O samba-canção é um bastião do romantismo e do lirismo melancólico na música brasileira. Ainda que hoje seja menos celebrado do que já foi no passado, mantém um vasto séquito de admiradores fervorosos. E é para atender a este público que o cantor, compositor, ator e professor paulistano Mario Tommaso apresenta seu primeiro trabalho musical, intitulado Rasga o Coração: poemas e canções de amor para o nosso tempo.
Com produção musical e arranjos de Cezinha Oliveira, o disco tem a ousadia de propor releituras de clássicos que nossa memória afetiva associa a alguns dos maiores nomes da música brasileira, como Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues e Johnny Alf. Este material é intercalado com composições inéditas e parcerias de Tommaso, e também há espaço para declamações de textos de autores consagrados, como Clarice Lispector e Gilka Machado. No total, o trabalho traz 16 faixas que passeiam por estilos e sonoridades variadas, do jazz ao flamenco.
O projeto que resultou em Rasga o Coração: poemas e canções de amor para o nosso tempo começou a ser esboçado há cinco anos, quando o planeta vivia o isolamento do confinamento na pandemia. “Sou uma pessoa que vive estudando diferentes assuntos. Na época, estava estudando canto com um repertório específico de samba-canção. Resolvi preparar um espetáculo de teatro que utilizasse as músicas e textos poéticos. Fiquei pensando no que o samba-canção tem de especial para que continue a nos falar tão de perto ainda hoje. São histórias de amores dilacerados, saudades… Esperança, enfim”, analisa Tommaso.
Começou a coletar material para fundamentar o projeto. O passo seguinte foi convidar o músico Cezinha Oliveira para fazer os arranjos. Novas ideias e novas composições surgiram, já prenunciando um álbum inteiro. “Depois que Cezinha me trouxe os arranjos, procuramos trabalhar cada canção em sua poética e, ao mesmo tempo, alinhavar todo o conjunto de acordo com uma mesma atmosfera e identidade”, diz. O título escolhido busca expressar a ideia do amor como um sentimento que leva a descobertas e transformações.
Para interpretar as canções, Tommaso buscou referências da canção brasileira moderna, que é difere do estilo em que se gravava o samba-canção no período clássico do gênero. O ouvinte mais atento vai perceber, inclusive, referências sutis nas releituras, em pequenas citações. “Busquei um canto que revelasse a vulnerabilidade das personagens que contam as histórias nas canções. Tentei evitar o purismo técnico e me apegar ao rigor melódico, rítmico e interpretativo, dialogando com os belos arranjos e com as criações dos instrumentistas. A ideia foi trazer a palavra poética das canções para uma cena musical intimista”, diz o cantor.
Repertório traz clássicos e faixas autorais
Tommaso já sentia afinidade com o repertório que terminou selecionando para o álbum, pois realizara anteriormente alguns shows do gênero. “Tinha intimidade com essas canções mas, na verdade, a escolha foi totalmente pessoal. Uma escolha feita pelo coração. E em primeiro lugar está o coração do cantor, a química que tenho com essas canções e autores. Não tive a pretensão de afirmar que os compositores que escolhi são os melhores do gênero. Nosso cancioneiro possui inúmeros nomes excelentes. Esses que gravei são meu alicerce particular”, diz.
O álbum se inicia com a autoral Falar de Amor Agora, que representa bem a proposta do trabalho e que é assinada apenas por Tommaso. Mas três das faixas no CD são o resultado de parcerias. Em Eros e Psiquê nº 2, composta com Ricardo Wey, ele canta em dueto com Cláudio Lima. Em Falso Desbunde, parceria com Solange Sá, Tommaso divide os vocais com a própria. E a faixa que fecha o álbum, Elogio da Sombra, é um trabalho escrito à seis mãos com Solange Sá e Cezinha Oliveira.
Ainda no campo das composições originais, Rasga o Coração traz duas faixas nas quais o canto dá lugar à interpretação teatral. De um trecho de “Uma Aprendizagem ou O livro dos prazeres”, de Clarice Lispector, nasce a faixa Pas de Deux Sobre uma Página do Livro dos Prazeres. E do poema “O Grande Amor”, do livro “Meu Glorioso Pecado”, de Gilka Machado, foi concebida a faixa Tua Voz , uma ode sincera ao amor enunciada por Letícia Soares de Lima, cheia de sussurros, gemidos e rasuras.
A lista de regravações traz os clássicos A Noite do Meu Bem e Noite de Paz, de Dolores Duran, Eu sou a outra, de Ricardo Galeno, e Loucura e Ela Disse-me Assim, do mestre Lupicínio Rodrigues. Em comum, todas as faixas trazem, em seus arranjos, a dramaticidade sugerida pelo título do disco. Em Ilusão à Toa, de Johnny Alf, o instrumental cria uma atmosfera de jazz romântico. E outro destaque fica para a letra do poeta concretista Augusto de Campos para Sophisticated Lady, de Duke Elington, Irving Mills e Mitchell Parish. E há espaço para canções clássicas do repertório latino: La Nave del Olvido (Dino Ramos) e Amar Duele (Yvette Marchand), esta com participação da cantora Keyla Fogaça. E o álbum abrange também uma caliente regravação de Canción del Fuego Fatuo, obra no estilo flamenco de autoria de Emanuel de Falla.
Os artistas que participaram da gravação do álbum incluíram a dançarina de flamenco Ale Kalaf, na percussão corporal, e Bruna Prado, Cezinha Oliveira, Claudio Lima, Keyla Fogaça e Solange Sá nos vocais, além das declamações das atrizes Vanessa Bruno e Letícia Soares. Empunhando os instrumentos durante as gravações estiveram Guilherme Ribeiro (piano), Johnny Frateschi (baixo acústico), Rubinho Antunes (trompete e flugelhorn) e Pedro Macedo (baixo com arco).
Música, teatro e literatura
Ator, músico e professor de Literatura, Mario Tommaso possui uma trajetória marcada pela pesquisa e pela experimentação artística por meio de diferentes linguagens.
Em 2014, criou e protagonizou o espetáculo solo Ensaio Sobre o Absurdo, inspirado na obra de Albert Camus, no qual assinou também a dramaturgia. Seu percurso no teatro inclui participações em montagens como Os Justos (2003), de Albert Camus, e Bixiga, Uma Bela Vista (2004), de Sérvulo Augusto e Viviane Dias, ambas com direção de Roberto Lage. De 2003 a 2005, integrou o Núcleo de Investigação do Ágora, onde ampliou sua abordagem artística. Como diretor, assinou produções como Cada Mesa É Um Palco, de Cláudio Lima e Abre a Janela: Zé Guilherme Canta Orlando Silva.
Sua formação musical inclui estudos de canto lírico, canto popular e piano. Entre 2015 e 2018, coordenou a Escola Fórum das Artes, dedicada à formação de artistas e educadores na área cultural. Atualmente, é professor e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP).
Lançado em janeiro e de forma independente, Rasga o Coração conta com distribuição da Tratore e já está disponível em todas as plataformas de música.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.
Imagem acima: Rô Tamassia.