Em nova ópera de professor do Instituto de Artes, ideias, e não personagens, são os protagonistas

Partindo do pensamento dos estoicos, “Oposicantos” mergulha na dialética para colocar no palco reflexões divergentes de algumas das maiores mentes da humanidade, apresentadas na linguagem operística com meios eletroacústicas. Espetáculo empregará também elementos visuais e cenográficos, e vai romper com a separação entre artistas e plateia. Obra estreará em julho no Theatro São Pedro.

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O Theatro São Pedro, espaço cultural localizado na Barra Funda, em São Paulo, receberá entre os dias 3 e 6 de julho a ópera Oposicantos, a segunda de autoria do compositor e professor do Instituto de Artes da Unesp, Flo Menezes. Reconhecido internacionalmente por suas contribuições para a música eletroacústica, o docente aventurou-se na vertente do espetáculo lírico pela primeira vez em 2019, na montagem Ritos de Perpassagem, finalista do Prêmio Concerto do mesmo ano. O sucesso da experiência motivou um novo convite por parte do tradicional teatro paulistano e da Santa Marcelina Cultura para a elaboração de um novo espetáculo.

A exemplo de sua primeira obra, Oposicantos retoma o diálogo que o autor estabeleceu entre a filosofia e a ópera. No entanto, se em 2019 o pitagorismo, escola filosófica que aproxima a harmonia da natureza da harmonia dos números, era o conceito que conduzia Ritos de Perpassagem, a nova montagemtraz como referência onipresente o estoicismo, numa ode à dialética, o método filosófico em que o conhecimento é alcançado por meio do diálogo e do embate de ideias divergentes.

“A concepção fundamental presente em Oposicantos parte do fato de eu alcançar os 60 anos de vida e chegar à conclusão de que, com raras exceções, praticamente tudo o que se enxerga por um lado pode também ser visto pelo ângulo oposto”, diz Menezes. “Por isso, defino essa ópera como uma ode à dialética. Não ao pensamento dualista, mas à dialética, que é a metamorfose e a reflexão em cima de posições que se contradizem e às vezes até se opõem”, diz. O próprio título da obra é um neologismo que remete a alguns desses conceitos dialéticos materializados na ópera, como a oposição entre fragmentos textuais cantados no espetáculo e a disposição espacial dos músicos no palco.

Fundador e diretor artístico do Studio PANaroma, um dos principais centros mundiais de pesquisa e produção de composição eletroacústica, localizado na Unesp, Flo Menezes sempre foi leitor assíduo de filosofia. Mas, ainda jovem, optou pelos estudos em composição musical. “Concluí que precisaria realmente continuar a estudar, porque a música tem uma tecnicidade que é preciso dominar para se tornar músico.” Continuou se desenvolvendo como compositor, mas sem deixar de pensar em filosofia o tempo todo. “Essas minhas duas óperas pagam um tributo ao meu amor pela filosofia e sobretudo pela filosofia antiga. A primeira tratou do pitagorismo e a segunda, do estoicismo.”

Na base, o estoicismo

Assim como em Ritos de Perpassagem, o público não deve esperar de Oposicantos uma ópera convencional. De cara, o libreto exclui uma trama encadeada por personagens que se relacionam e conduzem uma narratividade no sentido tradicional. Quem atua como uma espécie de guia do espectador ao longo da montagem é o filósofo Crisipo de Solos, principal representante do estoicismo “Crisipo aglutinava os discípulos embaixo de um pórtico, que em grego é stoa. Daí surgiu o nome estoico”, diz Menezes, que traz essa referência para a obra na forma de um tamtam (instrumento metálico) de 1m60 que no palco fica localizado sob um pórtico. Deste instrumento decorrem processos de análises espectrais em tempo real que são convertidas em figuras sonoras tocadas por um piano-MIDI, as quais, por sua vez, instigam as vozes a cantarem a partir do que ouvem. A obra é, neste sentido, um expoente da vanguarda experimental.

Sem uma narrativa linear, a ópera apresenta 13 blocos, que o autor denomina de Situações dramático-musicais, cada um ancorado em um tema fundamental do pensamento de Crisipo. Cada uma das 13 Situações é preenchida por fragmentos selecionados das obras de diversos autores, da filosofia à literatura e à política. Estão lá textos do célebre filósofo estoico romano Lucio Anneo Seneca, mas também reflexões de Machado de Assis, Walter Benjamin, Franz Kafka, Rosa Luxemburgo, Karl Marx e outros mais. “Ao estudar a obra do Crisipo, diagnostiquei um entrelaçamento de temas em cima dos quais vão habitar textos de origens muito diversas, e que nem sempre tem a ver com o estoicismo. É uma coleção multiforme, como se fosse um mosaico, mas que se assenta em cima de uma estrutura que é, em essência, estoica”, explica.

A seleção dos fragmentos dos autores procurou articulá-los de forma a evidenciar uma situação de oposição, ou pelo menos constituindo um debate acerca dos temas abordados. Dessa forma, Dante Alighieri contrapõe-se a Bertolt Brecht, Ezra Pound contradiz Louis Zukofsky, e assim por diante. Porém, destas 13 Situações, cinco não apresentam contradições. São baseadas em fragmentos do Tao Te King, texto clássico do pensamento taoísta chinês, cuja autoria é atribuída a Lao Tzu. “No Tao Te King, o próprio texto é uma ode à oposição e à complementaridade dialética”, diz Menezes.

Músicos na plateia e espectadores no palco

A estrutura da montagem de Oposicantos procura materializar este apelo dialético, subvertendo a separação entre palco e plateia. No espetáculo, os músicos da Orquestra do Theatro São Pedro ocuparão espaços no palco, mas também nos assentos reservados ao público. Os espectadores, por sua vez, também serão convidados a ocupar assentos no palco. O regente, aliás, irá passar quase todo o tempo do espetáculo voltado para a plateia, regendo os músicos que estarão distribuídos pelos assentos.

Na plateia, parte dos músicos estará posicionada no lado direito, e outra parte no lado esquerdo, referenciando assim, em dois polos, a proposta dialética que inspira a ópera. Ao longo da execução da obra, os dois grupos por vezes oscilam, tocando como em um movimento pendular. “Se você movimentar com força suficiente um pêndulo, sua trajetória se torna circular. O círculo é a ausência da oposição e o movimento mais simples que existe. Quando essa força não é suficiente para anular a oposição, você tem o movimento do pêndulo. Na figuração da obra, o pêndulo é a instauração da dialética”, explica.

Além dos músicos da Orquestra, o espetáculo contará com percussionistas do grupo PIAP, da Unesp, cinco cantores solistas e 16 coralistas. O videoartista Raimo Benedetti irá projetar elementos visuais que remetam à ideia do pêndulo e o próprio Flo Menezes estará em atuação, operando um joystick com o qual irá orientar um conjunto de sonoridades nas caixas de som dispostas ao redor do público, em processos de síntese sonora eletroacústica feita em tempo real. A direção musical é de Eduardo Leandro e a direção cênica de Alexandre Dal Farra.

Imagem acima: Ritos de Perpassagem. Crédito: Heloisa Bortz.