No último dia 17 de março, Elis Regina completaria 80 anos. Na edição desta semana, o Podcast MPB Unesp traz uma homenagem à artista, uma das mais talentosas cantoras que já pisou em nossos palcos.
Elis Regina Carvalho Costa nasceu em 1945, na cidade de Porto Alegre. Conhecida internacionalmente por sua competência vocal, musicalidade, presença de palco e forte personalidade, foi comparada a cantoras como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday.
A artista gaúcha começou a cantar cedo. Aos sete anos, foi levada pela mãe para participar de um programa de rádio. Aos 13, passou a atuar profissionalmente, contratada pela principal emissora do Rio Grande do Sul. Isso lhe valeu o apelido de “estrelinha da Rádio Gaúcha”, e tornou-se uma figura regular nas casas noturnas de Porto Alegre. Em 1961, foi descoberta por um funcionário do selo Continental da gravadora brasileira GEL, e levada para o Rio de Janeiro. Lá gravou seus dois primeiros discos: Viva a Brotolândia e Poema de Amor. O primeiro era uma tentativa de se aventurar pelo rock e o segundo, um flerte com o bolero. Ambos foram fracassos comerciais.
O contrato seguinte foi com a gravadora CBS, que lançou seus dois álbuns seguintes, ambos em 1963. Ali, testou-se uma Elis cantora de sambas popularescos, sem muita relevância. Ela se sentia desanimada com a qualidade artística de seus primeiros discos, que praticamente renegaria ao longo da carreira. Foi quando um produtor da Philips, então a maior gravadora estabelecida no Brasil, assistiu a uma de suas apresentações e gostou muito. Deixou o cartão e a recomendação de que ela o procurasse. Em conversa com a família, Elis decidiu se mudar para o Rio. Chegou exatamente na data do golpe militar: 31 de março de 1964. Rapidamente começou a atuar na TV Rio. Esta exposição televisiva acabou abrindo portas. No mesmo ano, Elis começou a fazer apresentações no Beco das Garrafas, uma travessa de Copacabana que concentrava as casas noturnas da época. Ali, sua história tomou novos rumos.
Elis foi a principal revelação do festival da TV Excelsior em 1965, quando cantou Arrastão de Vinícius de Moraes e Edu Lobo. Tal feito lhe garantiu novos convites para atuar na televisão e, pouco tempo depois, o título de primeira estrela da canção popular brasileira, após ter passado a apresentar, ao lado de Jair Rodrigues, o programa O Fino da Bossa.
Gravou diferentes gêneros, incluindo MPB, bossa nova, samba, rock e jazz. Eternizou seus vocais em uma fieira de clássicos, como Madalena, Águas de Março, Atrás da Porta, Como Nossos Pais, O Bêbado e a Equilibrista e muitas outros. Destacou-se por cantar composições de artistas então pouco conhecidos, como Milton Nascimento, Ivan Lins, Belchior, Renato Teixeira, Aldir Blanc e João Bosco, ajudando a lançá-los e a divulgar suas obras. E seus shows Falso Brilhante (1975-1977) e Transversal do Tempo (1978) inovaram grandemente a cena de espetáculos musicais no país.
Elis foi casada duas vezes. Com Ronaldo Bôscoli gerou o filho João Marcello Bôscoli em 1970. Em 1973, casou-se com o pianista César Camargo Mariano, e deu à luz Pedro Mariano, em 1975, e Maria Rita, em 1977. Faleceu precocemente aos 36 anos em São Paulo, em 19 de janeiro de 1982, no auge da carreira. Sua morte causou forte comoção no país e gerou polêmicas quanto às suas causas.
A intérprete da MPB
De acordo com a historiadora, especialista em música popular brasileira e docente do câmpus da Unesp em Franca, Tânia da Costa Garcia, Elis foi uma cantora de características variadas.
“Sua obra teve várias fases. No início da carreira, estava mais próxima às cantoras do rádio. Ela comentava que sua cantora favorita na rádio era Elizeth Cardoso. Aí você entende o tipo de interpretação que marcou aquele momento: mais aproximada do samba, do bel canto, apropriado pela música popular, que é o que caracteriza esses as cantoras do rádio, ou seja uma voz emotiva, com uma interpretação mais teatral. Então, essa é uma marca da Elis”, analisa.
“Dentro do universo da MPB, eu a vejo com uma voz impecável, super afinada, com fraseados perfeitos e uma interpretação única. Quando você escuta Elis, imediatamente você identifica a cantora. Falar de intérpretes é interessante, porque os intérpretes acabam gravando canções que se tornam deles. Então você tem uma série de músicas que a Elis gravou que você não lembra quem é o compositor e você liga aquela música à interpretação da voz da Elis Regina. Por exemplo, o Bêbado e a Equilibrista é uma canção do João Bosco, ok, mas a gente escuta mas temos a Elis como a principal referência”.
Tânia diz que a obra de Elis foi muito importante para a construção e a consagração do que se definiu como MPB. Vivia-se um momento favorável do mercado musical, e o estilo emergia como opção sob medida para consumo das camadas médias. Consolidou-se, a partir daí, a possibilidade de que os expoentes daquele segmento pudessem dar continuidade a suas carreiras a partir da vendagem dos discos, fortalecendo também a indústria fonográfica.
“Essa é uma marca importante. A Elis vive a efervescência d a construção de um discurso, em termos melódicos e poéticos, que vai ser a grande marca da chamada MPB. Podemos ainda colocar um terceiro elemento da sua importância. A Elis também participa de um período político, bastante engajado e militante, nas décadas de 1960 e 1970. Ela ficou no Brasil, não foi ao exílio. Então, estava ligada, de alguma maneira, à resistência. Por exemplo, Falso Brilhante é um disco de resistência. Nele se usa a canção para um posicionamento político, para se alinhar a aqueles que estão reivindicando e pressionando pela redemocratização do país”, analisa.
A cantora gaúcha deixou um legado de mais de 20 álbuns de estúdio, seis ao vivo, inúmeros compactos simples e duplos e seis lançamentos póstumos. Os registros foram feitos entre 1961 e 1982, variando entre um e dois lançamentos por ano, em média. Assinando o repertório estavam muitos dos principais compositores do período, como Belchior, Milton Nascimento, Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Moraes… Um time que definiu o gênero MPB. Mas também gravou compositores latino-americanos como Atahualpa Yupanqui e Violeta Parra.
“A Elis, talvez mais do que qualquer outro artista, exercitou a interpretação do que a gente define como música popular brasileira. Como ela ainda é muito escutada, temos essa impressão que a Elis faz parte do dia a dia da música popular brasileira”, diz a historiadora.
Polêmicas com outros artistas e problemas com o exército
Para além do seu legado musical, Elis Regina também se envolveu em diversas polêmicas. Um deles foi a Marcha contra a Guitarra Elétrica, também chamada de Passeata da MPB. O movimento, ocorrido em 1967, foi liderado pela própria Elis Regina e recebeu adesão de outros artistas. O objetivo era defender a música nacional contra a invasão da música internacional. Mas houve brigas menos embasadas em ideias. “Ela era uma figura polêmica, arrumou encrenca com muita gente: Nana Caymmi, Alaíde Costa e até com o Jair Rodrigues, que trabalhou com ela”, diz Tânia.
Um caso envolveu uma disputa com a cantora Beth Carvalho pelo samba Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho. “A Beth Carvalho gravou essa música num LP. O Cesar Camargo Mariano tocou nesse LP. A Elis, que era casada com o Mariano, escutou a faixa em casa, ficou pirada com a música e decidiu gravar a canção de qualquer maneira. A gravadora dela, a Philips, soltou o disco dela com a gravação. O LP da Beth ainda não estava pronto. Mas, quando ela soube da versão da Elis, exigiu que a sua gravadora, a Top Tape, soltasse um compacto, para marcar a que ela tinha gravado Folhas Secas antes. A Elis, que era filiada a Philips, fez com que esses discos compactos fossem praticamente descartados pelas rádios. A gravação que prevaleceu, então, foi a da Elis. A Pimentinha, apelido da Elis, não era mole”, relata.
A cantora foi criticada por anos por ter cantado na cerimônia de abertura das Olimpíadas do Exército em 1972. Segundo relato da artista posterior, isso ocorreu porque, em entrevista proferida na Holanda, em 1969, declarou que o Brasil era governado por gorilas. A embaixada brasileira emitiu uma cópia da declaração ao SNI (Serviço Nacional de Informações). Quando Elis voltou ao Brasil, foi submetida a interrogatório. “Para se safar de algum tipo de represália, ela teve que cantar o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército. Por isso, podemos dizer que não há dúvida de que a Elis não tinha nenhum tipo de alinhamento com a ditadura. Seu trabalho como artista a situa como alguém que, de fato, tinha uma postura muito aguerrida e engajada contra a ditadura”, diz Tânia.
Confira a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.