Há mais de 200 anos, a medicina era uma ciência muito diferente da praticada atualmente. Médicos utilizavam sanguessugas e flebotomias — retirada de sangue por uma veia — para tratar a maior parte das doenças, enquanto os medicamentos eram escassos e pouco confiáveis. A maioria deles consistia em substâncias minerais e vegetais prescritas com base na tradição, sem qualquer comprovação científica. Além disso, práticas básicas de higiene, como lavar as mãos antes e depois de atender um paciente, ainda não eram amplamente preconizadas.
Foi apenas na virada do século XVIII para o XIX que surgiram ideias e invenções capazes de revolucionar a medicina. Transformações significativas marcaram essa época, como o desenvolvimento da primeira vacina, em 1806, e a criação do estetoscópio, em 1816. Entretanto, também emergiram doutrinas médicas controversas, como a homeopatia. Apesar da falta de comprovações científicas concretas de sua eficácia e do ceticismo de boa parte da comunidade médica, essa prática se consolidou na sociedade e continua sendo receitada aos pacientes até hoje.
Para entender como a homeopatia se manteve no meio médico e social por dois séculos, criando uma cultura própria, o podcast Prato do Dia desta semana entrevista Lenin Bicudo Bárbara, autor do livro “Cultura Homeopática: uma investigação sobre a comunicação do desconhecimento”, publicado pela Editora Unesp. Em sua pesquisa, Bárbara analisou como a homeopatia se fixou na sociedade, mesmo diante de inúmeras controvérsias e dos avanços notáveis da medicina tradicional.
Criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann, a homeopatia surgiu como um método menos invasivo em comparação a outros procedimentos médicos da época. Bárbara explica que a aceitação dos preparados homeopáticos na sociedade atual ocorre, em parte, pelo receio da população em consumir medicamentos com efeitos colaterais. “Hoje em dia, é comum que a homeopatia seja utilizada junto com a medicina convencional, porque há a vontade de tratar as doenças, mas como os medicamentos ainda têm efeitos colaterais — mesmo que em menor intensidade — as pessoas recorrem a métodos com menores chances de efeitos adversos”, afirma o pesquisador.
Durante a entrevista, Bárbara explica que, em seu livro, relaciona a permanência da homeopatia ao conceito de agnotologia — campo da sociologia que estuda a produção cultural da ignorância e do desconhecimento na sociedade.
“Não temos como saber tudo, e isso faz parte da vivência atual. Entretanto, vivemos em uma sociedade onde o conhecimento em muitos tópicos é de fácil acesso, e ainda assim seguimos ignorando certas questões”, argumenta. Segundo ele, esse é o caso da homeopatia, que continua sendo ensinada e praticada mesmo diante de evidências científicas que refutam sua eficácia.
Para o pesquisador, vários fatores sistêmicos favorecem a manutenção da homeopatia na sociedade. Ele defende que uma discussão ampla sobre o tema requer uma produção crítica por parte da sociologia e de outras ciências, de modo a levar informações embasadas à população. “Mostrar a história, como se estabelece e como se fixa, ajuda a instigar o espírito crítico. Isso precisa ser feito em vários campos, dialogando com diferentes áreas da sociedade”, explica.
Ouça a entrevista completa com o pesquisador Lenin Bicudo Bárbara no podcast Prato do Dia, disponível nas principais plataformas de áudio e no player abaixo.