontradas na primeira parcela, têm a chance de crescer nas parcelas 2 e 3 mas, por algum motivo, isso não ocorreu. As ausências nas parcelas 2 e 3 representam a diversidade escondida: plantas que poderiam crescer nesse lugar, mas que não estão lá.
Empregando-se análises computacionais para identificar a presença ou a ausência de espécies vegetais em cada região, a partir da comparação dos levantamentos feitos naquela área, foi possível determinar o índice de diversidade escondida de cada espaço e, posteriormente, formular padrões globais. Entre os resultados, o grupo descobriu que em regiões que sofreram pouco impacto humano, os ecossistemas geralmente contêm mais de 35% das espécies potencialmente adequadas ao local. Nestes casos, os motivos para a ausência das demais espécies esperadas estão ligados a fatores naturais, como limitações à dispersão de sementes.
Já em áreas fortemente afetadas pelas ações humanas, os ecossistemas contêm menos de 20% do total de espécies que potencialmente poderiam viver naquele trecho. Esse tipo de variação não havia sido capturada anteriormente por métodos tradicionais de avaliação da biodiversidade, como o mero levantamento das espécies num dado local, porque a possibilidade de uma variação natural na biodiversidade terminava por mascarar a real extensão do impacto humano.
Entendendo o impacto humano
Para determinar o efeito exercido pela presença humana sobre as áreas estudadas empregou-se um parâmetro conhecido como Índice de Pegada Ecológica. Trata-se de um índice estatístico já bem estabelecido por estudos prévios de ecologia, que tem como objetivo mensurar o impacto humano nos diferentes biomas da terra. O Índice de Pegada Ecológica aglutina dados como a densidade populacional das regiões estudadas e áreas próximas; as mudanças no uso da terra, provenientes de atividades como agricultura e urbanização; e a existência de infraestruturas próximas, como estradas e ferrovias. Graças ao índice, foi possível identificar o grau de impacto exercido pelas ações humanas em cada um dos 5.500 locais estudados. “As parcelas que estudamos não estavam grudadas uma na outra, mas sim bem distribuídas em uma grande área. Isso nos permitiu dimensionar o efeito antrópico tanto nos locais que estavam mais próximos das ações humanas quanto nos mais distantes”, explica Fidelis.

O estudo descobriu que quanto maior o impacto humano em uma área, menor é a presença de espécies nativas esperadas naquele ecossistema. O que chamou a atenção dos pesquisadores é que esse impacto pode chegar a alcançar centenas de quilômetros, com algumas áreas sendo afetadas mesmo a distâncias de cerca de 300km da influência humana direta. O Índice de Pegada Ecológica foi decisivo para permitir discernir se a ausência das espécies esperadas ocorreu, de fato, por impacto humano ou se poderia ter sido causada por algum outro evento natural.
De maneira complementar, os pesquisadores também observaram as espécies que cresciam em co-ocorrência, ou seja, quando era comum duas espécies crescerem em conjunto, para encontrar as parcelas em que uma ou outra estavam faltantes. “Observar esses padrões de crescimento, em conjunto com o Índice de Pegada Ecológica, favorece a hipótese de que o fato de uma determinada espécie estar ausente provavelmente se deve a um impacto antrópico”, diz Fidelis. Espécies que crescem em co-ocorrência apresentam elevadas chances de serem encontradas juntas, e, também, servem como um forte indicador de que aquele ambiente apresenta as condições propícias para o desenvolvimento de ambas. Se falta apenas uma, então a probabilidade é que a ausência seja causada por outro elemento. No caso de áreas antropizadas, este elemento são os impactos das ações humanas.
Outro achado importante, que apresenta impactos diretos sobre planos de conservação, é o de que os impactos causados pelas atividades humanas se mostraram menores nos casos em que pelo menos um terço da região ao redor do sítio amostrado permanecia intocado. Esse resultado apoia a meta 30×30, estabelecida na COP 15, que visa converter 30% do planeta em áreas protegidas. Ademais, as metodologias para identificar a diversidade escondida de uma determinada região podem ser importantes aliadas em projetos de restauração. “Nos trabalhos de restauração, é comum apresentar uma área de referência, que serve como referencial para como queremos que fique a área após o fim do trabalho”, explica Fidelis. “A diversidade escondida pode ajudar a indicar se a restauração está sendo eficaz. Se seguirmos técnicas tradicionais, de apenas contar quantas espécies estão ali, ficamos sem saber qual seria o verdadeiro potencial daquele espaço. Abrigar 100 espécies pode parecer algo muito bom. Mas, se descobrimos que a região tem um potencial para abrigar mais de 300 espécies e isso não ocorre, então algo no projeto de restauração precisa ser melhorado”, diz.
Vista aérea da Estação Ecológica de Itirapina, onde foi realizado o estudo no Brasil. É possível ver o mosaico de fisionomias, com regiões com mais e menos perturbação humana. Crédito: Dh.conciani