Forno popular para fabricação de biocarvão visa diminuir impacto ambiental da cadeia produtiva do açaí na Amazônia

Produção da polpa da fruta pulou de menos de 7 milhões para mais de 100 milhões de toneladas em menos de uma década. Descarte inadequado de resíduos tem contaminado e assoreado igarapés e outros corpos d´água. Projeto mira pequenos produtores e propõe transformar remanescentes em material que aumenta fertilidade do solo.

Iguaria muito valorizada na Amazônia desde antes da chegada dos colonizadores, o açaí tornou-se hoje um alimento planetário, com entusiasmados consumidores dos Estados Unidos até a Ásia. Sua polpa, misturada ao extrato de guaraná, frutas, granola e servida em baixas temperaturas, caiu no gosto dos esportistas, tornando-se item obrigatório no cardápio de quiosques à beira-mar pelo seu sabor adocicado e refrescante.

Porém, é preciso distinguir o açaí que fascina os habitantes da Amazônia (em geral servido com farinha de mandioca ou de tapioca e peixe ou camarão frito) da polpa açucarada, acompanhada de guaraná, que efetivamente globalizou o consumo da fruta e fez sua produção disparar. Dados da Pesquisa Industrial Anual divulgados em 2023 pelo IBGE apontam que, em 2014, o Brasil produzia apenas 6,7 milhões de toneladas de polpa. Em 2021, esse total já havia superado os 100 milhões de toneladas.

O estado do Pará, que tem no açaí sua segunda principal cultura, depois da soja, responde por 90% da produção nacional. Essa liderança gera renda para os produtores, em sua maioria estabelecidos em pequenas e médias propriedades que operam em regime de organização familiar. Por outro lado, a crescente produção vem criando problemas de ordem ambiental, em virtude da quantidade de resíduos gerados, principalmente pelo descarte inadequado do caroço da fruta.

Para produzir a polpa, o açaí deve ser colhido e batido em equipamentos específicos para ser despolpado. O que sobra, além do líquido espesso de cor roxa, são grandes volumes de sementes, que representam a maior parte do volume da fruta, e muitas vezes são descartados em vias públicas ou em lixões, podendo causar o assoreamento e a contaminação de igarapés, riachos e outros corpos d’água.

Chorume escorrendo pela linha d’água. Substância pode contaminar igarapé, que costuma ser fonte de alimentação humana e animal, além de recurso para irrigação e psicultura.

Durante o projeto de mestrado apresentado no Programa de Pós-Graduação em Ciências do Solo da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, câmpus de Jaboticabal, o engenheiro agrônomo Moisés Mendonça desenvolveu um protótipo de forno de baixo custo para transformar o caroço do açaí em biochar. O produto, também conhecido como biocarvão, é obtido a partir da queima de uma biomassa (o caroço) a altas temperaturas e baixa oferta de oxigênio, em um processo chamado pirólise. O biochar não é um produto novo na literatura científica, mas suas aplicações têm sido objeto de diversos estudos nos últimos anos em virtude dos efeitos benéficos que pode promover para o solo.

O mestrado de Mendonça na Unesp foi viabilizado pelo programa Minter/Dinter, da Capes, que apoia a realização de cursos de pós-graduação stricto sensu interinstitucionais para a rede federal de educação profissional e tecnológica. Na hora de escolher um tema para a sua dissertação, o pesquisador procurou algo que se conectasse com a realidade amazônica. Ao pesquisar na literatura científica, conheceu o biochar e associou suas propriedades à problemática dos resíduos sólidos oriundos da produção do açaí.

“O açaí é muito importante para o Pará, gerando renda e riqueza para o estado. Mas, quando olhamos para o lado ambiental, fica claro o quanto essa produção agride o meio ambiente local”, explica o egresso da Unesp, atualmente cursando o doutorado em Desenvolvimento Rural e Sistemas Agroalimentares no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), no câmpus da cidade de Castanhal. “Onde quer que exista agroindústria familiar ou uma grande produção, podem ser encontrados resíduos de caroço. O problema não está apenas na poluição visual. O resíduo exposto a céu aberto gera chorume, que segue a linha d’água e afeta igarapés, riachos e rios. O impacto é grande”, diz.

Melhora para a qualidade do solo

Orientador do projeto de mestrado de Mendonça em Jaboticabal, o engenheiro agrônomo Wanderley de Melo explica que o biochar, por não sofrer uma queima total, como se dá durante a fabricação do carvão convencional, acaba preservando uma série de elementos importantes, como o enxofre, fósforo e outros nutrientes que melhoram a fertilidade do solo.

“Usamos o caroço do açaí nesse processo. Mas poderíamos usar lodo de esgoto, podas de árvores ou o resíduo de quase qualquer cultura agrícola. O Brasil é hoje um grande consumidor e importador de fertilizantes. Seria importante se a gente aproveitasse esses resíduos para reduzir essa dependência”, afirma o professor. Atualmente, ele supervisiona outro projeto na área, no qual a produção de biochar ocorre a partir de restos da produção do cacau.

Caroço de açaí secando ao sol para a produção de biochar.

Outra vantagem da produção do biochar é que a queima parcial pela pirólise também imobiliza moléculas de carbono que, caso ocorresse a queima total, seriam liberadas na atmosfera. Uma vez que o carbono esteja retido no solo, sua liberação se dará por meio do processo natural de decomposição do biochar, que é lento. Esse aprisionamento do carbono no solo contribui para reduzir a emissão de gases de efeito estufa.

Mendonça destaca também como benéfica a capacidade do biochar de reter a umidade do solo. “Isso é importante na Amazônia, onde temos seis meses de chuva e seis meses secos. Além disso, o solo é arenoso, o que reduz sua capacidade de reter a água. O biochar, por ser um material poroso, ajuda a reter essa água nas raízes da planta durante o período mais seco do ano”, diz ele, que além de doutorando é professor no IFPA.

Forno usa material acessível

O projeto que Mendonça desenvolveu em seu mestrado na Unesp envolveu o desenvolvimento de um forno rústico, de estrutura simples e barata, que se baseia no reúso de materiais facilmente encontrados na região. Isso permite que a tecnologia seja apropriada pelos agricultores locais, capacitando-os a produzirem seu próprio biochar. O trabalho também avaliou a aplicação deste biocarvão produzido rusticamente como condicionador de solo para a produção de mudas de pimenta-do-reino, outra cultura de importância econômica da região. A pesquisa foi publicada em setembro no Journal of Environmental Management.

O forno foi construído a partir de um tambor grande de 200 litros. Dentro dele foi colocado um tambor menor, de 100 litros, totalmente carregado com os caroços do açaí. A diferença de volume entre os dois tambores foi preenchida com material combustível, no caso resíduos de podas da própria fazenda-escola do câmpus do IFPA, em Castanhal. “Para elaborar esse forno, pesquisei alguns equipamentos fora do Brasil. Cheguei a esse modelo que usa tambores porque se mostrou o material mais simples e acessível que encontrei. Ao longo de algumas rodovias do Pará é comum encontrar vários desses tambores, que são descartados pela indústria e depois revendidos”, diz Mendonça.

Além da construção do forno rústico, o experimento também analisou os efeitos da aplicação de quatro taxas diferentes (4, 8 16 e 32 g) de biochar à terra, cada uma com quatro granulometrias (3, 5, 7 e 12 mm de diâmetro), além de um grupo de mudas controle que não continha o biocarvão. Os resultados apontaram que a combinação de 32 g (equivalente a uma aplicação de 32 t/ha) com partículas de 5 mm foi a que apresentou os melhores resultados para o crescimento das raízes das mudas. O trabalho também encontrou efeitos positivos na altura das mudas em aplicações de 16 t/ha com partículas de 5 mm. O uso do biochar mostrou ainda capacidade de aumentar a retenção de água, afetando positivamente a umidade do solo.

A comprovação de que o biochar, mesmo que produzido de forma rústica e acessível, apresenta impactos positivos nas propriedades e fertilidade do solo, estimulou Mendonça a aperfeiçoar o produto durante o doutorado. Seu orientador nesta etapa é o engenheiro agrônomo Romier da Paixão Souza. Souza explica que a apropriação da tecnologia por parte dos produtores locais é sempre um desafio para a aplicação de uma tecnologia social. Professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural e Sistemas Agroalimentares do IFPA, ele tem centrado boa parte de sua atuação acadêmica nos últimos anos na educação no campo e no desenvolvimento de tecnologias sociais aplicáveis à agroecologia.

“Além desse processo de apropriação, outra dificuldade costuma ser a adaptação e a construção de equipamentos que efetivamente atendam às condições dos produtores rurais e cuja utilização seja realmente possível”, explica o professor do IFPA. Para enfrentar o primeiro desafio, Souza aposta na educação ambiental junto aos agricultores, suas famílias e no entorno das comunidades. Já a elaboração de equipamentos que sirvam aos agricultores passa, em parte, pelo trabalho que vem sendo realizado no Laboratório de Bioinsumos da Amazônia.

A proposta da estrutura, explica o professor, é abrigar projetos inovadores de tecnologia social, mas também estimular o uso por parte dos produtores da compostagem, vermicompostagem e de biofertilizantes para reduzir o uso da adubação química, em geral mais cara e agressiva ao meio ambiente. “Uma tecnologia nova que temos trabalhado é o uso dos microrganismos eficientes capturados na mata. Por meio de um processo que adaptamos para a região amazônica, esses organismos são multiplicados em laboratório e dispostos na forma de uma biocalda benéfica para as plantas”, explica.

Fumaça gerada pelo início da queima dos resíduos para produção do biochar.

Outro projeto do laboratório desenvolveu uma colheitadeira manual de mandioca que facilita o arranque do tubérculo do solo, diminuindo consideravelmente o esforço do produtor. “Essas tecnologias são registradas na forma de patentes com conhecimento aberto. A ideia não é gerar uma patente para ganhar dinheiro, mas para que as pessoas possam se apropriar da tecnologia”, diz Souza.

Após uma primeira versão concebida durante o mestrado na Unesp, Mendonça tem trabalhado no aprimoramento do forno junto a um assentamento da cidade de Castanhal, onde produtores locais testam, avaliam e colaboram com sugestões de melhorias no projeto. Entre os incrementos da nova versão, por exemplo, está o controle da temperatura do forno, permitindo que o biochar fique pronto após um período de 6 a 8 horas, enquanto a versão anterior necessitava de 12 horas de queima.

“A proposta é que o forno para a produção de biochar a partir do caroço do açaí reúna aspectos sociais, ambientais e econômicos. Isso porque o produtor poderá deixar de depender da aquisição de fertilizantes químicos para produzir seu próprio adubo orgânico, e possam inclusive comercializar esse material como um produto”, diz Mendonça.

Imagens acima: Moisés Mendonça.