‘Diretas Já’ na Unesp: há 40 anos, universidade se mobilizou em campanha pioneira para reivindicar democratização do processo de escolha do reitor – parte 2

Universidade nasceu na ditadura, em 1976, e atravessou um longo caminho até a chegada de novo estatuto, em 1989. Embora Saad, eleito pela comunidade, não tenha sido escolhido para reitor, processo construiu as bases de ambiente democrático interno e consolidou a instituição.

Jornal da Unesp publica hoje a segunda parte da reportagem sobre os bastidores do processo de transição democrática na Unesp. Para ler a primeira, clique aqui.

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“A Unesp é nossa”, dizia a faixa destacada no alto da reitoria ocupada na praça da Sé, no centro de São Paulo, em 1984. Na época, não era uma afirmação qualquer. Isso porque a universidade foi fundada em 1976, sob o signo da ditadura militar.

Nasceu de uma canetada do governador Paulo Egydio (1928-2021), que decidiu reunir os antigos “institutos isolados” e nomeou como primeiro reitor Luiz Ferreira Martins (1935-2021), então coordenador da Cesesp (Coordenadoria do Ensino Superior do Estado de São Paulo). Também foi uma canetada que definiu o nome que a nova universidade carregaria: Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), jornalista, da família que fundou o jornal O Estado de S. Paulo.

Não foi por acaso: a homenagem foi um afago ao Estadão, que publicou diversos editoriais contra os institutos isolados, conta Ulysses Telles Guariba Netto (1940-2017), no livro Tenho algo a dizer, projeto realizado pelo Cedem e pelo OEDH (Observatório de Educação em Direitos Humanos), publicado em 2014.

Martins remanejou docentes e rearranjou cursos, fechou disciplinas e departamentos. Um conselho provisório, composto pelos diretores das diversas unidades, elaborou o estatuto da universidade, sem diálogo com os segmentos acadêmicos. Eram tempos nebulosos, marcados pelo autoritarismo.

Contando com a confiança do governador do Estado (que entre 1966 e 1982 era eleito por via indireta, a fim de poupar o governo federal de lidar com opositores), o reitor indicava os diretores das unidades e dava o tom. Professores e alunos podiam ser suspensos, demitidos ou desligados, de acordo com seu engajamento nos movimentos de docentes e discentes, e nas questões universitárias. Às vezes, sequer eram comunicados do motivo pelo qual recebiam a punição. A atitude arbitrária estabelecia exemplos a fim de desencorajar iniciativas de mobilização.

Apenas seis meses depois do surgimento da Unesp, foi fundada a Associação de Docentes da Unesp, a Adunesp, primeira instituição de docentes de ensino superior do país. Seu primeiro presidente foi Waldemar Saffioti (1922-1999), docente do Instituto de Química, do câmpus de Araraquara. Um “Dom Quixote”, segundo a definição prestada pelo amigo Telmo Arraes à Comissão da Verdade da Unesp, cujo relatório final foi organizado pela historiadora Anna Maria Martinez Corrêa, do câmpus de Assis, e publicado em 2014. Saffioti e outros viajaram para diversos câmpus para mobilizar docentes que, até então, não tinham representatividade no Conselho Universitário.

A articulação era importante, dado o histórico conflituoso de relacionamento entre as autoridades militares e as universidades. Após o início do regime militar, faculdades foram invadidas por agentes da repressão, reitorias foram alvo de intervenções, estudantes foram perseguidos e presos, professores, expurgados.

Passado de engajamento

E, nos antigos institutos isolados, antes do surgimento da Unesp, professores e estudantes já estavam engajados na resistência à ditadura. A Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto, por exemplo, foi invadida pela polícia já no dia 1º de abril de 1964, o dia do golpe. Prisões ocorreram em Araraquara, Assis e Rio Claro, entre outras unidades. Professores e estudantes eram considerados “inimigos da ordem”, afirma a socióloga Maria Ribeiro do Valle, do câmpus de Araraquara, no livro Tenho algo a dizer.

“Diferentemente da USP ou da Unicamp, a Unesp não trazia uma história, mas mais de 10 histórias. E os câmpus de Assis, Araraquara, Botucatu e outros já vinham de uma trajetória própria de luta muito forte”, diz Solange Tóla, 61, então estudante de agronomia de Botucatu, que também participou da ocupação. “A jovem FCMBB [Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu] já nasceu para resistir”, diz José Roberto Tozoni Reis, 76, que foi presidente do diretório acadêmico entre 1968 e 1969, e depois integrou o movimento docente, sendo tesoureiro de 1984 a 1987.

Em sentido horário, Milton Lahuerta e Antônio Luiz Caldas Junior (fotos antigas e atuais), Solange Tóla, Adail Rollo, Gilberto Moreira Mello e Marco Aurélio Nogueira (fotos atuais); no centro, abaixo, William Saad e Reinaldo Ayer (foto antiga)

Efetivamente, estudantes da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu ganharam as manchetes de jornais do estado no ano de 1967 quando conduziram a “Operação Andarilho”, uma marcha de 256 km que saiu do interior até a capital paulista, passando e panfletando pelas cidades de Conchas, Laranjal Paulista, Tietê e Itu até o trevo de Jundiaí.

“Todo mundo de avental, chapéu e pirulito na mão, reivindicando verbas para o hospital”, disse Roberto Sogayar, professor emérito do Instituto de Biociências falecido em 2024, no livro Faculdade de Medicina de Botucatu: 60 anos em 60 depoimentos, organizado por Martha Morais e Maria Cristina Pereira Lima e publicado em 2023.

Em 1968, lembra Tozoni, no Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Ibiúna, a palavra de ordem era “ocupar todas as universidades” alvo de repressão. Assis e Botucatu estavam nessa “vanguarda”, diz.

Foi nessa época que foi feito um congresso que reuniu alunos, docentes e servidores dos institutos isolados, em Assis, onde se propôs se formar uma “Udesp”: Universidade Democrática de São Paulo.

Docentes, estudantes e residentes fizeram protestos pró-Saad no câmpus de Botucatu

Professores encararam tropa de choque

Na manhã de 21 de maio de 1981, o governador Paulo Maluf (PDS) visitou o câmpus de Botucatu. Entregaria equipamentos de laboratório de US$ 25 milhões, adquiridos por um convênio do governo federal com a Alemanha (à época, a oriental, comunista) – isto é, não era uma conquista de Maluf. Cerca de 400 estudantes fizeram um protesto pacífico no câmpus, que terminou tumultuado por guarda-costas do governador à paisana. Alunos contra-atacaram com uma “chuva de torrões de terra”, relata Antônio Luiz Caldas Júnior, 73.

Um dos agredidos com pedaços de pau pelos seguranças de Maluf foi Adail Rollo, 68, que era presidente do Centro Acadêmico Pirajá da Silva- CAPS e aluno do quinto ano de medicina na época. “O câmpus era muito mobilizado. Fazíamos murais e xerox do Pasquim e da Folha para espalhar. Fazíamos festas, shows proclamando poesias e cantando Elis Regina e Milton Nascimento, para arrecadar fundos para alugar ônibus para as caravanas de estudantes e professores para São Paulo”, conta. “Tinha uma articulação forte entre estudantes e docentes. Uma vez, num dos protestos, professores entraram na frente da tropa de choque para proteger os alunos”, diz ele, hoje professor na Unicamp.

“No câmpus, eu me formei como médico e me formei politicamente também. Viver em uma cidade pequena me abriu os olhos para um mundo maior do que eu conhecia”, afirma Tércio Loureiro Redondo, 66, uma das lideranças do movimento estudantil, hoje professor na USP.

No câmpus de Assis, onde ocorreu uma longa ocupação pedindo eleições diretas para diretoria, em 1983, estudantes e docentes fizeram uma universidade “alternativa”: “Qualquer aluno podia frequentar qualquer disciplina de qualquer docente. Tinha atividades ao ar livre, no bosque e na quadra. Ocupamos tudo. Assumimos o restaurante universitário, cozinhamos com o que era arrecadado na cidade. Alunos também podiam oferecer cursos, tudo aberto. Mas, como toda iniciativa arrojada, não durou tanto tempo”, lembra José Sterza Justo, 71. Foram cerca de 60 dias.

Na época, estudantes costumavam alugar ônibus ou pegar carona, inclusive de caminhões, para ir encontrar unespianos de outras unidades. Entre 1983 e 1984, quando estourou a campanha para eleições diretas para reitoria [leia mais], os encontros se tornaram mais frequentes – pré-internet, eram marcados por telefone, telex e carta, com informes e boletins feitos artesanalmente. Na ocupação da reitoria na praça da Sé, no centro da capital paulista, em 1984, quase todos os 15 câmpus estavam representados.

Eles protestavam porque embora William Saad Hossne (1927-2016), do câmpus de Botucatu, fosse o candidato mais votado para reitor nas duas consultas realizadas junto à comunidade universitária, sequer teve seu nome incluído na primeira lista do Conselho Universitário encaminhada ao governador Franco Montoro (MDB). O Conselho Universitário era composto por indicados da reitoria, apenas com diretores, sem participação de professores e alunos. O impasse envolvendo a escolha do reitor da Unesp em 1984 durou meses.

De Saad à Sé

No fim de julho de 1984, Montoro negociou com os estudantes o fim da ocupação da reitoria, comprometendo-se a encontrar uma saída para o impasse. Nomeou então Jorge Nagle, docente do câmpus de Araraquara, como reitor temporário. E, em janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral mandou uma nova lista ao governador, desta vez indicando os candidatos em ordem, o que conferia mais prestígio ao primeiro nome listado, facilitando sua escolha pelo governador.

Quando a lista foi divulgada, porém, nova surpresa: em primeiro lugar estava o nome do próprio reitor temporário em exercício, Jorge Nagle. Saad era o segundo. Completavam as indicações os nomes de Trindade, Paulo Landim, Gilberto Filippo e Nilo Odália.

Entre idas e vindas, a movimentação pela democratização do processo de escolha do reitor da Unesp resultou na nomeação de Jorge Nagle. Saad, tantas vezes indicado, nunca foi escolhido pelo governador. Alguns interpretaram a escolha de Montoro como uma derrota do movimento. Para outros, Nagle apareceu como a melhor alternativa para que se efetivasse uma transição na universidade.

Nagle, de acordo com Antônio Luiz Caldas Júnior, docente aposentado da FMB, se encaixou “entre o desejável e o possível”. “Fez uma gestão democrática e arejada – e as discussões levantadas na Unesp serviram de modelo para outras universidades. Fez o que era possível na época. Só ficou uma injustiça: Saad faleceu e nunca foi empossado como reitor. Hoje, há diplomas póstumos e professores incorporados, como atos de justiça pelo que ocorreu na ditadura. O Conselho Universitário podia dar o título de reitor póstumo a Saad, um ato simbólico.”

Nagle, diz o cientista político Marco Aurélio Nogueira, 74, docente aposentado da Faculdade de Ciências e Letras, câmpus de Araraquara, era um “outsider”, pois não era um acadêmico “ativista”; ao mesmo tempo, tinha um perfil conciliador, capaz de dialogar com o Conselho Universitário para promover as mudanças que eram esperadas à época. “Não tinha outro caminho a não ser o do realismo político”, diz Nogueira, que estava num pós-doutorado na Itália e, ao voltar, assumiu a assessoria de Nagle, entre 1986 e 1988. Depois, foi um dos idealizadores da editora da Unesp.

Nogueira, Nagle e Nilo Odália eram “pesos pesados” nas discussões sobre educação na época, pondera Milton Lahuerta, 70, do câmpus de Araraquara. “Nagle assumiu uma reitoria que não tinha editora, não tinha jornal, não tinha outras seções importantes, e construiu institucionalmente a reitoria do zero”, diz.

“Enfim, a vida da qual nos orgulhamos foi uma sucessão de revezes, de derrotas. Sempre pretendemos mais do que conseguíamos fazer, mas acredito que a construção de uma sociedade pautada por justiça social e democracia é realizada assim mesmo. Propomos muito, não conseguimos, mas se avança e se constrói”, diz Luiz Rocha, professor da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Assis desde 1983, no livro Tenho algo a dizer.

Após a sucessão, o novo estatuto

Nos anos seguintes, diversos congressos e simpósios internos foram organizados para debater, democraticamente, a criação de um novo estatuto para a universidade. “Uma prática que passou a ser adotada em quase toda a Unesp, por ocasião da eleição de novos diretores, foi a de promover consultas para a escolha dos candidatos e abrir discussões a respeito dos projetos a serem desenvolvidos. O tema da democratização da universidade era um alerta para as proposições correntes”, contextualiza Anna Maria Martinez Corrêa, no relatório final da Comissão da Verdade da Unesp.

Ao fim da gestão de Nagle, em 1988, a Unesp caminhou para um novo capítulo. Procedeu-se então a um processo de escolha de reitor ancorado na vontade da comunidade universitária. Até lá, a questão foi alvo de atos diversos, inclusive marchas rumo ao Palácio dos Bandeirantes, com acampamento de manifestantes no Parque do Ibirapuera.

Foi escolhido Paulo Landim, 86, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, câmpus de Rio Claro, o primeiro reitor eleito pela universidade e hoje professor emérito instalado em Botucatu. Landim levou a cabo a aprovação do novo estatuto para a universidade, em 1989, que está em vigor até hoje. O artigo 30 diz que a reitoria é nomeada pelo governo a partir de listas tríplices elaboradas pelo Colégio Eleitoral “a partir do resultado de consulta prévia à comunidade universitária”.

O legado da primeira consulta para reitor

Para Justo, professor da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Assis, uma das consequências do movimento que procurou democratizar o processo de consulta para reitor na universidade foi a mudança nas “relações de poder entre uma antiga casta de catedráticos e os jovens professores mais democratas”. “Foi uma luta que valeu ser vivida naquele momento. Temos uma Unesp mais democrática, mas que pode melhorar mais.”

Para Reis, professor do câmpus de Botucatu, as expectativas também eram altas. “Esperava que o processo continuasse e que não haveria retrocesso porque conseguimos fazer eleição direta para todos os quadros de dirigentes em todos os câmpus e aumentamos bastante a participação de docentes, estudantes e servidores nos órgãos colegiados”, diz.

“No entanto, com o passar do tempo, as mudanças se acomodaram e se tornaram práticas burocráticas, enquanto a mentalidade dos sujeitos acadêmicos se transformava. A supervalorização da produção científica e acadêmica fundamentada no produtivismo estimulou o individualismo e a competitividade. Os docentes, em particular, passaram a pensar muito mais em suas carreiras individuais do que no desenvolvimento coletivo da ciência e da universidade.”

‘O movimento por eleições diretas para a reitoria foi o momento mais importante da história da Unesp’, diz Paulo Landim (ao centro)

“O movimento entre os anos de 1983 e 1984 politizou a universidade”, diz Reinaldo Ayer, 79, pupilo de Saad à época e hoje professor na USP. Muitos acadêmicos que participaram do movimento depois se engajaram no processo de construção do novo estatuto da Unesp. Ayer cita, por exemplo, uma assembleia realizada no câmpus de Jaboticabal com alunos, professores, servidores e diversas lideranças, entre elas Nagle e Landim, para discutir o documento.

Para Landim, as diretas foram “o momento mais importante da história da Unesp”: “Foi quando deixamos de ser ‘institutos isolados’ e realmente nos tornamos uma comunidade acadêmica, uma universidade”.

Reitor desde 2021, Pasqual Barretti cursava residência no Hospital das Clínicas da FMB no ano de 1984, por isso não pode se juntar à ocupação da reitoria. “Os residentes não tinham condições de fazer greves ou ocupações porque a imensa maioria dos professores da FMB estava muito engajada”, lembra. Mesmo assim, participou de assembleias e reuniões.

Barretti considera que o movimento de 1984 moldou a identidade da Unesp. “Se o movimento não tivesse ocorrido e gerado desdobramentos, não teríamos legitimidade para alcançar a autonomia orçamentária e financeira de que desfrutamos hoje”, diz. Ele atribui à combinação destes dois elementos, a escolha para reitor e a autonomia universitária para gestão de seus recursos (que foi estabelecida no âmbito estadual por decreto em 1989) a continuidade e a consolidação da Unesp.

“Sem essas duas coisas, acho que a Unesp não teria sobrevivido”, diz. “Eram 13 câmpus diferentes que foram reunidos para dar origem a uma universidade num processo sem muita discussão, e sob uma gestão autoritária”, analisa.

Para Barretti, sem a consolidação do processo de consulta à universidade para a eleição do reitor, e todo o ambiente democrático que esta consulta pressupõe, não teria surgido uma integração real entre as diversas unidades. “Cada câmpus ia querer montar sua ‘universidadezinha’ particular,  assegurar seu espaço e brigar sozinho”, diz. “O legado daquele movimento, que ocorreu 40 anos atrás, é este ambiente democrático que se instaurou em nossa universidade. Sem este ambiente, não teríamos podido construir a Unesp tal como ela é hoje.”