Estima-se que, hoje, quase 600 mil brasileiros adultos e cerca de 34 mil crianças necessitem receber cuidados paliativos. No entanto, a oferta destes serviços no Brasil ainda é bastante insuficiente. A recomendação da Associação Europeia de Cuidados Paliativos é que sejam oferecidos dois serviços especializados a cada grupo de 100.000 habitantes. No Brasil, a oferta é de um serviço para cada 1,6 milhão de pessoas na rede pública, e um serviço para cada 1,4 milhão na rede privada. Para mudar esse quadro, e atendendo a um pleito sustentado há décadas por parte da comunidade médica e da sociedade, o Ministério da Saúde instituiu em maio a Política Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP), por meio de uma portaria do órgão.
O presidente da Associação Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), Rodrigo Castilho, diz que a classe lutava pela criação da PNCP desde que a entidade foi criada, há 19 anos. E a iniciativa suscitou grandes expectativas entre os profissionais médicos do setor. “Pessoas que antes eram abandonadas porque não se sabia o que fazer diante de doenças incuráveis, ou que sofriam por conta de doenças com potencial curativo, mas sem contarem com o mínimo necessário para diminuir esse sofrimento, agora têm a perspectiva de serem assistidas junto com suas famílias”, diz.
Os cuidados paliativos constituem um conjunto de práticas de assistência que têm como principal objetivo melhorar a qualidade de vida das pessoas que sofrem com doenças incuráveis, em estado avançado ou mesmo terminal, e focam principalmente o controle dos sintomas causados pela patologia – que, em alguns casos, podem permanecer por anos. Dentre os pacientes que costumam demandar este tipo de assistência estão aqueles acometidos por cânceres, demência, insuficiência cardíaca, doenças pulmonares, sequelas de AVC e outras enfermidades crônicas que causam sofrimento constante e dor. O sofrimento, aliás, para além dos danos físicos, também possui um caráter emocional, social e até mesmo espiritual. Por isso, as equipes de cuidados paliativos possuem um perfil multiprofissional, e podem incluir, além de médicos e enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas e até capelães.
Exemplos de cuidados paliativos
Um paciente com câncer de pulmão, por exemplo, sofre de falta de ar, a chamada dispneia, e eventualmente de astenia, que é a falta de disposição e de dor física. Para atender estes sintomas são adotadas condutas medicamentosas e não medicamentosas, e cabe às equipes de cuidados paliativos orientar o paciente e seus familiares sobre as medidas não medicamentosas que podem beneficiar o seu estado.
Tais medidas incluem, por exemplo, evitar aglomerações, garantir a ventilação e buscar uma posição no leito mais próxima à sentada, para que ele melhore a sua eficácia ventilatória. Nestes casos, procura-se evitar ao máximo que o paciente se torne dependente de oxigenoterapia, um recurso que, embora reduza a percepção da falta de ar, prende a pessoa a tubos e a cilindros de oxigênio, prejudicando sua mobilidade e sua qualidade de vida.
Para esse tipo de paciente, os médicos podem recorrer à terapia medicamentosa e lançar mão dos analgésicos opioides, em que a morfina é a melhor representante. Estes medicamentos irão diminuir a percepção subjetiva do indivíduo de falta de ar. Se o paciente está acamado, um enfermeiro é a pessoa mais habilitada para prevenir e tratar lesões na pele decorrentes da pressão do corpo sobre os tecidos da cama.
Sabendo-se que a evolução natural dessa doença culmina com a dispneia intensa e a morte, a equipe de cuidados paliativos deve discutir com o paciente o planejamento avançado de cuidados: se vai ficar em casa ou vai para um hospital, e quais os procedimentos a serem adotados em cada cenário.
E também faz parte dos cuidados paliativos o atendimento à família do doente e suas demandas. A demanda mais comum é o fornecimento de orientações sobre como cuidar do paciente, desde a escolha da roupa de cama a ser usada, as posições no leito mais confortáveis e que podem evitar úlceras, e a hidratação da pele. Cabe também às equipes de cuidados paliativos encaminhar os familiares para o apoio psicoterápico ou religioso, sempre que solicitarem.
Política veio por demanda popular
Edison Iglesias de Oliveira Vidal, médico e professor associado na disciplina de geriatria, do departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, comenta que a política incorpora princípios aceitos internacionalmente, como a abordagem abrangente dos cuidados proporcionados, incluindo atendimento às dimensões física, psicológica, psicoemocional, social e espiritual.
“A iniciativa estabelece a responsabilidade compartilhada de todos os níveis de atenção à saúde, com ênfase na atenção primária”, diz Vidal. “E estabelece uma equipe mínima de cuidados paliativos – médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos – e a necessidade de integração dos serviços de atendimento, incluindo o serviço de urgência.” A portaria determina, por exemplo, que o SAMU esteja preparado para atender em domicílio pessoas que tiveram o agravamento de seus sintomas, e que os seus médicos, quando necessário, possam atestar o óbito. “Isso costuma ser uma dificuldade para a população em todo o país”, diz ele.
Vidal lembra que uma oferta mais ampla de cuidados paliativos já era objeto de reivindicação por parte de conferências de saúde. Estes fóruns colocam em diálogo o poder público e a sociedade civil com o objetivo de desenho de políticas públicas, porém haviam sido extintos no governo anterior. Com sua retomada, a partir de 2023, as conferências municipais e estaduais serviram de arena para o fortalecimento de um movimento grande, unindo a população e os profissionais, chamando a atenção para a necessidade de ampliar a atual rede de atendimento. A demanda foi por fim abraçada pela 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho de 2023. Outro exemplo desta construção de uma política a partir da base é o fato de que a PNCP foi pactuada entre o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Baixa qualidade de morte
De acordo com o último dado do Atlas de Cuidados Paliativos da ANCP, publicado em 2022, o país contabilizava apenas 234 serviços assistenciais, dos quais 52,6% eram oferecidos para atendimento público via Sistema Único de Saúde (SUS). Como cerca de 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS, teríamos um serviço para cada 1,6 milhão de habitantes na rede pública. Um número bem aquém do preconizado pela Associação Europeia de Cuidados Paliativos (EAPC), que recomenda pelo menos dois serviços especializados a cada 100 mil habitantes – uma equipe de assistência domiciliar e outra equipe hospitalar. Ou seja, nosso ponto de partida para construir esse serviço em âmbito nacional é bem precário.
“O Brasil ocupa o penúltimo lugar em qualidade de morte num ranking que envolve 81 países”, comenta Rodrigo Castilho citando relatório internacional publicado em abril de 2022 no Journal of Pain and Symptom Management, da Academia Americana de Medicina Paliativa. Nessa avaliação são considerados políticas públicas existentes, qualificação de equipes, educação da população a respeito dos cuidados paliativos, acesso à medicação e outros fatores.
No evento de lançamento da política, em 24 de maio passado, o secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Adriano Massuda, também se referiu ao baixo índice de qualidade de morte no Brasil, que atribui ao atendimento fragmentado, à escassez de profissionais com formação paliativa, barreiras culturais, com pessoas morrendo em UTIs longe da família e sem respeito aos seus desejos.
A nova política
A PNCP abre a perspectiva de uma grande mudança neste quadro, ao estabelecer o papel do governo federal, dos estados e dos municípios na promoção do atendimento. Também apresenta uma proposta inicial de organização, com base na formação de equipes matriciais e assistenciais. As equipes matriciais, responsáveis pela implantação e coordenação do serviço, seriam formadas na proporção de uma para cada 500 mil habitantes no âmbito estadual ou macrorregional. Para as equipes de atendimento nos municípios e distritos de saúde, a proporção seria de uma para cada 400 leitos do SUS. A expectativa é criar 485 equipes matriciais e 836 assistenciais, totalizando 1.321 equipes implantadas gradualmente em todo o país. O orçamento total disponível será de R$ 887 milhões.
As equipes matriciais formadas por médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social receberão R$ 65.000,00 mensais. Se incluírem um médico pediatra o pagamento passa para R$ 78.000,00 mensais. As equipes assistenciais contarão com médico clínico, enfermeiro, técnico em enfermagem, psicólogo e assistente social receberão R$ 44.200,00 mensais. Os recursos são federais, administrados por estados e municípios.
Na Amazônia, região em que a densidade populacional é menor, assim como também a disponibilidade de profissionais médicos, a política irá fomentar a oferta de cuidados ao ofertar às equipes valores mais altos de remuneração, em comparação aos grandes centros urbanos. A nova proposta aponta também a necessidade de respeito às populações mais vulneráveis ou marginalizadas e à diversidade, e reconhece a população LGBTQIA+.
Embora reconheça o valor da iniciativa, Vidal avalia que as equipes poderiam ser maiores. “Seria importante incluir fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e nutricionistas. A política não exclui essa possibilidade, mas a condiciona à disponibilidade de profissionais e não define recursos, ficando a cargo dos gestores estaduais e municipais colocar mais gente na equipe.”
Para implantar a política, os municípios e os estados precisam começar a montar suas equipes, abrir editais para contratar os profissionais de saúde necessários e preencher os requisitos do Ministério da Saúde para solicitar o financiamento. Vidal diz que, na maioria dos casos, não será necessário construir prédios novos ou comprar equipamentos caros. “Existe a expectativa de que as equipes matriciais comecem a funcionar até o final do ano na maioria dos estados”, diz Castilho.
Universidades precisam apoiar
Para a implantação da PNCP e sua sustentação é indispensável assegurar a oferta de formação em cuidados paliativos em diferentes áreas do conhecimento, incluindo medicina, enfermagem, fisioterapia, psicologia, nutrição e assistência social. Isso vai exigir a ampliação da grade dos cursos já existentes, a criação de novos cursos de graduação e pós-graduação, e também a oferta de educação continuada profissionais de saúde que já estão na ativa, suplementada pela difusão de informações para a população. A universidade também é uma grande prestadora de serviço desses cuidados por meio de seus hospitais-escolas e ambulatórios.
A Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, é uma das pioneiras na oferta dessa especialidade, mas exemplos semelhantes ainda são algo raros. Na verdade, as diretrizes nacionais curriculares para o curso de medicina só incorporaram os cuidados paliativos como disciplina obrigatória a partir do final de 2022. A ANCP está fazendo um levantamento gigantesco, em todas as faculdades de enfermagem e medicina do país, sobre o ensino do tema, e os resultados iniciais não são animadores. “Vivemos numa cultura em que os cuidados paliativos não são ensinados na imensa maioria das universidades”, diz Castilho, presidente da ANCP.
Cuidados paliativos na Unesp
A Unesp foi pioneira em reconhecer a importância dos cuidados paliativos e a desenvolver o ensino, a pesquisa e o serviço de atendimento nessa especialidade. A iniciativa partiu do docente Lino Lemonica, médico anestesiologista especialista em dor. Em 1993, ele criou o Serviço de Terapia Antálgica e os Cuidados Paliativos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, em Botucatu. No ano seguinte, foi implantada a residência médica em Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos.
“Lino Lemonica foi buscar sua especialização num pós-doutorado na Itália. Seu campo de interesse inicialmente era o estudo da dor, mas logo ele entendeu que não poderia separar dor de cuidados paliativos”, diz Guilherme Moreira de Barros, professor associado da Unesp e chefe do serviço de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos do HC de Botucatu. “Na época não se falava em medicina paliativa. Os médicos aqui, no Brasil, de forma geral desconheciam esta área. Até hoje, para muitos deles, o conceito de cuidados paliativos permanece um tanto obscuro, como se fosse sinônimo de não fazer nada”, diz.
Quando Lino Lemonica voltou da Europa para Botucatu, criou o serviço de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos no Hospital das Clínicas, com atendimento ambulatorial e domiciliar. Na maioria, os pacientes eram oncológicos, geralmente no final da vida.
Em função do quadro de recursos escassos, não se esperava à época que o HC disponibilizasse profissionais para um tipo de atendimento que os médicos ignoravam. O serviço domiciliar era feito praticamente por voluntários. Os fisioterapeutas, assistentes sociais e nutricionistas eram funcionários da Unesp lotados no HC e que negociavam algumas horas do seu tempo de serviço para se dedicarem à dor e participar das visitas domiciliares. Apenas o médico e a enfermeira da equipe eram docentes e somente o médico tinha alguma formação na especialidade.
A disciplina de cuidados paliativos na graduação foi criada em 1994, no Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina. No mesmo ano, foi instituída a residência em dor e foram aprovados os cursos de pós-graduação em anestesiologia para mestrado e doutorado, com duas disciplinas de terapia antálgica e cuidados paliativos: fisiopatologia e tratamento da dor aguda e fisiopatologia e tratamento da dor crônica.
Guilherme Moreira de Barros integrou a segunda turma de residência em dor, no ano de 1995. Ele comenta que a atuação do anestesiologista é intimamente ligada ao controle e tratamento da dor. “Por isso, um especialista em anestesia é um candidato natural a se tornar um especialista em dor. Ele já domina a farmacologia dos analgésicos mais importantes em cuidados paliativos, que são os opioides”, diz.
O serviço de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos funciona até hoje dentro do HC, embora a instituição tenha deixado de pertencer à Unesp e se tornado uma autarquia ligada à Secretaria da Saúde. A equipe conta com profissionais ligados à universidade e também com profissionais contratados pela autarquia e sem vínculos com a Unesp.
O serviço de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos funciona também como espaço para as aulas práticas dos alunos de graduação em cuidados paliativos e dor, e mantém quatro vagas para residência em dor, além de viabilizar a realização de pesquisas na área. Seus profissionais realizam o acompanhamento de pacientes internados nas diversas enfermarias do HC que apresentem dores agudas relacionadas a cirurgias e traumas, e também daqueles acometidos de dores crônicas, de difícil controle. Para pacientes acamados ou com grande dificuldade de deslocamento, em especial aqueles em cuidados paliativos, são oferecidas visitas domiciliares. Mais recentemente, em 2017, o HC criou um outro serviço de cuidados paliativos independente da Faculdade de Medicina da Unesp, com equipe não vinculada à universidade. Em 2019, em parceria com o Rotary Internacional, O HC inaugurou uma Enfermaria de Cuidados Paliativos.
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