Laboratório de Biologia e Genética de peixes em Botucatu já identificou mais de 100 novas espécies

Líder do laboratório, o biólogo Cláudio de Oliveira é vice-coordenador de novo INCT dedicado a pesquisar a ictiofauna brasileira, que compreende 25% de todas as espécies de peixe de água doce do planeta. Conhecimento da biodiversidade é passo para exploração sustentável desses recursos.

A grande quantidade de rios, lagos e aquíferos que o Brasil abriga em seu território é um dos motivos para que aqui vivam mais de seis mil diferentes espécies de peixes – ou o equivalente a, aproximadamente, 25% de todas as espécies de água doce do planeta. Trata-se, porém, de uma estimativa, e o fato concreto é que uma larga fatia de nossa ictiofauna ainda não foi descrita pelos estudiosos.

Para que se possa desenvolver políticas eficientes de preservação, é preciso conhecer a fundo esta rica biodiversidade, investigando desde suas características  anatômicas e fisiológicas até seu comportamento e genética. Conhecimento também é para que se possa desenvolver pacotes tecnológicos que permitam a exploração sustentável desse recurso, por exemplo, por projetos na área de piscicultura.

A fim de fomentar as pesquisas na área, foi criado em 2023 o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Biodiversidade e Uso Sustentável de Peixes Neotropicais, ou apenas INCT-Peixes. O INCT está sediado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e tem como vice-coordenador o biólogo Cláudio de Oliveira. Oliveira é docente no Instituto de Biociências da Unesp, em Botucatu, e dirige o Laboratório de Biologia e Genética de Peixes da Unesp.

Quase 50% das espécies desconhecidas

Estudo publicado em 2023 na revista Current Biology ressaltou os vazios consideráveis que ainda existem nas pesquisas ecológicas conduzidas na região da Amazônia. O artigo, fruto de um trabalho que reuniu pesquisadores de diversos países do mundo, colheu informações de mais de 7 mil locais em que foram realizadas pesquisas dessa natureza entre os anos de 2010 e 2020. Uma das principais conclusões do estudo é que parte deste “gap” de conhecimento se situa nas áreas limítrofes da Amazônia. É o caso do Matopiba, região situada a leste do bioma e que recebe este nome por abranger os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

No início deste ano, pesquisadores do Laboratório de Biologia e Genética de Peixes da Unesp estiveram no Maranhão, mais precisamente no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, em um projeto que pretende estimar o número de espécies que vivem nas lagoas de água doce que se espalham entre as dunas do parque, e mapear com maior precisão a distribuição geográfica desses animais.

Oliveira faz coro com os autores do artigo publicado no ano passado sobre o gap de conhecimento no bioma amazônico. “A gente vai toda hora para a Amazônia, e a cada visita retornamos com descobertas de novas espécies.  Acreditamos ter encontrado pelo menos cinco neste trabalho de campo nos Lençóis Maranhenses”, diz ele. Além do inventário de espécies, outro objetivo do projeto em desenvolvimento no Maranhão é entender melhor a origem dos peixes presentes nas lagoas de água doce, uma vez que a região, lembra o professor, é drenada tanto do rio Parnaíba, a oeste, quanto do rio Mearim, a leste. “Queremos comparar as faunas para entender de qual região exatamente vieram esses peixes. Ainda que os peixes pequenos que encontramos na água doce das lagoas se pareçam com os encontrados na Amazônia, essa é uma região que mistura três biomas diferentes”, diz.

Cláudio de Oliveira (esq) com sua equipe fazendo o registro fotográfico dos peixes coletados em viagem aos Lençóis Maranhenses (Arquivo pessoal)

Preencher esse gap de conhecimento foi a principal motivação para que os pesquisadores da UFSCar e da Unesp se reunissem para elaborar e submeter o projeto ao CNPq. “Os estudos mais otimistas afirmam que ainda falta conhecer 30% dos peixes do Brasil. Mas também existem trabalhos mostrando que conhecemos menos de 50% dessa ictiofauna. Não é pouca coisa”, ressalta Oliveira.

Assim que foi aprovada a proposta de criação do novo INCT, Oliveira se reuniu com Marcelo de Bello Cioffi , professor da UFSCar e que ocupa o cargo de coordenador. A primeira iniciativa da dupla foi instituir uma comissão responsável por avaliar propostas de subprojetos que fossem submetidas pelos demais integrantes do INCT, um grupo de cerca de 50 pesquisadores de diferentes instituições do Brasil e do exterior. Apesar da curta existência do INCT-Peixes, já há mais de uma dezena de pesquisas em andamento, com objetivos como o levantamento de ictiofauna, a avaliação do impacto ambiental da liberação de substâncias tóxicas e ações de divulgação científica, entre outras abordagens.

Entre os projetos mais ambiciosos do INCT está uma expedição científica integrada por estudiosos de diferentes instituições que começou a investigar a região do Parque Nacional do Juruena. O parque está localizado nos estados de Mato Grosso e Amazonas, em uma região de transição entre o Cerrado e florestas úmidas e secas. Porém, apesar de sua alta biodiversidade, do ponto de vista ictiológico, ele ainda permanece completamente inexplorado.

Mais de 100 espécies identificadas

Assim como a equipe de Oliveira, que atua nos Lençóis Maranhenses, os pesquisadores que integram a expedição no Parque Nacional do Juruena frequentemente relatam a identificação de novas espécimes depois que analisam o material coletado em campo em seus laboratórios. Esse é um assunto que o professor da Unesp conhece como poucos. Só nos últimos dois anos ele esteve envolvido na identificação de quatro espécies novas, e ao longo de seus 35 anos como pesquisador, já foram mais de 70. Os achados foram registrados nos mais diferentes ambientes, indo desde um bagre encontrado no volumoso rio Negro, pertencente à bacia Amazônica, a um cascudinho descoberto no pequeno ribeirão Água da Madalena, não muito distante do campus em que o docente trabalha, em Botucatu, ou uma espécie de peixe barbudo que habita águas marinhas profundas, capturada a cerca de seiscentos metros abaixo da superfície do mar, fora da plataforma continental brasileira. De acordo com o professor, se considerarmos os trabalhos publicados pelos demais colegas que atuam no laboratório – aproximadamente  40 pesquisadores, desde alunos de iniciação científica até pós-doutores – o número de novas espécies descritas já superou mais de uma centena.

Além de um olhar treinado para notar as diferenças morfológicas entre os animais, o pesquisador, assim como todo o campo da taxonomia, vem se beneficiando nos últimos anos do desenvolvimento, popularização e combinação de novas ferramentas em uso nos laboratórios. Geneticista, Oliveira há muitos anos se vale da tecnologia da área para analisar o material genético das espécies coletadas. Mas, se antes o trabalho se limitava à segmentos específicos do DNA, hoje alguns projetos já sequenciam todo o genoma do animal. “É preciso encontrar características que estejam presentes em uma espécie apenas, e em nenhuma outra, para poder diferenciá-las. Sequências de DNA são muito boas para este objetivo, porque cada espécie possui suas próprias sequências”, explica o professor.

Pesquisadores do Laboratório de Biologia e Genética de Peixes durante coleta de peixes no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (Arquivo pessoal)

Os dados genéticos e morfológicos dos animais capturados nas expedições  que se suspeita constituírem uma espécie a parte  são comparados com as informações sobre as demais espécies do mesmo gênero presentes em um acervo abrigado no laboratório que compreende mais de 500 mil exemplares de peixes e 100 mil tecidos dos animais, e também com outras coleções do Brasil e do exterior. “Quando fazemos a morfologia do animal hoje, não nos limitamos a tomar medidas e anotar suas principais características. Usamos tomografia computadorizada e várias outras técnicas que conseguem observar a cartilagem ou os músculos. Essas técnicas, quando combinadas com uma boa capacidade de processamento de imagem, produzem resultados interessantes” destaca o professor.

Para além dos recursos tecnológicos, Oliveira também destaca o impacto positivo que o aumento na quantidade de ictiólogos desenvolvendo projetos de pesquisa nas últimas décadas tem causado no campo. “Antes, éramos poucas pessoas trabalhando, e havia poucas técnicas disponíveis para análise. Portanto, nosso conhecimento era relativamente superficial. Para muitos grupos de animais, a gente não tinha uma definição razoável e descrever uma espécie era uma dificuldade muito grande. Com mais pesquisadores trabalhando, descobrimos muitas coisas. Isso ampliou o nosso conhecimento, e hoje construímos uma visão muito mais precisa do que são os grupos e de como eles estão distribuídos”, analisa.

Tais informações são importantes, por exemplo, na escolha das melhores espécies para uso em um sistema de produção de piscicultura. Um exemplo dessa aplicação está em andamento no Centro de Aquicultura da Unesp (Caunesp) que, entre outros projetos, vem se dedicando a melhorar e ampliar a produção de pacu, uma espécie nativa, em ambientes confinados, um tipo de produção que no Brasil utiliza predominantemente a tilápia.

Com ferramentas modernas disponíveis nos laboratórios e um contingente de cientistas treinados, o maior desafio para a pesquisa na área agora, na avaliação do docente, é a parte de estudo de campo. “Se existe algum gargalo para o estudo dos peixes brasileiros, é a parte de amostragem e do trabalho de campo. É um trabalho caro, em especial nas áreas remotas, que é onde está a maior parte das regiões não amostradas do Brasil.”

Imagem acima: Imagem de um pacu produzida por tomografia computadorizada, uma das ferramentas empregadas nos estudos de morfologia e taxonomia. Crédito: arquivo pessoal.