O relato bíblico sobre Jesus conta como ele foi denunciado por seu discípulo Judas Iscariotes às autoridades, que cobrou pelo serviço 30 moedas de prata. Quer tenha sido ou não uma figura histórica, Judas se inscreveu no imaginário ocidental como exemplo de figura indigna e ambiciosa, capaz de trair seus próprios companheiros pela perspectiva de alguma vantagem financeira. Mas, e se fosse possível conhecermos melhor a vida de Judas, antes e depois do episódio da traição, e sob uma perspectiva historiográfica? Será que poderíamos compreender de forma diferente não apenas este personagem, mas também a figura heroica por cuja morte ele continua a ser simbolicamente punido em cada Semana Santa? Questões semelhantes pontuam o trabalho da geração de historiadores brasileiros que recentemente têm se debruçado sobre o mais famoso episódio de traição em nossa cronologia: a morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, denunciado às autoridades portuguesas pelo seu amigo pessoal e companheiro na conjuração da Inconfidência Mineira, o coronel Joaquim Silvério dos Reis.
A relevância de Tiradentes para a nossa memória comum pode ser concebida pelo fato de que ele é o único vulto histórico homenageado com um feriado nacional. No entanto, as personalidades e trajetórias dos demais inconfidentes, que em pleno século 18, e sob inspiração dos ideais iluministas, conceberam um Brasil independente de Portugal, administrado pelos próprios nacionais, e com um governo republicano, têm sido relegadas pela academia a uma condição periférica. Há alguns anos, o historiador André Rodrigues, docente na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis, vem pesquisando esses fatos e personagens “esquecidos” da Inconfidência Mineira, buscando expandir o entendimento, não apenas sobre este episódio específico, mas também da dinâmica das relações pessoais, políticas e econômicas do período em que o ouro produzido no interior do Brasil enriquecia o império português.
O docente procura acessar fontes e documentos que não costumam figurar nas referências da maioria dos trabalhos sobre o período, que em geral tendem a se concentrar bastante em torno da Devassa, nome dado ao processo de investigação desfechado pelas autoridades portuguesas sobre a sociedade mineira após a denúncia da conspiração. Este trabalho já rendeu frutos como o livro Em busca de um rosto: a República e a representação de Tiradentes, e mais recentemente um artigo sobre a curiosa trajetória de dois inconfidentes condenados que, após serem expulsos do Brasil, retornaram ao país com discursos ideológicos alinhados aos interesses da metrópole que eles tanto combateram. Mas o célebre – ou talvez infame seja mais adequado? – Joaquim Silvério dos Reis tem recebido atenção especial por parte do historiador, que pretende dedicar a ele um livro biográfico.
Uma imagem inventada
Após a proclamação da República, em 1889, a figura de Tiradentes foi deliberadamente ressignificada pelas autoridades nacionais para se tornar um herói protorepublicano, e nesse processo ganhou uma aparência hirsuta, numa aproximação à imagem de Jesus Cristo, com direito a cabelos e barbas longos (que, hoje sabemos, ele nunca ostentou). Inevitavelmente, recaiu sobre Silvério a recorrente comparação com Judas Iscariotes, reforçada pelo relato de que teria delatado o amigo Tiradentes e seus correligionários às autoridades portuguesas em troca do perdão de suas imensas dívidas fiscais com o Império.
Para reconstruir os caminhos desse personagem, Rodrigues tem buscado cartas e documentos privados que estão nas mãos de descendentes daquelas figuras históricas, além de arquivos situados longe dos grandes centros urbanos e até mesmo a literatura e a memória de viajantes que passaram pelos locais em que Joaquim Silvério viveu, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Maranhão. “Não se conhece praticamente nada do Silvério que não seja assunto ligado à delação que fez contra os inconfidentes mineiros e que estão nos Autos da Devassa”, diz, em referência ao conjunto de documentos do processo judicial movido pela Coroa Portuguesa contra os inconfidentes e até hoje a principal fonte dos historiadores sobre o episódio. “Ainda existem muitos documentos manuscritos sobre essa época à espera dos pesquisadores”, diz.
De pobre a nobre pelo próprio esforço
Nascido em Portugal, de origem popular, Silvério teria chegado ao Brasil no início de 1776, atraído por relatos da prosperidade que seus conterrâneos alcançaram na colônia americana. Após um curto período no Rio de Janeiro, estabeleceu-se na vila de Sabará, local de referência na região de exploração aurífera de Minas Gerais. A princípio abriu um comércio de secos, mas logo se envolveu na cobrança do contrato de entradas de mercadorias na capitania. Inicialmente, Silvério atuou a serviço de outros contratadores, colaboramdona cobrança (muitas vezes violenta) dos tributos . Mais tarde, em virtude de seus laços de amizade, acabou adquirindo ele mesmo na Junta da Real Fazenda de Minas Gerais um dos mais importantes contratos de rendas reais da capitania de Minas Gerais entre 1782 e 1784.
Cabe lembrar que o sistema tributário da colônia portuguesa era bastante amplo e ao mesmo tempo extremamente fragmentado, aplicando cobranças sobre praticamente todos os bens, pessoas e propriedades. O direito de explorar determinadas áreas era arrematado por agentes particulares junto à Real Fazenda com base em uma estimativa de valor que se esperava receber no período combinado. Foi justamente a incapacidade de honrar os valores estabelecidos no contrato o motivo de Silvério ter contraído dívidas enormes com a Coroa Portuguesa, o que para alguns pesquisadores explicaria seu ingresso no movimento sedicioso.
Em 1788, os habitantes da rica província de Minas Gerais, um dos corações econômicos do vasto império português, tinham muitos motivos para inquietarem-se – e, talvez, até para rebelarem-se. Um novo governador havia sido nomeado pela Coroa portuguesa, o Visconde de Barbacena. Sua condição de recém-chegado colocava-o ao largo dos esquemas de corrupção que havia décadas vigiam na província, e que haviam feito a fortuna de altos funcionários da Coroa nomeados anteriormente para a administração da região. O visconde já anunciara publicamente sua intenção de implementar uma série de medidas para sacudir a administração da província, e os habitantes temiam os efeitos que estas mudanças acarretariam sobre suas vidas e propriedades.
Uma das mais temíveis medidas prometidas pelo Visconde de Barbacena era a chamada execução da Derrama. Este era o nome dado à cobrança imediata, e de uma só vez, dos impostos que os habitantes da província deviam à Coroa Portuguesa, mas estavam em atraso. O total montava a 596 arrobas de ouro, valor extremamente alto para a época. Vivia-se naquele momento a queda na produção das minas, levando a um endividamento generalizado na região e indicando o que seria o fim de um lucrativo ciclo do ouro. Entre os principais devedores estavam membros da elite local que seriam diretamente afetados pela cobrança. Além disso, a cobrança da Derrama seria seguramente um processo invasivo e violento. Com tais perspectivas sombrias adiante, e sob a influência dos ideais iluministas e da revolução americana, membros da elite econômica local passaram a organizar encontros secretos em que se articulava um movimento conspiratório contra as autoridades da metrópole que, em linhas gerais, pretendia derrubar o governador e instalar uma república na província de Minas Gerais. Entre os membros dessa elite conspiratória estavam o Tiradentes – aliás, bastante reputado por suas diversas habilidades, entre elas sua competência para oferecer assistência odontológica – e seu amigo Joaquim Silvério.
A pesquisa historiográfica tem atribuído a dificuldades econômicas a motivação para o ingresso de Silvério dos Reis no movimento independentista. Rodrigues acha que esse foi um fator que influenciou, mas adiciona outros elementos.
Um dos motivos seria a possibilidade de perda de status. À época, além da ameaça do processo violento de cobrança da Derrama, dentre as medidas prometidas pelo Visconde de Barbacena estava uma reforma dos regimentos militares. Estes regimentos eram criados por ordem real e, além da função de defesa, terminavam servindo para conferir status social aos seus líderes. Civis abastados, capazes de sustentar os altos gastos exigidos pelo posto podiam se tornar coronéis desses regimentos. Isso era uma demonstração de bom relacionamento e proximidade com a Coroa Portuguesa, e um inequívoco sinal de status. Tratava-se de uma distinção muito cobiçada, e havia muitos regimentos ‑ talvez até demais, na opinião do visconde, que se propôs a fazer um freio de arrumação.
“No contexto colonial e da província de Minas Gerais, ser coronel de um regimento era um importante distintivo social. Com a nova determinação, Silvério dos Reis perderia o status de nobreza conferido a ele pelo cargo”, diz Rodrigues. Como homem de extração social popular, que havia chegado ao Brasil jovem e pobre, e subido na vida devido ao próprio esforço, Joaquim Silvério prezava sua patente de coronel de cavalaria, e tinha repúdio à possibilidade de perdê-la – e, junto com ela, sua posição na sociedade colonial.
Já as dificuldades econômicas não seriam tão relevantes. “Silvério era um homem rico. Hoje sabemos que ele dispunha dos recursos para pagar as dívidas. Há documentos mostrando que ele chegou a propor a quitação praticamente integral da dívida junto à Real Fazenda”, diz o historiador.
Tiradentes tentou matar o vice-rei?
Ciente da provável convulsão social produzida pela Derrama, o Visconde de Barbacena suspendeu a cobrança generalizada dos impostos, preferindo a negociação pessoal com os principais devedores. Essa atitude fez com que a articulação dos inconfidentes perdesse embalo e ficasse em suspenso, pois o combinado era que a revolta explodisse tão logo a Derrama fosse decretada. Na mesma época, uma polêmica dividiu o grupo em dois lados, o que também prejudicou a possibilidade de passarem das palavras aos atos. Uma facção defendia que o governador da província fosse preso e expulso, enquanto outra fazia questão de executá-lo. Isso passaria uma mensagem de força ao poder central. Segundo o historiador, a vontade do segundo grupo prevaleceu, e caberia a Tiradentes a missão de matar o governador.
Ao avaliar o clima de indecisão e desorientação que desceu sobre os inconfidentes, que se combinava ao alto estrato social a que pertenciam muitos dos envolvidos, Joaquim Silvério teria avaliado que havia grande chance de que o governador da província logo desvendasse a conjuração. Sua resposta, então, foi antecipar-se e entregar os demais, o que poderia inclusive trazer benefícios diante da lei portuguesa, além de clemência por parte das autoridades. Ele fez a denúncia primeiro junto às autoridades de Minas Gerais e depois foi ao Rio, onde ficava a sede administrativa da Colônia.
Os documentos levantados pelo historiador mostram que, quando Silvério decidiu, em março de 1789, viajar até Cachoeira do Campo, então sede do governo da província de Minas Gerais, para delatar os companheiros ao governador Visconde de Barbacena, ele encontrou Tiradentes que estava a caminho do Rio de Janeiro. Embora a historiografia diga que Tiradentes neste período trabalhava em obras de modernização da capital, Rodrigues defende outra motivação para que o alferes estivesse na capital. “Os documentos mostram que Tiradentes foi para o Rio de Janeiro tentar matar o vice-rei, uma vez que a revolta havia perdido embalo em Minas Gerais. Ele queria começar um golpe militar matando o vice-rei”, diz.
O vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa era, naquele momento, o representante mais poderoso da metrópole no Brasil. Ciente de que sua vida estava ameaçada, pediu um reforço em sua guarda pessoal, o que também está documentado. Com seu plano frustrado pela segurança da autoridade, Tiradentes desistiu, e foi preso alguns dias depois, em 10 de maio, no Rio de Janeiro, em decorrência principalmente da delação de Joaquim Silvério dos Reis, cujo depoimento ajudou as autoridades a encontrar a casa onde o militar estava escondido.
O que se seguiu a partir daí foi o processo de devassa comandado pela Coroa Portuguesa e que ao longo de três anos investigou, julgou e condenou os cidadãos que participaram da Inconfidência Mineira. Ao todo foram 23 envolvidos na trama. Destes, 18 tiveram como pena o degredo na África e quatro clérigos foram relegados à clausura em conventos em Lisboa. Apenas Tiradentes recebeu como pena a morte na forca.
Como prêmio pela sua delação, Joaquim Silvério recebeu o hábito da Ordem de Cristo, 200 mil réis de pensão, o título de fidalgo da Casa Real, foi nomeado tesoureiro-mor da Bula de Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro, e teve o sequestro de seus bens, por dívida fiscal no contrato de entradas, suspenso. Em 1795 foi ainda condecorado como Cavaleiro da Ordem de Cristo. Mas, queixando-se de constantes insultos e atentados em virtude de suas decisões, ele deixou o Rio de Janeiro e retornou a Portugal, onde viveu por alguns anos. Porém, quando, por uma reviravolta do destino, a Corte portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro, ele voltou a viver no país. No entanto, D. João VI enviou-o para viver em São Luis, no Maranhão, onde passou seus anos finais e veio a falecer.
Mesmo após a morte, sua péssima reputação fez com que uma das figuras mais insignes de todo o segundo império, o duque de Caxias, patrono do exército brasileiro, discretamente ocultasse o parentesco entre os dois: o português era seu tio-avô, informação que não apareceu nas muitas biografias do militar.
“Acho que, por muito tempo, as pessoas não quiseram estudar a trajetória de Joaquim Silvério para não diminuir o mito de Tiradentes. Meu esforço é reconstruir essa figura e mostrar que foi um homem que também errou e enfrentou uma série de problemas, como qualquer ser humano”, diz Rodrigues. “Difícil dizer se ele é de fato um traidor, ou apenas um denunciante. Ele argumentava que por ser português, estava apenas defendendo os interesses de Portugal”, analisa o historiador.
Imagem acima: ACI Unesp.