Pesquisa com onças revela, pela primeira vez no Pantanal, presença de patógeno que pode infectar humanos

Projeto no Mato Grosso visa mitigar conflitos entre grandes felinos e fazendeiros. Veterinário quer mostrar que animais podem beneficiar o homem ao servirem de bioindicadores da presença de doenças e fomentarem ecoturismo na região.

Maior carnívoro das Américas e o terceiro maior do mundo  – fica atrás apenas do tigre e do leão –, a onça-pintada é um símbolo da fauna brasileira, celebrada até na nota de R$ 50. Em nosso país, pode ser encontrada tanto nas exuberantes Mata Atlântica e Floresta Amazônica como em paisagens mais devassadas, como a Caatinga e o Cerrado. Porém, é no Pantanal, o maior bioma alagável do mundo, que um estudo conduzido pela Unesp está lançando novas luzes e ajudando a facilitar a convivência entre o ser humano e a Pantera onca.  

A espécie possui como um de seus trunfos grande capacidade de adaptação. Porém, seus recursos estão sendo testados pelas ações humanas, que cada vez mais vêm transformando a paisagem do Pantanal ao promoverem a destruição do habitat e a redução das populações de suas presas naturais. “Tudo isso aumenta os conflitos entre esses animais e os agricultores e produtores rurais”, diz Ricardo Boulhosa, presidente da ONG Instituto Pró-Carnívoros, e que há mais de trinta anos acompanha as grandes pintadas. Estes conflitos opõem as onças, que atacam o gado das fazendas do Pantanal em busca de novas fontes de alimento, aos produtores rurais, que empregam armas de fogo sempre que necessário para defender seus rebanhos.

Monitorando esta difícil convivência estão pesquisadores e ambientalistas interessados em assegurar a continuidade da espécie, hoje classificada como quase ameaçada. Dentre as diversas ações em andamento no país, um estudo identificou, pela primeira vez nos animais que habitam a região, a presença do parasita Spirometra spp., que é capaz de contaminar humanos.

A onça Nina, fêmea dominante na área da Fazenda Piuval, chamando seus filhotes. Crédito: Yoann Lebrun



O parasita foi encontrado por meio da análise laboratorial de amostras fecais das onças-pintadas coletadas entre 2022 e 2024 na região da Fazenda Piuval, perto da cidade de Poconé, no Mato Grosso. Nessa área, que tem aproximadamente sete mil hectares, já foi registrada a presença de nada menos do que 24 onças. Estima-se que nove ou dez habitam a região. O patógeno foi identificado por meio de sequenciamento genético, realizado em laboratório da Unesp.

A descoberta do Spirometra spp. nas onças da Fazenda Piuval foi um dos resultados do mestrado do médico-veterinário Paul Raad, que cursou o  Programa de Pós-graduação em Animais Selvagens da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp de Botucatu. “A presença do Spirometra spp. nas fezes das onças sugere que ele está circulando pelo ecossistema dessa região, onde nunca fora encontrado, e pode afetar outros animais e também seres humanos”, explica Raad.

Além de trazer novas informações sobre zoonoses e ecologia, os resultados do estudo de Raad valorizam o conceito de Saúde Única, adotado pelo pesquisador há quase uma década. Essa abordagem vê a saúde dos seres humanos, dos animais e do ecossistema de forma interligada, destacando a importância de considerar todos esses elementos em conjunto para promover uma saúde integral. “É uma forma estratégica de ciência, que promove a colaboração entre diversas disciplinas para monitorar patógenos e prevenir surtos antes que se tornem um problema de saúde pública”, diz Raad.

Parasita em alta circulação

Os pesquisadores analisaram um total de 40 amostras de fezes de onças durante o estudo. “Os resultados indicaram uma alta prevalência do parasita. Cerca de um terço das amostras testou positivo, o que é bastante”, avalia  Felipe Fornazari, professor assistente-doutor na área de zoonoses na FMVZ e orientador do trabalho de mestrado de Raad.

O parasita identificado pode causar esparganose, uma doença que afeta humanos de diversas formas. A infecção ocorre quando uma pessoa ingere água contaminada com copépodes (Cyclops e outros pequenos crustáceos de água doce) infectados ou consome carne malcozida de hospedeiros intermediários, como anfíbios e répteis. As larvas normalmente se alojam no tecido subcutâneo, formando nódulos. Em casos mais graves, podem atingir músculos, olhos e o sistema nervoso central, causando dor, inflamação, convulsões e até cegueira. Há também uma forma rara e agressiva, a esparganose proliferativa, na qual as larvas se multiplicam e se espalham por múltiplos órgãos.

 Diferentemente da teníase, causada pelo gênero Taenia, em que os vermes se desenvolvem no intestino e eliminam ovos nas fezes (podendo levar à cisticercose quando os ovos de Taenia solium são ingeridos), as larvas de Spirometra permanecem migrando pelos tecidos e não atingem a fase adulta no corpo humano. O diagnóstico da esparganose geralmente é feito por exames de imagem ou pela remoção cirúrgica da larva, com confirmação laboratorial. A prevenção inclui o consumo de água filtrada ou fervida e a ingestão de carnes bem cozidas.

Em animais que atuam como hospedeiros definitivos do parasita, o patógeno se desenvolve em seu intestino e é excretado nas fezes, como ocorre com a onça. Quando as larvas eclodem e deixam os ovos, elas cumprem parte de seu ciclo no meio aquático, podendo ser ingeridas por diversos tipos de hospedeiros intermediários. Os animais que ingerem os ovos ou larvas do parasita podem se tornar hospedeiros intermediários, como copépodes (pequenos crustáceos que vivem nas águas), anfíbios e porcos. Esses hospedeiros podem apresentar sintomas variados, dependendo da fase do parasita em seu ciclo de vida.

Ainda que não costume afetar significativamente a saúde das onças, sua presença é um indicativo da saúde do ecossistema e pode alertar sobre potenciais riscos para a saúde humana. Os porcos, domésticos ou javalis, podem também se tornar hospedeiros definitivos, completando o ciclo do parasita quando devorados pelas onças. (Aliás, é importante lembrar que porcos-monteiros e javalis, que existem em grande número no Pantanal, são espécies invasoras, e poderiam afetar gravemente a saúde de nossos ecossistemas caso as onças não os predassem.)


Melhora da reputação

Raad diz esperar que a identificação do parasita possa ajudar a melhorar a reputação das onças. O veterinário e sua equipe trabalham para que essa informação produza um impacto positivo na forma como as comunidades locais percebem esses animais. “Em vez de serem vistas unicamente como predadoras que causam prejuízos aos criadores e animais, as onças podem ser consideradas bioindicadores da presença de doenças”, diz. “É uma mudança de narrativa muito importante, porque coloca as onças em uma condição de aliadas na saúde do ecossistema, funcionando como sentinelas que indicam a qualidade ambiental e a saúde pública”, argumenta.

Segundo Fornazari, nos últimos 10 a 15 anos, regiões do Pantanal que não tinham onças começaram a vê-las novamente, em parte devido ao crescimento do ecoturismo. “Isso sugere que, embora a conservação ainda enfrente desafios, a valorização econômica da onça pode contribuir para o aumento dessa população”, diz ele.

Os criadores, especialmente os donos de pequenas propriedades, frequentemente enfrentam perdas significativas quando as onças atacam seus animais, como bezerros e porcos. Não é uma realidade fácil.

O veterinário Paul Raad (à dir.)examina um bezerro morto por uma onça

 

“Para muitos, a perda de um único animal pode representar um grande impacto financeiro, o que gera um sentimento de hostilidade em relação a esses grandes felinos”, pontua o empresário pantaneiro Eduardo Eubank, administrador da Fazenda Piuval, onde foi feito o estudo.

Ciente da animosidade com as onças, o projeto de pesquisa de Raad lançou mão de uma abordagem integrada que combinou monitoramento da fauna, educação das comunidades locais e implementação de soluções práticas.  “Começamos a trabalhar em colaboração com a Piuval, que são pantaneiros tradicionais. Isso facilitou o contato com proprietários de terras vizinhas à Piuval para buscar soluções que beneficiassem tanto os animais quanto os pecuaristas”, lembra Raad. Além do apoio UNESP, o pesquisador trabalhou em parceria com Rafael Hoogesteijn.


A principal estratégia adotada para proteger o gado contra ataques de onças foi a implementação das cercas elétricas. “Com uma voltagem de aproximadamente 4.000 volts e choques intermitentes, elas fazem os animais se afastarem sem causar danos permanentes a eles”, explica Raad. “O objetivo é demonstrar que a coexistência pacífica com as onças é possível e benéfica, tanto para a conservação da espécie quanto para a saúde do ecossistema e das comunidades. Essa mudança de percepção é fundamental para garantir a proteção das onças e a redução dos conflitos com os pecuaristas”, prega Raad.

Onça passa próximo a cabeças de gado, sem atacá-las.

O processo de implementação da pesquisa, que implicou diversas visitas aos vizinhos da Fazenda Piuval, acabou desencadeando a criação de uma área protegida onde hoje as onças podem ser avistadas por turistas. “Embora não existissem essas áreas protegidas no início da coleta das amostras, em 2022, a pesquisa evidenciou a importância de conectar diferentes áreas da região para as onças se movimentarem livremente e com segurança”, relata o pesquisador. Para ele, a criação de tais áreas foi uma medida importante para garantir que as onças pudessem se mover livremente entre diferentes áreas, promovendo a conservação da espécie e minimizando os conflitos com animais domésticos.

Boa parte das propriedades na região onde está em andamento o estudo de Raad concilia a criação de gado com o ecoturismo, hoje uma importante fonte de renda. “Em áreas onde há exclusivamente pecuária, observa-se menos interesse na conservação das onças”, pontua Ricardo Boulhosa, do Instituto Pró-Carnívoros.

O administrador da Fazenda Piuval, Eduardo Eubank, reconhece os benefícios do projeto de conservação para pecuaristas e proprietários de pousadas. “Sempre perdíamos entre 7% e 10% do rebanho. Como possuímos cerca de 2 mil cabeças, isso significava uma perda anual de 120 a 130 bezerros. Nos dois anos em que sediamos o projeto de pesquisa de Paul Raad, tivemos uma queda significativa na predação. O sistema que adotamos inclui câmeras, cercas elétricas e uma maternidade adaptada. Com isso, conseguimos reduzir drasticamente a perda de bezerros na propriedade. Hoje, temos um índice baixíssimo de perda de bezerros e, na maternidade, zeramos a perda dos animais mais novos até os 45 dias de vida.”  

A instalação das câmeras e das cercas resultou na impressionante queda no número de mortes de cabeças de gado mencionada anteriormente, de 25 em 2022 para apenas três em 2024.  “A ideia é que, ao verem os resultados positivos na Fazenda Piuval, todas as comunidades e vizinhos se sintam motivados a adotar práticas semelhantes para mitigar os conflitos com as onças”, diz o empresário. Ele crê na possibilidade de que os pecuaristas passem a enxergar o valor de uma abordagem com foco na conservação, e projetarem um futuro diferente para o relacionamento com o predador. “Queremos mostrar que é possível ganhar dinheiro com a onça viva, mas não com a onça morta”, diz.

Fotos: Paul Raad.