Em dezembro de 2023, a França devolveu ao Brasil 998 fósseis que haviam sido traficados para fora do país. O acordo de devolução demorou 10 anos para ser concretizado, e ajudou a reaver peças com registros de pterossauros, peixes, plantas, insetos, dentre outros animais. Infelizmente, o comércio internacional e ilegal de fósseis é comum na América Latina, o que faz com que o processo de repatriação tenha se tornado um tema prioritário entre os paleontólogos.
O assunto foi abordado em um artigo de opinião publicado em janeiro na revista Nature Ecology & Evolution por membros da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) e tem dois pesquisadores das Unesp entre os autores. A publicação relata o comprometimento da entidade com a repatriação de fósseis, destacando os avanços na área e os desafios que ainda persistem. De acordo com o artigo intitulado Scientific societies have a part to play in repatriating fossils, esse posicionamento é fundamental para combater o colonialismo científico, uma prática em que países desenvolvidos produzem conhecimento científico por meio da exploração de recursos naturais de países em desenvolvimento.
Segundo o paleontólogo Renato Pirani, docente da Faculdade de Ciências da Unesp e um dos autores do artigo, a legislação brasileira considera os fósseis como patrimônios culturais e, por conta disso, existe uma série de normas para preservá-los, sendo a primeira lei brasileira de proteção fossilífera de 1942, durante o governo de Getúlio Vargas. “Essa proteção recai sobre os fósseis, de modo que eles não podem sair do país, não podem ser vendidos e, para que um pesquisador internacional possa trabalhar no Brasil [com o material], é necessário preencher um conjunto de itens no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), além de estar cadastrado junto a um pesquisador nacional” comenta o docente do câmpus de Bauru. Além dele, o doutorando Vitor Ribeiro, do Programa de Pós-Graduação em Biociências, também assina a publicação.
Desde a primeira lei de 1942, que institui os depósitos fossilíferos como propriedades da Nação, até a Constituição de 1988, que implementou regulamentações de pesquisa internacional, prescreveu os crimes de comércio ilegal de itens arqueológicos e estipulou normas de conservação do patrimônio cultural, existe um arcabouço legal voltado para a proteção desses bens e para o incentivo à produção da ciência paleontológica no país [ver infográfico]. “Não somos um território sem lei como alguns países europeus acham. Alguns desses países dizem, inclusive, que fazem essa retirada, descrição e alocação no país deles, porque o nosso não tem lugar para guardar fósseis, o que é uma mentira. Temos vários museus, que guardam fósseis e os outros tipos de materiais de maneira correta” complementa Pirani.
Fósseis brasileiros podem custar até 150 mil dólares
Apesar da legislação robusta, o contrabando de fósseis ainda persiste no Brasil. “Muitos fósseis saem do país como se fossem pedras ornamentais, como as pedras de piscina. Dessa forma, muitos containers dessa pedra são levados para fora do país e, no meio delas, vão também os fósseis, que são a matéria principal de interesse” relata Pirani. A região mais afetada pelo tráfico é a Bacia do Araripe, no interior do Ceará, local conhecido por sua predominância de materiais fósseis do período Cretáceo, datados de mais de 150 milhões de anos atrás. A exportação é feita por barcos, que saem do porto de Santos, e seu principal objetivo é a comercialização, visto que algumas peças chegam a custar 150 mil dólares. Os espécimes são levados para a Ásia, Europa e Estados Unidos e costumam ser encontrados em pesquisas científicas, coleções pessoais e leilões virtuais.
As investigações são essenciais para se encontrar o material traficado, como no caso dos 998 fósseis repatriados em dezembro de 2023, o qual foi resultado de uma operação conjunta entre as forças policiais brasileiras e francesas. Em outras situações, até mesmo os próprios artigos científicos internacionais podem revelar casos de tráfico. “Eventualmente sai uma pesquisa lá fora que fala sobre um fóssil nosso, mas desde 1942 essa saída do país não é permitida, ainda mais se for um holótipo, ou seja, uma espécie nova” diz Pirani. Esse foi o caso do Ubirajara Jubatus, um fóssil de dinossauro traficado em 1995, que estava no Museu Estadual de História Natural da cidade de Karlsruhe, na Alemanha, mas que foi devolvido ao Brasil em junho de 2023, após anos de negociações e mobilização popular por parte dos brasileiros. A irregularidade foi descoberta por meio de um artigo publicado por pesquisadores alemães em 2020, no qual eles descreviam a espécie. Após a denúncia, o artigo foi retirado e a revista que o publicou se retratou.
As publicações científicas têm um papel relevante na luta pela repatriação, pois como ficou evidente no caso do Jubatus, algumas dessas revistas não possuem critérios para avaliar a origem do fóssil. Tendo isso em vista, a SBP tem pedido aos periódicos de ciência para aprimorar os requisitos de publicação, a fim de evitar que papers sobre fósseis adquiridos ilegalmente sejam publicados. “Algumas delas já estão arrumando a linha editorial, outras ainda estão no trabalho, acredito que daqui a algum tempo isso vai acontecer em todas as revistas”, comenta o docente.
Pirani, que atualmente é vice-presidente da SBP, conta que a exportação para estudo não é ilegal, mas deve obedecer normas. “A retirada de fósseis do país é possível, mas há uma série de protocolos legais para isso, só que eles se tornaram mais claros a partir desse século. No passado, os cientistas não tinham clareza sobre o assunto e os fósseis saíam com muita facilidade do país”, afirma. Como atualmente existem legislações detalhadas que protegem os fósseis, basta que elas sejam aplicadas corretamente, e os estudos estrangeiros podem ser validados e divulgados à comunidade científica.
O artigo assinado pelos membros da SBP aponta que a fiscalização também deve ser atuante e melhor preparada, uma vez que, na visão do docente, existem apenas serviços de investigação, mas não de precaução contra o contrabando. “Não temos muita noção do volume de fósseis que sai do nosso país. O estudo mais recente sobre o assunto, feito pela entidade britânica Royal Service, mostra que 88% dos fósseis do Araripe estão em solo estrangeiro”, afirma o docente, em referência a um artigo publicado em março de 2022.
O envolvimento de outras entidades governamentais e científicas também se faz necessário, pois no caso do Ubirajara Jubatus houve a participação predominante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação e da SBP, apenas. Como destaca o artigo publicado, a cooperação entre agentes, tais como o Ministério da Educação, Ministério das Relações Exteriores, Conselho Internacional de Museus, museus de paleontologia e universidades federais e estaduais, podem colaborar na proteção desses patrimônios culturais, bem como agilizar os processos de repatriação.
As conquistas recentes na repatriação
Apesar dos desafios, a repatriação tem conquistado avanços significativos nos últimos anos. Além dos processos envolvendo os quase mil fósseis e o Jubatus, o Brasil conseguiu reaver um fóssil de aranha Cretapalpus vittari, em 2021, e treze fósseis de mesossauro em 2014. Todos os casos necessitam de grandes períodos de negociação e por isso costumam ser demorados.
Outro passo importante em direção à proteção dos depósitos fossilíferos brasileiros foi a inclusão de seis espécimes fósseis na Red List Brazil, uma lista produzida pela International Council of Museums (ICOM) em associação com o ICOM Brasil, que contém bens culturais com legislação própria e que correm o risco de ser contrabandeados para fora do país. Essa listagem é de conhecimento de órgãos de fiscalização e controle de todas as nações. As espécimes pertencem a vertebrados, invertebrados, plantas e rastros de seres extintos.
De acordo com Pirani, a SBP tem tomado medidas para facilitar as negociações internacionais. “Começamos a perceber que não era só um problema do Brasil, mas também de outros países latino-americanos. Então resolvemos nos comunicar e nos unir com associações argentinas, mexicana, chilena, equatoriana e peruana para tentar resolver essa situação em conjunto e mostrar que os problemas são iguais, que a saída de fósseis ocorre da mesma maneira, apesar de todos nós termos leis contra isso” explica.
Imagem acima: Fóssil Ubirajara jubatus que desde os anos 90 estava na Alemanha (Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil)