Filipe Catto: voz transgressora e plural que canta aquilo em que acredita

Artista construiu uma carreira bem-sucedida, que inclui shows em grandes festivais, apresentações fora do Brasil e músicas em trilhas de novelas, sem abrir mão do compromisso com os próprios valores estéticos e a garra de quem se formou na cena de música independente.

Saudada como um dos talentos artísticos de sua geração, a cantora, compositora, instrumentista, produtora musical, designer e diretora audiovisual Filipe Catto vem construindo uma trajetória no panorama contemporâneo da música popular brasileira marcada pela autenticidade e a transgressão. Aos 36 anos, com cerca de uma década e meia de carreira solo, a gaúcha radicada em São Paulo já lançou sete registros em estúdio, acumulou prêmios importantes e colaborou com um grande leque de artistas renomados.

“Sempre fui uma outsider. Sempre me senti uma pessoa que, mesmo participando de muitas coisas, com muitos amigos dentro do ciclo, é muito fiel às minhas próprias loucuras e referências. Por isso mesmo, consegui me encaixar em vários lugares. Me dou super bem com a velha guarda, com as novas gerações, gosto da galera do rock, samba, funk… Não tenho preconceito”, diz.

Ao mesmo tempo, sua busca como artista sempre esteve ligada a suas visões e questões pessoais. “A minha trajetória é muito marcada por um comprometimento com o meu próprio trabalho, por fazer melhor as coisas. Isso sempre me guiou. Sempre fez com que eu andasse no meu ritmo, fazendo as coisas do meu jeito e sem concessões. Nem sempre foi assim. Quando a gente é mais jovem, acaba caindo em esquema de pirâmide como qualquer uma “, avalia.

Filipe Catto Alves, que identifica-se como uma pessoa não binária, nasceu  na cidade do Lajeado, no Rio Grande do Sul, em 26 de setembro de 1987, numa família de músicos. Cresceu na capital gaúcha e, ainda criança, cantava em bailes e festas com o pai. Desde suas primeiras experiências no palco, acostumou-se a ter diante de si plateias numerosas. Na adolescência, integrou grupos e bandas de diferentes estilos, mas sempre com uma pegada mais próxima ao rock. Por volta de 2006 começou a investir mais em seu trabalho solo, apresentando-se em bares e divulgando sua produção pela internet. Em 2008 montou com o diretor João Pedro Madureira o show “Ouro e Pétala”, composto de voz, violão, e passou a apresenta-lo em teatros.

Em 2009, Catto iniciou sua discografia com o excelente EP Saga. O trabalho foi disponibilizado para download gratuito e logo viralizou. No rastro, veio o primeiro convite para uma apresentação em São Paulo, no projeto Prata da Casa do Sesc Pompeia. Logo depois, a faixa-título da obra foi escolhida para a trilha sonora da novela Cordel Encantado, da Rede Globo, projetando seu nome nacionalmente. Posteriormente, outras produções da Globo, como Sangue Bom, Saramandaia e Joia Rara, trariam composições suas.

“Fui morar em Nova Iorque, comecei a escrever essas músicas e juntei uma grana lá, trabalhando como garçonete. Quando eu voltei para Porto Alegre, em 2008, queria gravar alguma coisa. As pessoas estavam me cobrando. Queria dar esse passo e começar o meu trabalho, de alguma forma”, relembra. À época, cursava a faculdade e passava muitas horas por dia navegando na internet. E, acima de tudo, já tinha bastante clareza quanto a necessidade de uma nova postura dos artistas independentes nesta era digital, em que entre as exigências da carreira estão fazer os próprios clipes, pintar pôsteres etc.

“Quando fui gravar, conheci o Sérgio, que é o produtor do disco. Ele tinha trabalhado com algumas bandas de rock e tinha esse olhar roqueiro. Com experimentações e nuances de audiovisual,  a gente começou a trabalhar nesse rolê. Um disco que tinha essa coisa muito pungente da MPB. A história de um amor proibido, mortífero e completamente exasperado, que tinha acontecido de fato”, conta.

Uma vez gravado, o álbum começou a rodar gratuitamente pela internet e chamou a atenção das pessoas certas. “Rolou no momento certo. A MPB estava chata naquele momento, não falava a linguagem das novas gerações. E havia uma leva de artistas ótimos trabalhando suas obras. Gente como Cordel de Fogo Encantado, Tulipa Ruiz, Tiê, Otto, Mombojó. Todo mundo vindo com ideias novas, sonoridades diferentes e utilizando a Internet como meio de divulgação”, diz.

Em 2011 saiu Fôlego, seu primeiro álbum de estúdio, cuja faixa Redoma levou o prêmio de Melhor Canção na 52º edição do Festival Internacional de Cinema de Gramado. Em 2013, gravou o CD e DVD ao vivo Entre Cabelos, Olhos e Furacões, no Auditório Ibirapuera. Depois, vieram os álbuns Tomada 2015 e CATTO, em 2017. Com direito a duas apresentações que serviram como duas pré-estreias em Portugal, e três shows esgotados no Sesc Vila Mariana, CATTO foi um divisor de águas em sua carreira e vida pessoal. Na turnê de lançamento, passou por vários estados do Brasil e por países da América Latina e da Europa, além dos Estados Unidos. Essa fase ficou registrada no álbum ao vivo O Nascimento de Vênus Tour, que celebra o sucesso do disco anterior, e marcou sua afirmação de gênero.

Entre 2020 e 2022, Catto realizou diversos projetos especiais. Entre eles a web série “Love Catto Live” e o audiovisual “Metamorfoses” (em parceria com o Instituto Moreira Salles de São Paulo). Também estreou, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, o documentário musical “O Nascimento de Vênus Tour”.

Belezas são coisas acesas por dentro

Enquanto prepara seu próximo álbum de inéditas, Catto segue promovendo seu disco mais recente, Belezas São Coisas Acesas por Dentro, onde reinterpreta canções de Gal Costa O álbum traz 10 faixas compostas por talentos como Antônio Cícero, Arthur Nogueira, Bob Dylan, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Jorge Mautner e Stevie Wonder.

A obra ocupou o topo da lista de álbuns mais vendidos no iTunes Brasil nas primeiras 24 horas após o lançamento, foi eleito destaque musical de 2023 no Prêmio Arcanjo de Cultura, e teve a faixa Negro Amor figurando por nove semanas consecutivas no Top 10 MPB da Crowley Charts, o ranking oficial que mede as músicas mais executadas nas rádios do país.

O show do novo álbum já passou por diversas unidades do Sesc em São Paulo da capital e do interior e por templos paulistanos da boa música como a Casa Natura Musical e o Blue Note São Paulo. Também foi destaque do festival Primavera Sound São Paulo, aparecendo nas listas de melhores apresentações da edição para veículos como O Globo e O Estado de São Paulo.

No palco, Catto, que coassina a produção musical, e o power trio formado por Fábio Pinczowski (guitarra e direção musical), Gabriel Mayall (baixo) e Michelle Abu (bateria) extrapolam o universo das faixas do álbum para promover uma celebração do repertório de Gal sem cair em clichês.

“Na verdade, esse show aconteceu por um convite do Sesc Bom Retiro, para fazer um show em homenagem a Gal Costa. Eu já estava gravando meu disco de inéditas, estava no meu mundinho. Aí o pessoal disse:  ‘por que você não regrava canções da Gal?’ Eu, cantar Gal? Vocês estão loucos. Mas, daí, pensei: ela é uma artista que está dentro do meu DNA como cantora, parte do que eu busco como estética. Além disso, Gal, Bethânia, Elis Regina e algumas outras cantoras de rádio sempre foram icônicas e fundamentais na minha formação. Refleti que a Gal está dentro de mim, é uma referência sagrada, e aceitei como desafio”, diz.

Uma artista independente e autoral

A lista de grandes artistas com quem já dividiu palcos em sua vitoriosa carreira é extensa, e inclui ícones como Ana Carolina, Arnaldo Antunes, Daniela Mercury, Elza Soares, Maria Bethânia, Marina Lima, Nando Reis, Ney Matogrosso, Toquinho e Zélia Duncan. Mas, mesmo circulando entre companhias tão estelares, ainda vive e luta como um artista independente.


“Sinto que a minha identidade, as minhas buscas interiores, as coisas que eu estava vivenciando dentro de mim, as minhas inquietudes, sempre foram o que eu levei para o palco e para os meus discos.  Às vezes, tinha uma ideia na cabeça que não conseguia executar, porque não tinha recursos técnicos. Acho que o meu processo também foi isso: encontrar a minha turma e aprender a manipular as coisas, e fazer as coisas acontecerem”, analisa. Nessa busca pelos recursos para concretizar as próprias ideias, desenvolveu-se como instrumentista, mas também na área de produção musical e até na de edição de vídeo.

“Ser uma artista independente é uma luta cotidiana. Não gera grana, temos que correr atrás de tudo: improvisar nas gravações, nos clipes, produções… Mas faço meu trabalho autoral. Essa é uma atitude corajosa,  da qual tenho muito orgulho”, diz.


Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.