Decorridos mais de dois séculos da independência do Brasil, finalmente o país reconheceu a contribuição de uma mulher no mais importante movimento separatista do período Colonial. Na segunda-feira, 6/1, o presidente Lula sancionou a lei federal que autorizou a inscrição do nome de Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748 – 1828) no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, por conta de sua participação na Inconfidência Mineira. Hipólita tornou-se, assim, a vigésima- quarta mulher a merecer esta honraria.
Ela nasceu na cidade de Prados, a 185 km de Belo Horizonte, mas integrava a elite de Vila Rica (atual Ouro Preto), então a sede da capitania de Minas Gerais. Hipólita era uma mulher diferente para o seu tempo, bastante envolvida nas articulações políticas. Por isso, a Fazenda Ponta do Morro, de sua propriedade, serviu como local para encontros e reuniões secretas dos participantes do movimento, e ela mesma teve uma atuação crucial servindo como elo de comunicação entre os inconfidentes. Um dos indícios da relevância do papel que ela desempenhou é uma carta que escreveu para apontar aos colegas o inconfidente Joaquim Silvério dos Reis como delator e traidor do movimento.
Hipólita era filha de portugueses. Seu pai Pedro Teixeira de Melo era minerador e ocupou o cargo de capitão-mor. Foi casada com o coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes e era descrita como mulher de fino trato, possuidora de vasta cultura.
Não gerou descendentes, entretanto, adotou e educou duas crianças. Além disso, foi madrinha de diversas crianças humildes da região e, como também pode ser constatado por seu testamento, deixou grande quantidade de ouro para os pobres da então “Freguesia de Prados”. Um dos motivos que levou Hipólita Jacinta a participar da Inconfidência Mineira foi a situação das mulheres nas minerações. As mulheres carregavam gamelas cheias de ouro para ser lavado, e algumas atividades nas minas requeriam muito esforço físico.
Historiador foi pioneiro em pesquisar Hipólita
Um dos mais destacados pesquisadores da Inconfidência Mineira em atividade é o historiador André Figueiredo Rodrigues, docente do departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Assis da Unesp. Rodrigues teve um papel importante na recuperação da trajetória de Jacinta, e em tornar seu nome conhecido.
Desde sua pesquisa de doutorado, conduzida no começo dos anos 2000, o historiador se deparou com a figura de Hipólita, e também com outras mulheres que participaram da conjuração, com diferentes graus de influência e de envolvimento. “Raros são os trabalhos que destacaram a presença feminina nesse contexto. Em minhas investigações, busquei valorizar a contribuição de grupos minoritários, incluindo clérigos e mulheres, na Inconfidência. Há anos discuto amplamente que esse foi um movimento com significativa participação feminina. O destino de muitas daquelas famílias após a Inconfidência somente pode ser conhecido graças ao estudo da trajetória de algumas das mulheres que ali estiveram presentes”, conta. As trajetórias de algumas dessas mulheres foram abordadas em três livros e em alguns artigos de autoria do historiador.
O trabalho com a documentação associada ao movimento sedicioso e à repressão que se seguiu mostraram, porém, que Hipólita desempenhou um papel mais destacado. “O nome dela aparece com mais frequência nos registros relacionados à investigação da Inconfidência do que o de qualquer outra mulher envolvida”, conta. Em seu livro A Fortuna dos Inconfidentes, publicado em 2010, ele conseguiu mostrar o quanto a atuação da nova heroína da pátria foi importante, tanto servindo de elo de comunicação entre os inconfidentes quanto contribuindo financeiramente para ações que buscavam impulsionar o início do movimento.
“Após a notícia da prisão de Tiradentes, no Rio de Janeiro, em março de 1781, sua residência, a fazenda da Ponta do Morro, em Prados, serviu como um ponto de encontro para reuniões subversivas. Ela falava sobre o levante, instigava as pessoas a buscarem a liberdade. Isto é por demais heroico”, diz. “Ela rompeu a esfera doméstica privada, que era o ambiente geralmente reservado às mulheres e se destacou na história por sua voz e suas atitudes políticas em um contexto predominantemente masculino. Não me recordo de alguma mulher que tenha feito algo semelhante na história de Minas.”
Reconhecimento em MG só veio ano passado
Rodrigues conta que, ainda no ano passado, Hipólita recebeu outra importante homenagem ao se tornar a primeira mulher homenageada no panteão dos Inconfidentes, recebendo uma lápide com seu nome no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, Minas Gerais. Ele diz que esse reconhecimento se deveu, em grande parte, ao trabalho da professora Heloísa Starling, da UFMG.
“Imagine um museu para celebrar a memória da Inconfidência que não fazia menção às mulheres. Porque é inconcebível pensar a história da Inconfidência, ou um espaço de museu que celebre a Inconfidência, sem considerar a influência das mulheres em sua narrativa”, diz. Ele diz que, assim como Hipólita, diversas outras mulheres que participaram de importantes episódios de nossa história merecem alcançar, hoje, o reconhecimento por suas ações passadas.
“Reconhecer Hipólita como uma heroína abre novas perspectivas para compreendermos a relevância da participação feminina em movimentos de contestação. A construção das narrativas históricas, mesmo que muitos neguem esse fato, é um trabalho coletivo, e deve incluir visões que vão além de um grupo restrito. A essência da democracia reside em sua diversidade, e na visibilidade de todos os seus componentes. Portanto, é crucial que as mulheres reivindiquem seu lugar nesse panorama plural que caracteriza a democracia no Brasil.”
Ouça abaixo a íntegra da entrevista ao Podcast Unesp.
Imagem acima: imagem ficcional de Hipólita Jacinto. Crédito: UFMG.