Os últimos anos foram marcados por uma corrida sem precedentes em busca de um tratamento seguro e eficaz contra a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). Pesquisadores, empresas farmacêuticas e autoridades de saúde uniram e multiplicaram esforços para testar a capacidade de vários compostos — alguns novos, outros clinicamente aprovados e usados contra outras enfermidades— de deter o vírus ou reduzir seus efeitos no organismo. Inúmeras estratégias foram apresentadas, envolvendo desde o uso de antivirais e anti-inflamatórios a drogas que regulam a resposta imunológica e anticorpos.
Passados mais de três anos desde o início da pandemia, um grupo de pesquisadores do Brasil, da Colômbia, do Equador, do Peru e da República Dominicana, todos membros da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Associação Panamericana de Infectologia, debruçaram-se sobre as evidências associadas a essas estratégias. Com base nesse levantamento, elaboraram um conjunto de recomendações de uso dos medicamentos que se mostraram mais eficazes na profilaxia e no tratamento de diferentes fases da covid‐19.
Eles conduziram uma revisão sistemática de mais de 2 mil estudos publicados em periódicos indexados em bases de dados biomédico e farmacológico avaliando a ação de diferentes medicamentos em ensaios clínicos de fase 3, última etapa antes da submissão do pedido de autorização de uso às agências regulatórias. Os autores analisaram não apenas os resultados dos trabalhos, mas também a qualidade dos ensaios, isto é, se eram randomizados, seguiam o sistema duplo-cego e incluíam controle por placebo. Também avaliaram os benefícios, riscos e efeitos indesejáveis das substâncias testadas.
Conjunto de fármacos
Os resultados indicam que há um conjunto de fármacos os quais, administrados sozinhos ou de forma combinada, ajudam a debelar o vírus e tratar a doença em suas diferentes fases. Os autores avaliaram as evidências para nove fármacos. Com base nelas, elaboraram dez recomendações de tratamento para quadros leves, moderados e graves da enfermidade. “A ideia é que elas auxiliem médicos e infectologistas que tratam a doença em adultos nas Américas a usar o medicamento, ou a associação de medicamentos, mais apropriado para cada caso”, destaca o médico Alexandre Naime Barbosa, do Departamento de Infectologia da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu. Ele é o autor principal de um estudo publicado em agosto na revista Annals of Clinical Microbiology and Antimicrobials apresentando as recomendações.
Os autores categorizam as substâncias em dois níveis de avaliação positiva. O mais alto, chamado recomendação favorável, dá-se quando as evidências sobre os efeitos benéficos de um medicamento contra determinada doença são muitos sólidas. “O uso combinado dos antivirais nirmatrelvir e ritonavir, da Pfizer, comercialmente chamado de Paxlovid, em pacientes com sintomas leves de covid-19, é a única estratégica que se enquadra nessa categoria até o momento”, afirma Barbosa. “As evidências indicam que os pacientes tratados com esse fármaco apresentaram menos eventos adversos graves do que os que receberam placebo”, acrescenta o pesquisador, que é consultor especial para a covid-19 da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Associação Médica Brasileira.
Os outros medicamentos foram enquadrados em um segundo nível de recomendação, chamado sugestão favorável, quando os compostos avaliados oferecem algum benefício, mas as evidências nesse sentido não são tão robustas — muitas vezes porque os estudos apresentam alguma limitação metodológica —, de modo que seu uso fica a critério da equipe médica. Caso dos antivirais remdesivir e molnupiravir para pacientes com sintomas leves e moderados de covid-19 com características que favoreçam a evolução para as formas graves, e do remdesivir, do baracitinib e do anticorpo monoclonal tocilizumab para pacientes internados com quadro grave da doença — anticorpos monoclonais são versões sintáticas de anticorpos de origem humana. Tanto o baracitinib quando o tocilizumab agem como inibidores de uma citosina pró-inflamatória chamada interleucina-6 (IL-6). Não raro, indivíduos em estado grave da covid-19 apresentam níveis elevados de IL-6 no sangue. Seu acúmulo pode desencadear complicações e levar à morte.
Os autores também deram sugestão favorável ao uso combinado de outros dois anticorpos monoclonais como profilaxiapré-exposição ao Sars-CoV-2 e para o tratamento de pessoas com sintomas moderados de covid-19, mas risco de progressão para um quadro severo: o tixagevimabe e o cilgavimabe, comercializados no Brasil sob o nome de Evusheld.
O fármaco já vinha sendo usado no Brasil. Recentemente, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pelo controle de medicamentos no país, derrubou temporariamente a autorização para seu uso emergencial. A justificativa foi a de que o medicamento, produzido pela farmacêutica AstraZeneca, perdeu sua eficácia contra as novas variantes do vírus, em especial a XBB.1.5, considerada a mais transmissível já identificada, que começou a circular no Brasil em dezembro de 2022.
Isso já era esperado pelos cientistas. O Evusheld atua em uma região específica da proteína da espícula, que permite ao vírus invadir as células. Chamada de domínio de ligação ao receptor (RDB), essa região se encontra em constante evolução. “Nossa indicação de sugestão favorável a esse fármaco se deu em um momento da pandemia diferente do atual, com variantes mais antigas”, explica Barbosa. “O guia é dinâmico e deverá ser atualizado periodicamente à medida que novos estudos, com novas evidências, forem publicados.”
Recomendação desfavorável à hidroxicloroquina
Os pesquisadores também fizeram recomendação desfavorável ao uso do vermífugo ivermectina e do antimalárico hidroxicloroquina. Este último ganhou destaque no início da pandemia, após a divulgação de resultados aparentemente promissores, mas preliminares, de estudos feitos com pacientes que receberam a droga na França e na China.
Esses trabalhos, conduzidos às pressas, sem o rigor científico habitual, reverberaram com ainda mais força após o ex-presidente norte-americano, Donald Trump, ter afirmado que a agência regulatória de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, havia aprovado seu uso em pessoas infectadas. No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro, mesmo sem evidências, também promoveu o uso do fármaco contra a Covid-19. “No entanto, as evidências acumuladas até aqui indicam que tanto a ivermectina quando a hidroxicloroquina não têm qualquer efeito contra o Sars-CoV-2”, diz Barbosa. “O maior ensaio clínico, conduzido pela Coalizão Covid-19 Brasil com 1.372 pacientes, constatou que o medicamento não promoveu melhora clínica em comparação com o placebo”, completa.
No caso da hidroxicloroquina, além de não ter efeito contra o coronavírus, estudos indicam que a medicação pode desencadear reações adversas graves, sobretudo quando administrada com outras drogas, em pessoas com doenças renais ou cardíacas preexistentes.
Os autores esperam que as recomendações sejam adotadas nas Américas para otimizar o uso dos recursos de saúde e reduzir a heterogeneidade dos procedimentos. A região foi a mais afetada pela pandemia. Até agosto de 2023, acumulava mais de 193,2 milhões de casos e pouco mais de 2,95 milhões de mortes, segundo a Organização Mundial da Saúde. “Nossas recomendações já estão sendo usadas como ferramenta para a tomada de decisão no Brasil”, diz o pesquisador. “Participei recentemente de um encontro no Ministério da Saúde para a elaboração de um guia de uso do Paxlovid para pacientes não hospitalizados e de alto risco no Sistema Único de Saúde com base em nossa revisão sistemática.”
Apesar das recomendações, as vacinas ainda são fundamentais para controlar a progressão do novo coronavírus.
Imagem acima: teste de antígeno para a covid-19 na Áustria. Crédito: Deposit Photos/ Spitzi