Em 2023, foram abatidos no Brasil cerca de 34 milhões de cabeças de bovinos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Isso equivale a aproximadamente 93.300 abates por dia, ou 3.887 animais mortos por hora. Para os suínos, o total de abates em 2023 foi de 57,17 milhões de cabeças, e em ambos os casos verificou-se um crescimento em relação a 2022, que por sua vez já assinalara também um aumento em comparação com 2021. Mas a maior expansão ocorreu na área de frangos: foram abatidas 6,28 bilhões de aves, o melhor resultado de toda a série histórica iniciada em 1997.
Os números cada vez mais gigantescos movimentados pela indústria de proteína animal no Brasil têm contribuído para fomentar, na academia, a pesquisa sobre as formas mais eficientes para manejar os rebanhos e, também, um interesse pela diminuição do sofrimento dos animais criados em confinamento. Aos poucos, e com o apoio dos estudiosos, o tema do bem-estar animal está ganhando espaço também na indústria, e passando a ser visto, inclusive, como um fator de vantagem comercial.
Política flexibiliza marcação a fogo para Brucelose em SP
No início de março, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo lançou o Plano Estadual de Bem-Estar Animal, que tem como uma de suas principais medidas um novo modelo de marcação para animais vacinados contra a Brucelose. A brucelose é uma doença transmissível causada pela bactéria Brucella abortus que afeta fêmeas bovinas, podendo causar abortamento no final da gestação, o que leva a queda na produção de leite e carne e sérios prejuízos econômicos ao produtor rural.
Para combatê-la, o Ministério da Agricultura e Pecuária tornou obrigatória, desde 2001, a vacinação de fêmeas entre três a oito meses de idade, assim como também tornou obrigatória a marcação dos animais vacinados que, segundo orientação técnica, deve ser feita “utilizando-se ferro candente ou nitrogênio líquido, no lado esquerdo da cara”.
Uma das inovações do plano é justamente flexibilizar a norma e permitir aos pecuaristas paulistas o uso, nas bezerras vacinadas, de bottoms como alternativa à marcação a fogo. Os bottons são feitos de plástico colorido e aplicados como uma espécie de brinco às orelhas dos animais, o que permite uma identificação até mais fácil do que a da marcação a fogo.
Além de autoridades políticas e produtores rurais, estava presente também Mateus Paranhos, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, campus de Jaboticabal. Durante o evento, Paranhos foi homenageado pelos serviços prestados em favor do bem-estar animal para animais de produção, área em que desenvolve pesquisas desde os anos 1990.
Ele diz que a obrigatoriedade da marcação a fogo há tempos suscita desconforto entre alguns produtores que se destacam por manejarem rebanhos bem controlados e que investem na adoção de boas práticas no campo. “Até hoje, as iniciativas para minimizar o uso da marcação a fogo eram de caráter individual. Eu e mais alguns colegas levávamos a mensagem aos produtores, e alguns produtores e técnicos veterinários adotaram formas alternativas de identificação. Faltava, porém, um posicionamento claro, em termos de política pública. O governo de São Paulo é o primeiro a se posicionar”, diz.
Ainda que louvável, a iniciativa ainda é pouco representativa no contexto mais amplo da produção pecuária no país. Paranhos explica que, para além do registro da vacinação, os produtores empregam mais de dez tipos de marcação a fogo. O ferro candente é usado para identificar a propriedade (a marca da fazenda ao qual pertence o animal), para a identificação do indivíduo, para o registro da data de nascimento dos bezerros, entre outros exemplos. O resultado é que muitas vezes um mesmo indivíduo exibe diversas marcas feitas a fogo. E uma lei federal de 1965 chegou a determinar a região do boi em que a marcação deve ser feita: na cara, no pescoço ou nas regiões dos membros inferiores, sob o argumento de preservar a qualidade do couro para fins comerciais.
Estresse prejudica resposta do organismo a vacinas
Além das atividades de pesquisa, o docente do campus de Jaboticabal atua há décadas em atividades extensionistas junto a produtores e técnicos veterinários, buscando conscientizá-los da possibilidade de diversas práticas voltadas ao bem-estar animal. Ciente do prejuízo reputacional que a marca a fogo provoca na produção pecuária, desde 2020, com parceiros da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), ONGs e empresas do setor, Paranhos encabeça um projeto voltado exclusivamente para a redução da marca a fogo, que tem evitado cerca de 200 mil marcas ao ano em diversas fazendas no Brasil.
É fato que medidas voltadas para o bem-estar são louváveis por reduzir o estresse e a dor nos bovinos, mas quando se trata de animais de produção em geral, os custos e os retornos financeiros decorrentes da adoção de novas medidas de manejo também costumam ser consideradas na hora de o produtor decidir ou não pela sua adoção.
Paranhos explica que o custo dos “brincos” sugeridos pelo governo paulista gira em torno de dois reais a unidade, com a possibilidade de barateamento conforme a adoção do bottom ganhe escala. O real benefício para o produtor, entretanto, está em outras frentes. “Muitos produtores ainda não levam em conta que fatores como o tempo necessário para realizar o trabalho e o risco de acidentes com os funcionários se reduzem bastante com o uso dos bottons. Isso também precisa ser colocado na conta para tirar uma conclusão final”, destaca Paranhos. “Essa facilidade no manejo é o resultado mais palpável. Mas a adoção de métodos alternativos também gera efeitos importantes para a saúde dos animais. Sabemos, por exemplo, que o estresse animal causado pelo manejo inadequado dos animais prejudica a resposta imune do organismo às vacinas”, analisa.
Outro problema é a porcentagem de erros de leitura na identificação da marca a fogo. Em 2022, um projeto de mestrado realizado por um dos integrantes do grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (ETCO), coordenado por Paranhos, buscou caracterizar o processo de marcação a fogo e avaliar seus impactos no bem-estar de bovinos de corte, sua eficácia e as condições laborais dos trabalhadores envolvidos nessa atividade. Entre outros resultados, o trabalho registrou que cerca de 18% das leituras das marcações a fogo estavam equivocadas, por conta de aplicações mal feitas. “Parece pouco, mas muitos pecuaristas hoje tocam sua produção com controle total sobre seus rebanhos e não podem trabalhar com este índice de imprecisão”, avalia.
Paranhos diz que ainda há muito a fazer para desenvolver o bem-estar animal no país, principalmente quando se leva em consideração a diversidade das unidades de produção. “No Brasil temos desde produtores extremamente comprometidos com boas práticas de bem-estar animal, até profissionais que manejam os animais segundo os parâmetros de 50 anos atrás”, diz.
Uma questão recorrente, afirma o professor, é a etapa de transporte dos animais. “Quando o manejo é muito mal feito no momento do embarque, ou durante o transporte dos animais para o frigorifico, isso pode causar contusões e hematomas, o que torna a carne inapropriada para consumo porque existe um alto risco de contaminação por bactérias”, diz. O mesmo problema pode surgir pelo uso de pauladas, por acidentes com as porteiras ou por transportes sobrecarregados de animais. Estima-se que as perdas causadas pelo surgimento de hematomas no músculo gerem prejuízos da ordem de R$ 200 milhões por ano na cadeia produtiva. “É preciso conscientizar ainda mais produtores e expandir o conhecimento a respeito do manejo de baixo estresse. É claro que é impossível eliminar o estresse de um animal confinado, mas existem formas de minimizá-lo”, destaca.
Na produção científica sobre bem estar animal, Paranhos entende como uma tendência a evolução das pesquisas voltadas para sistemas industrializados de produção animal, como galinhas de postura (aquelas dedicadas exclusivamente à produção de ovos) em gaiolas, porcas de gestação restritas a pequenos espaços individuais e outros cenários de confinamento que fogem ao que se preconiza no bem-estar animal. “Há diferentes grupos de pesquisa atuando em diversos temas relacionados a essas problemáticas e também uma grande demanda por parte da sociedade, principalmente por meio de ONGs de proteção animal”, diz.
Diminuir a dor e promover dignidade
Alguns desses estudos estão em andamento no câmpus de Botucatu, onde pesquisadores começaram aplicar recursos de Inteligência Artificial para aprimorar escalas de dor em animais que vêm sendo desenvolvidas há anos na Unesp para diferentes espécies. As primeiras escalas foram elaboradas e validadas a partir dos anos 2010, sob a coordenação do professor Stelio Luna, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Hoje estão disponíveis escalas para dez espécies, entre animais domésticos e de produção, reunidas no site Animal Pain.
“Animais humanos são capazes de se comunicar e nos ajudar a entender a intensidade da dor que sentem. Para animais não humanos, entretanto, só o que podemos fazer é observar e depois administrar o analgésico”, explica o médico veterinário Gustavo Venâncio da Silva, membro do grupo de pesquisa de Luna. Ele é mestrando no Programa de Pós-graduação em Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu e primeiro autor de um estudo que recorre a técnicas de Inteligência Artificial para simplificar a escala desenvolvida pelo grupo da Unesp para suínos intitulada Unesp-Botucatu Pig Acute Pain Scale – UPAPS. Este é o passo inicial de uma iniciativa que se propõe a revisar as escalas de dor em animais já produzidas em Botucatu. O artigo trazendo o estudo foi publicado este ano em Scientific Reports.
Silva trabalhou em parceria com pesquisadores do Laboratory of Applied Artificial Intelligence in Heath (LAAIH), da Universidade Estadual da Carolina do Norte, que é coordenado pelo professor Pedro Henrique Esteves Trindade. A nova abordagem, além de aprimorar o manejo da dor em suínos, tem o potencial de beneficiar também outros segmentos da indústria, pois pode ser traduzida para outros animais de fazenda. O artigo foi destacado na e-letter semanal da Associação Americana de Veterinários de Suínos.
O veterinário explica que o trabalho foca especificamente a dor pós-castração cirúrgica em suínos, uma vez que esse é um procedimento comum em animais jovens, tanto no contexto de produção quanto em pesquisa. A castração é justificada pelo fato de que animais com altos índices de hormônios são mais agressivos e precisam ser confinados em separado. Isso resulta em aumento dos custos e do estresse do bicho. Além disso, os hormônios também levam a produção de uma carne com forte odor e imprópria para o consumo humano, o que torna esse procedimento obrigatório no Brasil.
De forma simplificada, a escala UPAPS é uma espécie de formulário que avalia diferentes comportamentos do suíno, a partir de cinco itens que devem ser observados pelo médico veterinário: Postura; Interação e interesse pelo ambiente; Atividade; Atenção à área afetada; e Comportamentos diversos. Cada item contém ainda uma série de subitens, de forma que cada observação deve receber uma pontuação entre 0 e 3, no qual 0 representa normalidade ou ausência de dor e 3 indica a dor de maior intensidade. O resultado final vai orientar a administração do analgésico ao animal. “A escala é uma tentativa de padronizar a observação do médico veterinário e fazer com que os animais sintam menos dor ao receberem analgesia da forma apropriada, melhorando assim o seu bem-estar”, diz Silva.
Com o apoio de técnicos veterinários e pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos, que enviaram resultados de suas avaliações, o pesquisador desenvolveu algoritmos que fizeram a ponderação entre as pontuações das escalas e também apontaram modificações que simplificaram a sua aplicação por veterinários.
“A escalas são criadas por humanos e para humanos. Com as técnicas de Inteligência Artificial, conseguimos avançar na criação de um processo menos enviesado e com maior respaldo estatístico”, diz Silva. A aplicação das técnicas matemáticas permitiu, por exemplo, a exclusão de todo o item Atividade da escala UPAPS sem que isso implicasse perda de qualidade do diagnóstico.
Os resultados do artigo levaram os pesquisadores a questionar se o ganho em simplificação poder ser um fator positivo para ampliar o uso das escalas elaboradas em Botucatu. “Uma versão mais ‘enxuta’ torna a sua aplicação mais simples e pode colaborar para que mais pessoas sejam capazes de usar a escala para a avaliação da dor”, avalia Silva. Nos próximos meses, a expectativa é que novos trabalhos de refinamento das escalas já existentes sejam publicados pelo grupo.
Silva sabe que não é possível fazer com que a indústria deixe de castrar os suínos porque isso traria sérios impactos na produção, e consequências econômicas relevantes. “Então, já que vamos realizar esse procedimento, que seja feito de forma a que o animal seja mais respeitado e sinta menos dor. Enfim, que se valorize o seu bem-estar e se dê a ele um pouco de dignidade”, diz.
Imagem acima: duas gerações de vacas: a mais velha ainda marcada a fogo e a segunda já usando formas alternativas de registro (Crédito: Mateus Paranhos)