Reforma do Novo Ensino Médio abre caminho para corrigir distorções, mas deixa pontos importantes em aberto

Lei promulgada em agosto quer dar fim a sete anos de discussões quanto ao melhor formato para último ciclo da educação básica. Especialistas e pesquisadores consultados pelo Jornal da Unesp elogiam redefinição dos itinerários formativos e retorno a antiga carga horária de disciplinas, mas identificam brechas no texto que podem gerar problemas de regulação.

Desde 2017, o Brasil debate o melhor caminho a seguir para tornar o ensino médio mais interessante e eficaz, a fim de superar as péssimas marcas registradas há décadas pelos nossos estudantes nas avaliações internacionais de qualidade da educação. Um passo importante neste sentido ocorreu em primeiro de agosto, quando o presidente Lula sancionou a Lei 14.945/24, que estabelece alterações no chamado Novo Ensino Médio (NEM) a serem implementadas a partir do ano 2025.

A nova peça legislativa traz o resultado de debates travados no Congresso Federal desde 2023, que incluíram diversas audiências públicas e até um processo formal de consulta pública, onde todos os brasileiros puderam opinar. Como resultado, o novo projeto é a resultante da disputa entre visões conflitantes de Estado e de educação, que mobilizou educadores, gestores, políticos e empresários.

Especialistas em políticas educacionais ouvidos pelo Jornal da Unesp analisam os pontos mais interessantes da nova legislação, e explicam os problemas anteriores que ela busca solucionar.

Desempenho do Ensino Médio ensejou reforma

O Ensino Médio no Brasil apresenta alguns dos piores números quando comparado a outras etapas da educação básica. Dados do IBGE de 2019 mostraram que 11,8% dos jovens entre 15 e 17 anos — cerca de 1,1 milhão — estavam fora da escola. Além disso, dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) divulgados há duas semanas mostraram que, mais uma vez, o ensino médio não alcançou as metas de pontuação estabelecidas quando este ciclo de avaliações teve início, em 2007.

Em resposta aos dados ruins que se acumulam nas últimas décadas, em 2017 o governo do então presidente Michel Temer promulgou a lei 13.415/2017, que determinava uma reestruturação do último nível da educação básica e estabelecia o modelo do que ficou conhecido como Novo Ensino Médio, ainda que tais alterações só entrassem efetivamente em vigência em 2022.

A legislação estipulou um novo arranjo para a carga horária das disciplinas tradicionais, como matemática, português, biologia ou geografia. Isso abriu espaço para a implementação de uma inovação denominada itinerários formativos. Os itinerários formativos são compostos por um conjunto de disciplinas flexíveis cuja proposta é proporcionarem aprofundamento nos conteúdos das quatro áreas do conhecimento: Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Matemática e Linguagens.

O argumento para o rearranjo era que a oferta das novas disciplinas ofereceria oportunidade de escolha ao aluno para guiar sua própria formação. Isso tornaria essa etapa da educação mais atraente para o jovem, aumentando sua motivação e assim abrindo espaço para uma melhora nas avaliações e indicadores do ensino médio.

Problemas concretos em sala

O fato de que as diretrizes do NEM foram estabelecidas e aprovadas sem que houvesse um debate mais amplo, num processo que contou com pouca participação das organizações de especialistas em educação e dos docentes, já garantiu que a nova medida fosse recebida com uma saraivada de críticas. Em especial, a redução da carga horária das disciplinas tradicionais foi muito atacada. E quando, em 2022, as novas diretrizes do NEM efetivamente chegaram às escolas, os motivos para críticas ganharam ainda mais intensidade.

Em especial, a ausência de uma definição mais clara, no texto da lei, sobre o conteúdo desses itinerários formativos levou à criação de disciplinas dispersas, e que, segundo relatos de educadores e alunos, em alguns casos pouco acrescentavam à formação do estudante.

Além disso, reforçaram os críticos, a falta de um contorno mais claro sobre o modo como os itinerários deveriam aprofundar o conteúdo apresentado pelas respectivas áreas do conhecimento poderia resultar numa intensificação das desigualdades entre os sistemas público e privado de ensino, uma vez que escolas particulares teriam condições de oferecer itinerários mais elaborados e adequados à formação do aluno.

A insatisfação levou o atual governo federal a apresentar, em outubro de 2023, um projeto de reforma para o Novo Ensino Médio que, após meses de debates e trâmites nas duas casas do Congresso Federal, foi sancionado pelo presidente Lula e a expectativa é que as mudanças entrem em vigor a partir de 2025.

O novo texto restabeleceu o montante de 2.400 horas anuais para as disciplinas obrigatórias (chamadas de componentes curriculares), de um total de 3.000 horas que as escolas devem necessariamente ofertar. Contudo, os próximos passos da reforma vão exigir um alinhamento entre entes federais e estaduais para definir, de forma clara, pontos importantes da proposta, tais como o conteúdo dos itinerários formativos que irão responder pelas 600 horas restantes da carga horária dos estudantes.

Nova lei trouxe um norte

Docente do departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis, Iraíde Marques de Freitas Barreiro destaca dois pontos positivos na nova legislação: o rearranjo da carga horária e o estabelecimento de temas mais restritos dos itinerários formativos. Estes últimos agora devem ser complementares à formação geral básica nas quatro áreas: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Uma vez que o texto anterior, de 2017, não exigia que houvesse essa relação entre os conteúdos extracurriculares e as disciplinas tradicionais, o resultado foi a criação de disciplinas optativas desconectadas do conteúdo escolar.  O novo texto também estabeleceu que cada escola deve oferecer ao menos dois itinerários formativos, o que não estava presente na proposta anterior.

“Um ponto positivo da nova lei é que ela preservou os princípios da reforma anterior, articulando uma formação geral básica em conjunto com esses itinerários optativos A diferença é que agora existe um norte a ser seguido”, diz a professora, que é livre-docente em Políticas Educacionais, que foi membro-titular do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e também atua como dirigente de ensino junto aos três colégios técnicos associados à Unesp.

“Quando a proposta fica muito solta, surgem propostas mirabolantes e cria-se uma falsa ideia da autonomia da escolha. Como se o mais importante fosse a escolha, e não o conhecimento que é assegurado dentro daquela escolha”, avalia. Ela diz que os alunos aprovaram o formato menos engessado do currículo e a autonomia na escolha da sua formação, e cita uma pesquisa divulgada pelo Datafolha indicando que 65% dos estudantes aprovam a flexibilidade na escolha das disciplinas do ensino médio.

Já no caso específico do ensino técnico, o novo texto estipula a reserva de 2.100 horas para os componentes curriculares, sendo que 300 horas poderão ser destinadas a conteúdos presentes na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) que estejam diretamente relacionados à formação técnica profissional oferecida. A carga horária máxima destinada ao curso técnico escolhido será de 1.200 horas. A BNCC é o documento que orienta a organização curricular e define o conjunto de aprendizados essenciais comuns a todos os alunos brasileiros ao longo da educação básica.

Diretor do Centro de Inovação e Conhecimento para a Excelência em Políticas Públicas (Ciepp), o pedagogo Jhonatan Almada também considera como positiva a vinculação dos itinerários formativos às áreas do conhecimento. Atualmente, Almada cursa o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp no campus de Marília.  “É positivo vincular essa diversificação  com a formação básica, porque é onde vai residir a criatividade de cada sistema educacional”, diz.

Contudo,  a etapa de reelaboração dos currículos escolares irá acontecer um segundo momento. De acordo com a nova proposta, o Conselho Nacional de Educação deve trabalhar junto com os sistemas estaduais e distrital de ensino para definir de forma clara as diretrizes para os itinerários. “A diretriz de aprofundamento para os itinerários formativos é uma forma de controlar a pulverização de componentes curriculares que a reforma de 2017 havia gerado”, diz Almada. Esse processo deve ser concluído antes do início do ano letivo de 2025, mas é preciso considerar que as escolas também precisam de tempo para adaptar os currículos e preparar os professores, entre outras adequações.

Estados falharam em implementar a reforma

Almada chama atenção para a importância de que aquilo que está estipulado pela nova lei, para as etapas seguintes de implementação, das reformas seja cumprido adequadamente. Nestas etapas, será fundamental uma colaboração adequada entre entes federais e estaduais. Na aplicação da proposta original do Novo Ensino Médio, este diálogo foi um grande fracasso. Em 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou o relatório de uma auditoria que avaliou as ações governamentais desenvolvidas pela União e secretarias estaduais em que são apontadas diversas falhas no apoio à implementação da proposta.

“Os estados e o próprio MEC falharam em organizar várias comissões que deveriam avaliar e monitorar a implantação da reforma. E, quanto às comissões que existiam de um ponto de vista formal, não há evidências de que estivessem realmente atuando”, aponta o pesquisador. “Precisamos ter a clareza de que nenhuma reforma educacional irá se materializar no Brasil sem um trabalho consistente, perseverante e dedicado de coordenação, monitoramento e avaliação da sua aplicação.”

Para o pesquisador do campus de Marília, outros dois pontos da reforma poderiam ser mais bem delineados. Um deles é o trecho do texto que autoriza, em caráter excepcional, o uso do ensino mediado por tecnologia. Tal redação abriria uma brecha para que este uso escapasse da obrigação de obedecer às regulações e caracterizações atreladas ao ensino a distância (EaD). “Da forma como foi colocado, pode-se abrir mão de cumprir com elementos importantes que caracterizam o EaD, como a presença de tutores e de professores instrutores, o ensalamento de turma e outras exigências. O risco é que a excepcionalidade se torne regra”, afirma.

Em outra brecha, argumenta Almada, o texto da reforma afirma que, para cumprir as exigências curriculares para o ensino médio em regime de tempo integral, as escolas podem, em casos excepcionais, reconhecer aprendizagens, competências e habilidades desenvolvidas pelos estudantes em experiências extraescolares. Isso inclui estágios, programas de aprendizagem profissional, trabalho remunerado ou trabalho voluntário supervisionado. “Tudo isso precisa ser muito bem regulamentado no momento da implementação, sob risco de abrir uma janela para a formação precarizada, e para a introdução precoce ao mundo do trabalho”, diz.

Processo desgastante pode ter afetado alunos

Desde a elaboração da primeira proposta, em 2017, até a sanção desta mais recente legislação, passaram-se sete anos, três presidentes da República e sete ministros da Educação. Iraíde aponta a demora e o desgaste que tem caracterizado a discussão sobre o NEM, e lamenta que tantas idas e vindas tenham prejudicado a formação de muitos jovens.

“Nessa etapa, o aluno ainda está buscando um norte de estudo e de vida para se firmar. Acredito que todo esse processo pode ter dificultado a tomada dessa decisão, uma vez que, durante um bom tempo, ninguém sabia bem o que ia acontecer com a reforma. Essas instabilidades certamente se refletem na qualidade da educação”, diz.

Imagem acima: Alunos da Escola Sesc de Ensino Médio durante aula na zona oeste do Rio. Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil