Segundo a lista de final de ano apresentada pelo site Wikipedia, o artigo mais buscado em 2023 na enciclopédia digital foi aquele intitulado “Chat GPT”, exibido cerca de 50 milhões de vezes, bem à frente do segundo colocado, uma listagem de famosos falecidos de janeiro para cá visualizada 42 milhões de vezes. Na mesma toada, o tradicional dicionário Collins, publicado pela editora Harper Collins, elegeu como palavra do ano a expressão “AI”, sigla em inglês para Inteligência Artificial.
A explosão do uso do Chat GPT e de outras ferramentas de inteligência artificial se fez ouvir nas mais variadas áreas da sociedade, e, com muita força, entre os estudantes. As consequências da chegada da IA ao nosso cotidiano foram abordadas no VI Congresso Nacional de Formação de Professores e XVI Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores, que ocorreu no início de dezembro na cidade de Águas de Lindoia, em São Paulo. O tema foi debatido em uma mesa-redonda intitulada “Tecnologias (fake news e Chat GPT)”, mediada pelo professor Julio Cesar Torres, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp e integrada pelos professores Bruno da Silva Leite, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, e Walter Carnielli, da Unicamp.
Em junho deste ano, Walter Carnielli já havia sido convidado para participar da primeira reunião de trabalho do Conselho de Comunicação Social (CCS) do Senado Federal para debater a regulamentação da Inteligência Artificial. Nas duas ocasiões, ele procurou desmistificar as ferramentas de inteligência artificial e analisar o impacto que causaram nestes últimos meses, que descreveu como semelhante a “um tsunami”. Um olhar mais atento é capaz de identificar nestes novos dispositivos limitações em aspectos como capacidade de generalização e abstração, dedução e consequencialidade, compreensão contextual, noção de causa e efeito ou a criatividade, por exemplo. Usar Chat GPT é sinal de inteligência, confiar no Chat GPT é sinônimo de burrice. Ele erra pra caramba”, brinca o docente, que assina um curso na plataforma Coursera intitulado Pensamento Crítico, Lógica e Argumentação.
Em entrevista ao Jornal da Unesp logo após a palestra no Senado, Carnielli, que é matemático de formação e dirige o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp, analisa os impactos positivos e negativos do emprego dessas ferramentas em sala de aula e se declara preocupado com pressão pelo uso das ferramentas baseadas em IA por parte das big techs, movidas por uma lógica comercial.
*****
A discussão sobre a presença de novas tecnologias na sala de aula ocupou o principal auditório do Congresso e teve provavelmente um dos maiores públicos entre as diversas mesas-redondas realizadas no evento. Como o senhor enxerga todo esse interesse pelo tema?
Walter Carnielli: Eu acho que se justifica plenamente. Não podemos ficar alheios a nada que a tecnologia nos oferece. Não se podia ficar alheio à imprensa quando foi inventada, ela fez com que as pessoas deixassem de copiar livros à mão. O mesmo valeu para a máquina Xerox, o computador e os processadores de texto. Todos usam essas ferramentas hoje em dia. E mesmo que a gente não use essas ferramentas, os alunos usarão. Temos que correr junto com eles. E eles vão usar para o bem e para o mal. Meu neto de doze anos usa o Chat GPT como uma introdução para os assuntos e sabe que a referência de verdade ele vai procurar nos livros. Então, se for bem feito, a tecnologia pode ser um recurso legal. E o professor precisa saber que os alunos copiam, o plágio é uma realidade. É preciso ter cuidado com tudo, porque até as ferramentas antiplágio erram. Costumo dizer que não existe substituto filosófico para um algoritmo. Você tem que ter conceito filosófico, precisa ter bom senso, precisa ter raciocínio, precisa ter pensamento crítico. Disso não se pode escapar.
Nós já vivemos épocas em que movimentos tecnológicos trouxeram impactos significativos na educação. Um exemplo que vem à mente de imediato é a internet. Mas a impressão que temos sempre é que desta vez é diferente. O impacto da Inteligência Artificial tem de fato um alcance maior na sociedade que as inovações anteriores?
Walter Carnielli: O que a gente tem feito é somar impactos. É um impacto em cima do outro. Os recursos anteriores continuam impactando, e agora chegou um novo. Essas novas ferramentas vão trazer consequências. Talvez não seja tanto quanto dizem, mas é fato que em determinadas áreas pessoas vão perder o emprego: contabilidade básica, controle de estoque… Muitas dessas atividades serão eliminadas, ou só alguns trabalhadores vão ser mantidos. Já um jardineiro competente, um bom professor, um cuidador de idoso atencioso, esses vão manter seus empregos porque são atividades que a IA não consegue substituir.
O que mais o preocupa na questão da presença e do uso das ferramentas baseadas em Inteligência Artificial na sala de aula?
Walter Carnielli: É muito positivo que as crianças tenham acesso ao conteúdo de museus do mundo inteiro, a uma série de obras da literatura, saber fazer seus produtos audiovisuais, colocar na internet e divulgar, aulas de História, tutoriais. São muitos conteúdos úteis à disposição. Mas o que é ruim? O ruim é que se a gente não tomar cuidado, os alunos regridem. Regridem porque leem menos, pensam menos, criticam menos, avaliam menos, analisam menos. É mais gostoso ver Tik Tok de 15 segundos, mesmo para nós. É mais gostoso ver uma paródia do que gastar 15 minutos para ler uma notícia.
Na sua atuação como professor, como o senhor se apropria dessas ferramentas na sala de aula?
Walter Carnielli: Eu particularmente uso pouco em sala de aula porque dou aula para a pós-graduação e tenho alunos de mestrado e doutorado, mas sou favorável para que se use para corrigir textos, tradução de idiomas, que se aproxime das ferramentas e não se fique alheio. Temos muitos conteúdos interessantes em cursos, por exemplo. Hoje tenho alunos com muito mais facilidade no idioma inglês e espanhol do que tinha há vinte anos. Quase todos se viram muito bem. Há vinte anos eles não conseguiam ler um texto nesses idiomas. Hoje eles estão acostumados com o idioma por meio de jogos, ferramentas de tradução, vídeo com legenda, fazem a busca de uma palavra que não conhecem. Eles acabam aprendendo de um jeito ou de outro. O idioma deixou de ser o empecilho que era antigamente.
O senhor se coloca a favor da regulação dessas novas tecnologias baseadas em IA e menciona o aspecto comercial dos produtos, que no fim das contas estão vinculados a modelos de negócio, assim como ocorre no caso de gigantes digitais como a Uber ou o Airbnb. Onde o senhor vê a semelhança entre essas empresas?
Walter Carnielli: O que essas empresas têm em comum é uma estratégia de oferecer um serviço quase ou totalmente gratuito no intuito de alcançarem um número expressivo de usuários. Chegam ao ponto de se tornarem quase imprescindíveis, ganhando inclusive força política. Temos visto em vários países do mundo dificuldades em regular a atuação de aplicativos como Uber e Airbnb. Especificamente no Brasil, pudemos ver como algumas dessas big techs se mobilizaram para dificultar a aprovação de um projeto de lei para combater as fake news, por exemplo. Hoje esse PL está parado.
Atualmente, existe no Congresso uma discussão de qualidade, e muito avançada, para propor uma regulamentação para a Inteligência Artificial. Este é um desafio não só no Brasil, mas no mundo todo, que fique claro. Qual é a força do professor ou de um sistema educacional diante das estratégias dessas big techs? É a força das formigas contra o elefante. E muitas formigas juntas incomodam o elefante. Temos que adotar uma atitude política, no sentido da ação política de massa. Isso funciona. A gente às vezes acha que uma moção, um abaixo-assinado, não vai resultar em nada. Mas funciona, e é o que nós temos.
Foto de abertura: Walter Carnielli durante o VI Congresso Nacional de Formação de Professores. Crédito: Roberto Rodrigues/ACI-Unesp