Sem muito alarde, mas sob a pressão de muitos interesses, o Congresso Nacional tem discutido um tema que tem efeito direto na saúde dos brasileiros, em especial a dos mais jovens: os cigarros eletrônicos. No último dia 18, a Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados realizou um debate para discutir o PL 2158/24, uma proposta que altera o Código Penal para proibir a fabricação, importação e comercialização dos cigarros eletrônicos, punindo os infratores com penas que vão de um a três anos. Há também uma outra proposta, o Projeto de Lei 5008/23, que dispõe sobre a legalização, comercialização e fiscalização desse produto, que até o momento foi duas vezes colocada e retirada da pauta da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Tanto na Câmara como no Senado, as discussões têm sido intensas, com parlamentares divididos entre a liberação e a proibição da comercialização desses dispositivos eletrônicos.
A controvérsia entre os parlamentares espelha a divergência de posições defendidas pelos diferentes grupos sociais. Mas isso não acontece no campo da saúde. Mais de 80 sociedades médicas já se posicionaram contra o projeto, argumentando que a liberação enfraqueceria décadas de políticas públicas implementadas e de atuação autoridades médicas brasileiras, que se revelaram bem-sucedidas no combate ao tabagismo.
Além disso, evidências mostram que em países onde os cigarros eletrônicos foram regulamentados, como o Reino Unido, houve um aumento significativo do uso entre adolescentes e jovens adultos. “Nos dias atuais, o vício em nicotina não está mais restrito ao cigarro convencional ou artesanal. Agora ele também está presente em cigarros eletrônicos, produtos de tabaco aquecido, sachês e pastilhas de nicotina, o que representa uma grave ameaça à saúde individual e coletiva”, diz Irma de Godoy, professora da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. A nicotina é uma substância psicoativa presente no tabaco que age no cérebro estimulando a liberação de dopamina, gerando prazer imediato e reforçando o comportamento de uso contínuo. Ela é o elemento central no desenvolvimento da dependência.
No Brasil, o uso e a comercialização desses cigarros estão proibidos desde 2009 por orientação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Tal circunstância, porém, não impede que o mercado consumidor seja estimado hoje em cerca de 3 milhões de pessoas, de acordo com pesquisa do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica). O maior número de usuários está concentrado no Paraná (4,5%), seguido pelo Mato Grosso do Sul (4%) e Distrito Federal (3,7%). Esses estados, fronteiriços com o Paraguai, se destacam pelo volume de produtos contrabandeados, o que contribui para o aumento do consumo.
Com a finalidade de reafirmar a restrição em vigor desde 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou, em abril deste ano, uma resolução que proíbe a fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar, como cigarros eletrônicos, vapes e produtos de tabaco aquecido. A proibição também abrange a entrada desses produtos no país por meio de viajantes, independentemente do tipo de importação. A decisão foi embasada em pareceres de associações científicas e recomendações internacionais.
Os cigarros eletrônicos ou vaporizadores, também chamados de vapes, surgiram na China, no início dos anos 2000. Chegaram ao mercado acenando com uma alternativa ao tabagismo tradicional, e alcançaram popularidade global na década de 2010. Ao longo deste período passaram por muitas transformações. No entanto, a ocorrência de casos de uma doença respiratória grave, em 2019, foi um alerta importante às autoridades de saúde e ao público sobre o perigo que estava chegando às bocas dos jovens, e foi seguido das primeiras movimentações para denunciar os riscos associados ao cigarro eletrônico.
O susto da EVALI
Conhecida pela sigla EVALI (E-cigarette or Vaping product use-Associated Lung Injury), a doença levou jovens na faixa dos 20 anos, muitos deles sem antecedentes de doenças pulmonares, a buscarem atendimento médico para tratar de sintomas graves como dificuldade para respirar, tosse e dores no peito. Esses sinais frequentemente vinham acompanhados de desconforto abdominal, náuseas, vômitos, diarreia, cansaço extremo, febre e perda de peso significativa.
Mais de 2.800 casos foram registrados nos Estados Unidos, com 68 mortes confirmadas. Em comum, todos os pacientes acometidos eram usuários de cigarros eletrônicos. No Brasil, o impacto do EVALI foi menor, com apenas sete casos registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Aqui, a falta de registros mais amplos dos casos chegou a ser atribuída à subnotificação e à semelhança dos sintomas com outras doenças respiratórias, especialmente durante a pandemia de Covid-19.
O surto de EVALI em 2019 foi relacionado aos líquidos inseridos nos dispositivos eletrônicos usados na época. Os primeiros vapes utilizavam misturas contendo acetato de vitamina E, uma substância viscosa encontrada especialmente nos dispositivos contendo o canabinoide THC e nicotina de base livre, uma forma pura da substância estável e altamente alcalina, causadora de irritação na garganta e que oferece uma absorção mais lenta no organismo.
Após 2019, tanto o acetato de vitamina E quanto a nicotina freebase foram amplamente substituídos nos dispositivos eletrônicos. A indústria migrou para o sal de nicotina, uma formulação mais suave e mais estável quimicamente. Ele permite uma absorção muito mais rápida da substância pelo organismo, potencializando os seus efeitos, além de possibilitar concentrações mais elevadas em volumes menores de líquido. O resultado é uma dependência mais intensa e que se desenvolve em menos tempo. “O sal de nicotina proporciona picos plasmáticos de nicotina em segundos, reforçando rapidamente o comportamento viciante”, explica a cardiologista Jaqueline Scholz, diretora do Programa de Tratamento do Tabagismo do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/FMUSP).
“Com o avanço dos dispositivos descartáveis e a eliminação do acetato de vitamina E, os casos de EVALI diminuíram significativamente. Mas o dano à saúde causado por esses dispositivos não deixou de existir”, diz Ubiratan Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e médico assistente na Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração (InCor/FMUSP).
Por um lado, essa mudança de composição eliminou o risco oferecido por substâncias adulteradas associadas ao EVALI. No entanto, os novos dispositivos, em especial os descartáveis, passaram a encorajar o acesso a concentrações maiores de nicotina, tornando-os muito atraentes para os jovens.
A dependência de nicotina no uso de cigarros eletrônicos é considerada mais intensa, em comparação àquela que advém do cigarro convencional. A elevada quantidade de nicotina nos dispositivos de vape pode levar as pessoas a se viciarem mais rapidamente e a terem mais dificuldade em parar de usar o cigarro eletrônico do que o cigarro tradicional.
“Quando a nicotina é inalada, ela chega ao cérebro muito mais rapidamente do que a nicotina absorvida por meio de adesivos. Além disso, a forma como a nicotina é consumida através do vape, que envolve tragadas diretas, aumenta a quantidade que entra no sistema, contribuindo para uma dependência mais forte”, diz Santos.
A mudança no perfil de usuários é um dos pontos mais destacados pelos especialistas. “Antes, a clientela que procurava tratamento para dependência de nicotina era formada majoritariamente por fumantes de cigarro comum. Hoje, quase 20% dos pacientes que atendo são usuários de cigarro eletrônico”, explica a cardiologista Jaqueline Scholz, sublinhando que a faixa etária desses pacientes é predominantemente jovem, com idades entre 20 e 23 anos. Além disso, o tempo médio de uso desses dispositivos é curto, apenas três a quatro anos, mas já é suficiente para que a dependência se torne grave. “Esses jovens buscam ajuda porque a dependência se tornou tão forte que muitos não conseguem lidar com ela”, diz.
No Brasil, explosão de consumo
Os parlamentares que defendem a liberação dos dispositivos eletrônicos de fumar sustentam que a proibição foi insuficiente para impedir uma explosão no consumo, que cresceu 600% entre 2018 e 2023 segundo a pesquisa do IPEC. O relator do projeto no Senado, o senador Eduardo Braga, cita um relatório da Federação das Indústrias de Minas Gerais que estima em 114 mil o número de empregos que poderiam ser criados caso o Brasil passasse a produzir e comercializar legalmente os vapes. Isso sem contar os lucros obtidos com impostos, estimados em mais de R$ 670 milhões. A Associação Brasileira da Indústria do Fumo também publicou uma nota defendendo o projeto de liberação e regularização, reafirmando que se trata de uma “alternativa de menor risco” ao cigarro convencional.
Os impactos a longo prazo dos dispositivos eletrônicos de fumar ainda não são totalmente compreendidos. “Os efeitos cumulativos do uso prolongado podem trazer surpresas desagradáveis, especialmente em relação à saúde respiratória e cardiovascular”, diz Santos. Para ele, muitos usuários de vapes enfrentam dificuldades significativas para parar de usar esses dispositivos, mesmo quando tentam substituí-los por métodos tradicionais de cessação, como adesivos de nicotina e gomas de mascar. “Para os usuários de cigarros convencionais, existem várias opções de tratamento, como adesivos, goma de nicotina, vareniclina e bupropiona.
No entanto, não há um arsenal similar bem definido para usuários de vapes, o que dificulta o tratamento”, afirma o especialista. Atualmente, há vapes descartáveis, projetados para uso único, e os modelos recarregáveis, que utilizam refis líquidos em sistemas abertos ou fechados. Existem também os produtos de tabaco aquecido, com um mecanismo eletrônico onde é inserido um refil com base sólida, geralmente tabaco. Além disso, podem conter formas diferenciadas de nicotina, como sais de nicotina ou versões sintéticas, bem como outras plantas ou substâncias alternativas ao tabaco.
A realidade na Unesp
Entre estudantes universitários, a situação é ainda mais alarmante. “Pesquisa que realizamos entre os alunos da Unesp em 2023 mostrou que 20% haviam usado cigarros eletrônicos nos últimos 30 dias. Além disso, 11% relataram o uso combinado de cigarros tradicionais e eletrônicos, um padrão que amplia os riscos à saúde. O levantamento mostrou ainda que a faixa etária predominante desses usuários varia de 18 a 23 anos”, descreve Godoy.
O levantamento utilizou um questionário online que foi respondido por 863 alunos, permitindo uma coleta de dados abrangente e eficiente. Esses números reforçam a preocupação com a disseminação cada vez maior desses dispositivos entre jovens, um público particularmente sensível ao apelo dos sabores, do design moderno e da percepção equivocada de segurança.
A pesquisa com alunos da Unesp evidenciou também que o impacto do tabagismo vai além dos usuários diretos. Godoy diz que 15% das mortes relacionadas ao tabaco no Brasil são decorrentes de exposição passiva, afetando pessoas que nunca fumaram. “O cigarro não é apenas um problema de saúde individual, mas uma questão coletiva que inclui saúde pública e impacto ambiental.”
Modelo a ser replicado
Os dados levantados pela Unesp são parte de um projeto pioneiro voltado à compreensão e mitigação dos impactos desse comportamento. A iniciativa combina pesquisa acadêmica, análise de dados e campanhas educativas, criando um modelo que pode ser replicado em outras instituições e comunidades. Apostando no poder do engajamento comunitário, o projeto é liderado pela pneumologista Irma de Godoy e realizado por uma parceria entre a Coordenadoria de Saúde da Unesp, liderada por Ludmila de Cândida Braga, e o Programa Estadual de Controle do Tabaco da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, coordenado por Sandra Marques.
O estudo foi projetado com o objetivo de mapear a prevalência e as condições de uso de diferentes formas de tabaco entre os estudantes universitários. Focado em alunos ingressantes nos anos de 2023 e 2024, o levantamento abrange tanto o consumo de cigarros convencionais quanto o de cigarros eletrônicos.
“É essencial entender não apenas a prevalência do uso, mas também os motivos que levam os jovens a adotarem esses produtos”, diz Godoy. “Precisamos atuar preventivamente, educando e conscientizando para evitar que esse consumo se torne um problema crônico de saúde pública.”
Além de mapear o consumo, a iniciativa busca envolver os jovens em atividades educativas. Um grupo de 34 estudantes bolsistas foi mobilizado para criar materiais informativos, realizar experimentos científicos e liderar campanhas de conscientização. Entre as atividades desenvolvidas, destacam-se a criação de maquetes que ilustram os danos causados pelo uso do vape nos pulmões, a elaboração de vídeos e folhetos que abordam os riscos associados ao tabagismo e ao impacto ambiental gerado pelos resíduos de cigarros. Um dos pontos destacados por Godoy é o descarte inadequado de bitucas de cigarro, que representam uma forma de microplástico prejudicial ao meio ambiente.
Do estudo à ação: próximos passos
Com os dados preliminares em mãos, a médica está trabalhando na análise detalhada dos resultados para a publicação de um artigo científico que discutirá as implicações desse hábito para a saúde pública. Além disso, novos questionários estão sendo preparados para ampliar a coleta de dados, incluindo a análise do impacto do tabagismo passivo entre alunos e seus familiares.
Outro aspecto importante do projeto é a criação de campanhas que falem diretamente com o público jovem. “A proibição é importante, porém como medida isolada não vai funcionar”, diz a pesquisadora. Ela defende a importância de discutir o tema de forma acolhedora e colaborativa. A abordagem adotada pelo programa tem como base a escuta ativa, permitindo que os alunos contribuam com sugestões e participem do planejamento das campanhas.
“Os jovens precisam dessas informações de forma acessível e bem disseminada. Trabalhar junto com eles é fundamental para que se sintam parte do processo e não apenas como receptores de uma mensagem”, ressaltou a pesquisadora. Essa estratégia colaborativa já gerou resultados promissores e, segundo Godoy, tem potencial para transformar a percepção e o comportamento dos jovens em relação ao tabagismo.
A Unesp pretende levar a iniciativa além dos muros da universidade, utilizando o projeto como um modelo replicável em outras instituições e comunidades. A expectativa é que as campanhas de conscientização, somadas às ações educativas e científicas, contribuam para frear a tendência de aumento no consumo de nicotina entre os jovens.
Entretanto, os desafios permanecem. A dificuldade de fiscalização e a crescente pressão para a regulamentação do mercado de cigarros eletrônicos no Brasil são questões que preocupam os especialistas. Para Godoy, o debate precisa ser ampliado, com foco em saúde pública e não em arrecadação de impostos. “O governo arrecada bilhões com impostos do tabaco, mas gasta dez vezes mais no tratamento de doenças relacionadas ao consumo desses produtos. É um ciclo que precisa ser quebrado”, alertou.
Imagem acima: Deposit Photos.