Com uma área de aproximadamente 1.350 km2 o reservatório de Itaipu, criado como parte do projeto da usina hidrelétrica homônima, é o sétimo maior lago artificial do Brasil, e tem suas margens confrontadas por nada menos de 16 municípios de dois estados brasileiros. Porém, não é apenas para a geração de eletricidade que suas águas se destinam. O lago também é usado para pesca esportiva e para o cultivo de peixe, isto é, a psicultura, porém conduzida pelos moradores dos municípios do entorno em moldes tradicionais, que implica o uso de espécies locais e produção em pequenas quantidades. Agora, um experimento pioneiro da Unesp, conduzido em parceria com a empresa Itaipu Binacional, que administra a hidrelétrica, está avaliando as condições de segurança para o cultivo da tilápia, uma espécie que não existe originalmente na região, mas que pode se tornar uma importante fonte de lucros para as populações locais.
O objetivo final da pesquisa, que já entrou em seu quinto ano, é avaliar o impacto que a produção de tilápias em tanques-rede pode ter na qualidade da água do reservatório. A ideia é que os resultados do trabalho, que ainda deve durar mais dois anos, possam subsidiar uma eventual decisão no sentido de liberar esse sistema de produção no local. Atualmente, a produção de espécies exóticas no reservatório foi proibida no acordo assinado entre Brasil e Paraguai.
Embora o Brasil seja o quarto maior produtor do mundo, a tilápia não é uma espécie nativa. Originário da África e do Oriente Médio, o peixe foi introduzido no país nos anos 70 e atualmente é o mais cultivado na piscicultura brasileira. Em 2022, segundo o anuário PeixeBR, elaborado pela Associação Brasileira de Piscicultura, foram mais de 550 mil toneladas, que representam cerca de 64% da produção nacional. O peixe, inclusive, já é produzido em reservatórios. No lago da Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira, por exemplo, foram produzidas 30 mil toneladas de tilápia em tanques-rede, de acordo com informações divulgadas no Boletim da Aquicultura em Águas da União de 2022, lançado no final de outubro pelo Ministério da Pesca e Aquicultura.
Pesquisadores costumam ser receosos sobre a produção em reservatórios pelo risco de escape da tilápia, que poderia colocar em risco o ecossistema local e as outras espécies que nele habitam. Entre os problemas apontados está a eutrofização e poluição aquática decorrente do excesso de ração e das fezes do peixe, bem como a transmissão de doenças e parasitas trazidos pela produção e que podem ocorrer em tanques-rede com alta densidade.
O estudo, coordenado por Rinaldo Ribeiro, docente do Departamento de Recursos pesqueiros e Aquicultura da Faculdade de Ciências Agrárias da Unesp, campus de Registro, teve início em 2017 e está dividido em três etapas.
Na primeira fase foi analisada a qualidade da água antes do início da produção e a ictiofauna (espécies de peixes) que estava presente na água e no sedimento do reservatório. Na segunda etapa, que acaba de ser concluída, os pesquisadores estabeleceram e monitoraram a produção das tilápias em tanques-rede (gaiolas submersas que abrigam os peixes) com diferentes concentrações.
Esta etapa foi conduzida em uma unidade de pesquisa especialmente projetada que abrigava 29 tanques-rede, sendo 20 com volume de 25m3 e outros nove de 7m3. Com o auxílio dos tanques, foram realizados três ciclos de produção que somaram 10, 15 e 20 toneladas de peixes, aproximadamente. Ao todo, a biomassa abatida nessa fase da pesquisa ultrapassou 45 toneladas. Graças ao apoio de uma cooperativa da região, todo o pescado foi beneficiado e distribuídas a aldeamentos indígenas do entorno e a escolas públicas da região, compondo o prato de aproximadamente 150 mil merendas escolares .
Na terceira e última etapa estão sendo analisados os impactos dessa produção na qualidade da água, do sedimento, e das espécies que vivem nesses espaços, como a ictiofauna e outros pequenos organismos. “O que os resultados preliminares estão apontando é que não houve impacto relevante dessa produção”, explica o engenheiro de pesca. “Não se verificou efeito do aumento da carga orgânica, das concentrações de fósforo, nitrogênio ou de macronutrientes, elementos que poderiam, por exemplo, ocasionar o processo de eutrofização da água”, diz Ribeiro, que trabalhou em Itaipu anteriormente por ocasião de seu projeto de doutorado, em 2006.
Para realizar o acompanhamento da qualidade da água, a Itaipu Binacional adquiriu duas sondas de monitoramento limnológico (que analisam a qualidade da água do reservatório) no valor de aproximadamente R$1,5 milhão e que operam de forma remota, fornecendo relatórios atualizados de hora em hora. Além disso, trimestralmente são coletadas presencialmente amostras da ictiofauna, fito e zooplânctons, por funcionários da Itaipu Binacional e alunos do curso de Engenharia de Pesca da Unesp, em Registro, que colaboram com o projeto. O monitoramento é realizado em quatro pontos: no local da produção, à montante, à jusante e em um ponto controle.
“O impacto mais significativo que nós notamos foi do rio que vem a jusante do nosso experimento, que recebe uma carga orgânica considerável devido à ausência de saneamento básico. Já a contribuição do nosso sistema aquático de produção é ínfimo”, afirma Ribeiro, ressaltando a importância do tratamento e destinação adequada do esgoto. Variações também foram observadas em função da sazonalidade, tendo em vista as estações do ano e períodos chuvosos, novamente sem impacto relevante.
Ainda assim, Ribeiro é cauteloso ao explicar que a realização da pesquisa está restrita a uma parte do lago formado pelo reservatório de Itaipu chamado braço Ocoy, e os resultados, ainda que animadores, não devem amparar a liberação da produção em todo o reservatório, cujo tamanho supera a mancha urbana da cidade de São Paulo. “Cada braço do reservatório funciona hidraulicamente de forma diferente. Existe o entendimento de que cada área deve ser avaliada separadamente de acordo com cada área agrícola que for criada. Não podemos extrapolar”, afirma.
O estudo é inédito no Brasil e um dos mais completos do mundo na avaliação dos impactos de sistemas produtivos em reservatórios porque contempla um longo período de tempo e diferentes aspectos do processo de produção (antes, durante e depois do cultivo de tilápias). “Simular uma produção comercial é caro, oneroso e envolve muitas pessoas e tempo. Este é um projeto ímpar e acreditamos que vai se tornar referência para muitos outros projetos com esses objetivos”, avalia o engenheiro agrônomo André Watanabe, da Divisão de Reservatório da Itaipu Binacional. Além da Unesp, a iniciativa também tem a parceria do Instituto Neotropical, da Universidade do Oeste do Paraná (Unioeste) e da Copacol, cooperativa agroindustrial localizada no Paraná.
Watanabe explica que o investimento da operadora da hidrelétrica no projeto já superou R$ 1 milhão. Além da preocupação principal com a qualidade da água do reservatório, o objetivo do trabalho é embasar a adoção de políticas públicas voltadas para as comunidades que vivem no entorno. Desde 2008, a Itaipu Binacional já colabora com associações que representam cerca de 200 pescadores profissionais localizados no entorno do reservatório, oferecendo treinamento e capacitação para a produção em tanques-rede do pacu, que é uma espécie nativa.
A adoção das tilápias nesses sistemas de produção, entretanto, não é legalizada em virtude do acordo bilateral entre Brasil e Paraguai que proíbe o cultivo de espécies não nativas em águas fronteiriças. Ainda assim, explica Watanabe, a empresa costuma ser questionada sobre a possibilidade de também permitir a produção das tilápias. “Nós sempre respondemos aos questionamentos com base em artigos científicos que foram produzidos em ambientes diferentes do reservatório de Itaipu”, esclarece o engenheiro, que há 15 anos trabalha na operadora. “Em determinado momento sentimos necessidade de conduzir uma atividade de pesquisa em nosso território para responder com assertividade a essas questões ambientais do cultivo da tilápia, que seria um ganho econômico e social grande para o território.”
Essa expectativa de que a produção de tilápias represente um acréscimo à renda das comunidades de pescadores profissionais encontra respaldo no perfil das atividades econômicas locais. As regiões oeste do Paraná e de São Paulo são os maiores produtores de tilápia do Brasil em tanques escavados (na terra) e tanques-rede, respectivamente. Neste sentido, explica Watanabe, as comunidades de pescadores também se beneficiariam da infraestrutura de uma cadeia produtiva já existente, como fábricas de ração, malha rodoviária, unidades de abate e processamento e universidades para formação de mão de obra.
Ribeiro faz coro ao potencial da tilápia para complementar a renda das comunidades presentes no reservatório. Espécie resistente e de hábito alimentar elástico, a tilápia tem um ciclo reprodutivo de curta duração (seis meses) e facilmente controlado pelo produtor, sendo estes alguns dos motivos de a espécie ser cultivada em praticamente todo o mundo. As 45 toneladas produzidas pelo projeto coordenado pelo professor da Unesp não podem ser comparadas a uma produção industrial, mas representam uma boa referência para um cultivo familiar, principal foco do projeto. Tendo em vista o rendimento de 30% por peixe e o preço atual de R$ 35 por quilo da tilápia, a quantidade produzida no projeto teria rendido em torno de R$ 500 mil, sem contar os custos da produção.
O trabalho realizado pelos pesquisadores já começa a despertar o interesse da “vizinhança”. No final de outubro, Ribeiro se reuniu com o Ministério do Meio Ambiente do Paraguai para apresentar o projeto em desenvolvimento no lado brasileiro do reservatório e mostrar as perspectivas da produção das tilápias. Segundo o professor, a equipe do ministério manifestou o interesse de estabelecer uma unidade de pesquisa também no lado paraguaio.
Imagens acima: arquivo pessoal