Uma nova espécie de sapo foi encontrada no Parque Estadual da Serra Negra, em Minas Gerais, no município de Itamarandiba. Batizada de Crossodactylodes serranegra, a espécie foi localizada no topo de uma montanha na chamada Serra do Espinhaço e acredita-se que viva apenas naquela região, conhecida pela riqueza de sua biodiversidade. A descoberta é fruto do trabalho de uma equipe de pesquisadores que reúne integrantes do Instituto de Biociências da Unesp Rio Claro (IB/Unesp), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Kent e do Instituto Biotrópicos. O achado foi relatado em artigo publicado em junho na revista Herpetologica.
O pequeno sapo, de coloração marrom-claro e dedos alaranjados, foi encontrado em um trecho de floresta com características que já se sabiam ser favoráveis à existência de espécies do gênero Crossodactylodes, como árvores baixas, arbustos, musgos, liquens e alta densidade de bromélias, além de altitude acima de 1.000m. Alguns pesquisadores da equipe já haviam relatado, em 2013, a descoberta de outra espécie do gênero, nomeada como Crossodactylodes itambe. Os dois achados são parte de um expressivo crescimento no número de espécies de anfíbios encontradas no Brasil nos últimos anos. Entre 2019 e 2021, nada menos do que 50 achados foram adicionados à Lista de Anfíbios do Brasil, publicada pela Sociedade Brasileira de Herpetologia (SBH).
“O Brasil já é o país com o maior número de espécies de anfíbios conhecidas”, diz Marcus Thadeu Teixeira Santos, pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Biociências da Unesp Rio Claro e autor principal do artigo que relata a descoberta de C. serranegra. Santos diz que outras espécies aparentemente desconhecidas pela ciência, tanto de Crossodactylodes, quanto de gêneros relacionados, já foram identificadas durante a execução de seu projeto de pós-doutorado, e devem ser descritas em breve. Para Santos, as descobertas poderão contribuir para o conhecimento sobre a biodiversidade brasileira e para embasar ações de conservação.
As espécies do gênero Crossodactylodes estão distribuídas desde o sul da Bahia até o estado do Rio de Janeiro, ao longo de montanhas da Mata Atlântica e do ecossistema chamado de Campo Rupestre. A pesquisa que resultou na identificação de C. serranegra teve início em 2017, a partir da pesquisa de campo da bióloga Izabela Barata, da Universidade de Kent, em um trecho do Parque Estadual da Serra Negra. Durante o campo, Barata encontrou dois espécimes de sapo com uma coloração alaranjada nos dedos, e, após relatar a descoberta a Santos, houve a suspeita de que poderia se tratar de uma nova espécie. A descoberta, porém, não pode ser atribuída ao acaso ou à sorte. A bióloga trabalha com a elaboração de modelagem preditiva, e usou a ferramenta para identificar locais onde a ocorrência de espécies de Crossodactylodes poderia ser mais provável.
Em uma nova etapa de trabalho de campo, no início de 2018, pesquisadores da equipe coletaram espécimes adicionais para a realização de análises mais detalhadas. Análises genéticas do material trouxeram indícios de que realmente poderia se tratar de uma espécie de anfíbio ainda não descrita. “Com as análises que conduzi, essa hipótese se fortaleceu mais ainda, porque as diferenças genéticas do Crossodactylodes serranegra em relação a outras espécies do gênero são muito grandes”, comenta Santos.
A confirmação veio poucos anos depois a partir dos resultados das análises morfológicas, isto é, do estudo de estruturas presentes no corpo dos animais. “O estudo ficou parado por alguns anos, porque eu estava finalizando o doutorado, que envolvia outros tipos de análises”, diz Santos. “Depois, retornei e conduzi essa avaliação mais cuidadosa dos dados morfológicos. Consegui identificar uma série de características diagnósticas que são exclusivas da espécie”, diz. O pesquisador explica que, embora Crossodactylodes serranegra possua atributos também encontrados em outras espécies do mesmo gênero, ele identificou uma combinação exclusiva dessas características. “A coloração alaranjada dos dedos, além da presença de fendas vocais e odontóforos vomerianos, que são estruturas presentes na boca do animal, são algumas características que diferenciam a espécie”, diz Santos.
Coautor na descrição de C. serranegra e docente do IBB da Unesp, câmpus de Rio Claro, Célio Haddad explica que a avaliação de possíveis novas espécies envolve um conjunto de análises que vai do exame macroscópico ao sequenciamento de DNA do animal. “Usamos o conceito filogenético de espécie. São construídas árvores filogenéticas, que podem ser geradas tanto a partir de dados de base morfológica quanto a partir de sequências de diferentes genes, ou ainda empregando uma combinação de diferentes tipos de dados”, diz. “Essas técnicas permitem que hoje em dia seja mais fácil identificar essas linhagens e realizar estudos mais aprofundados.” Haddad acrescenta que outros tipos de dados, como a análise dos cantos das espécies (em anfíbios geralmente os machos cantam durante o período reprodutivo), dados comportamentais e do habitat das espécies podem ser usados para corroborar ou não a distinção das linhagens identificadas a partir das análises genéticas.
Críticas a uma visão utilitarista da natureza
O pesquisador critica também certa perspectiva utilitarista dos seres vivos, centrada apenas na ideia de que se pode obter de outras espécies, algum dia, algum produto ou processo que beneficie de alguma forma o ser humano.
Para Santos e Haddad, a descoberta e a descrição da nova espécie trazem contribuições para o conhecimento científico sobre anfíbios e sobre a biodiversidade brasileira que podem contribuir para a conservação. “Somente a partir da nomeação de uma espécie é que seu estado de conservação pode ser avaliado”, diz Haddad. E a nomeação é crucial para o desenvolvimento de políticas e ações de preservação no caso de espécies microendêmicas, como C. serranegra, uma vez que a degradação dos ambientes em que residem pode significar seu total desaparecimento.
“Com a degradação ambiental que ocorreu e que continua ocorrendo no Brasil, muitas espécies, não só de anfíbios, mas de animais, de plantas, de fungos, foram extintas antes de sabermos que elas existiam” diz Haddad. “Se sabemos que existe hoje microendemismo de anfíbios, plantas e outros animais, e que muito do que existiu na Mata Atlântica já foi destruído, podemos concluir que muitas espécies microendêmicas já foram extintas pela atividade humana, perdidas para sempre”, avalia.
E, com a extinção de tais espécies, perde-se também o conhecimento que poderia ser adquirido com o estudo delas. Haddad cita um exemplo. “Na Austrália, na década de 1970, descobriram uma espécie de rã em que a fêmea engolia os ovos. Ela punha os ovos no ambiente por fertilização externa, o macho ia embora e ela engolia os ovos. Os ovos, aos poucos, iam parar no estômago dela”, conta. Quando chegavam no estômago, os ovos liberavam uma substância que neutralizava a secreção de sucos gástricos. A liberação simplesmente impedia que a fêmea se alimentasse. Seu estômago vazio, então, podia ser usado como útero. “Os filhotes se desenvolviam. Quando ficavam grandes, a fêmea regurgitava os filhotinhos pela boca”, conta.
Esses relatos suscitaram interesse de pesquisadores das áreas médica e bioquímica pela espécie, uma vez que o estudo dessas substâncias eventualmente poderia contribuir para o desenvolvimento de medicamentos de doenças como gastrite, úlcera e câncer de estômago nos seres humanos. “Mas a Austrália também degrada muito seu ambiente natural. Quando os pesquisadores tentaram conduzir mais estudos sobre a espécie, constataram que já estava extinta. Ou seja, perdemos a informação sobre a substância química envolvida nessa inibição de secreção de suco gástrico”, diz Haddad.
O biólogo também lamenta que, na corrida entre os grupos que buscam conservar os ambientes naturais e aqueles que tiram seu sustento da exploração predatória, o avanço ocorre em velocidades diferentes. “Destruir um ecossistema é algo que pode ser feito muito rapidamente. Usando-se tratores, correntes e motosserra, é uma questão de semanas, apenas. Mas, para fazer um estudo bem-feito desse mesmo ecossistema, são necessários anos”, compara.
Imagem acima: o Crossodactylodes serranegra. Crédito: Marcus Thadeu Teixeira Santos