No dia 25 de janeiro de 2019, a barragem do complexo da Mina Córrego Feijão, pertencente à mineradora Vale, rompeu-se e despejou 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia do rio Paraopeba, em Minas Gerais. A avalanche de lama deixou 270 pessoas mortas, das quais 267 foram identificadas e três seguem desaparecidas, quatro anos depois. A identificação mais recente foi realizada em 20 de dezembro de 2022 e, até o momento, o Corpo de Bombeiros mantém as buscas por novos corpos. Numa outra esfera de investigação, um grupo interdisciplinar de pesquisadores busca entender quais foram os impactos do desastre sobre a qualidade da água e sedimentos da bacia do Paraopeba, e a possibilidade de uma eventual recuperação.
A barragem, localizada no município de Brumadinho, a 54 km de Belo Horizonte, destinava-se a acumular os rejeitos oriundos de uma mina de minério de ferro no ribeirão Ferro-Carvão. Com o rompimento liberou no ambiente o equivalente a aproximadamente 180 mil contêineres de metais, em forma de lama tóxica que contém elementos como ferro, manganês, alumínio, arsênio, chumbo e fósforo. No dia seguinte ao desastre social e ambiental, o Ibama multou a Vale em R$ 250 milhões. Quase dois anos depois, em fevereiro de 2021, a mineradora assinou um Termo de Compromisso de mais de R$ 37 bilhões em indenizações pelos danos causados. Os valores e detalhes do termo foram acertados entre a Vale, o Governo de Minas Gerais, o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública de Minas Gerais.
O acordo atribui à Vale a obrigação de recuperação ambiental e a execução de projetos socioeconômicos em Brumadinho e nos outros 25 municípios localizados na Bacia do Paraopeba que foram afetados. Um dos projetos desenvolvidos no âmbito desse acordo é o de proceder à pesquisa e ao monitoramento da qualidade da água e dos sedimentos no rio Paraopeba. Desde 2021, esta tarefa vem sendo conduzida por uma equipe que compreende docentes da Unesp, do Instituto Federal do Triângulo Mineiro e da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, de Portugal. Supervisionado pelo MP-MG e pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), o projeto tem como objetivo estimar o tempo necessário para que o rio Paraopeba retorne às condições prévias ao rompimento da barragem, além de compreender a dinâmica entre as chuvas, a vazão do rio e os rejeitos na qualidade da água.
Para realizar suas análises, o grupo de pesquisa recebe dados sobre a qualidade de sedimentos e da água periodicamente, retirados por funcionários do Igam e da Vale em 32 pontos de coleta distribuídos ao longo do rio, a partir do local da quebra da barragem. O grupo, então, organiza os resultados das análises e desenha uma visão holística da qualidade da água em diferentes pontos da bacia. Outro elemento metodológico relevante para as pesquisas é a diferenciação das análises conduzidas em períodos de chuva e períodos de seca, uma vez que a precipitação tem a capacidade de aumentar o nível e a força do rio, movimentando o sedimento do fundo e, consequentemente, os metais e rejeitos ali decantados.
Teresa Cristina Tarle Pissarra, docente do Departamento de Engenharia e Ciências Exatas, da Unesp, campus Jaboticabal, conta que o acordo prevê a publicação de aproximadamente 20 artigos apresentando análises da água e dos detritos. Até o momento, a equipe já desenvolveu cerca de 13 publicações, nos quais exploram diferentes características da qualidade da água, tanto superficial como subterrânea. “O que nós estamos fazendo é ciência de ponta-a-ponta porque pegamos dados, que são técnicos, e transformamos em resultados específicos sobre a qualidade da água após análises robustas”, conta Pissarra, que é uma das coordenadoras do projeto.
Sem uso da água por 250 km
Com 510 km de extensão, o rio Paraopeba é um dos principais afluentes do Rio São Francisco, um dos mais importantes cursos de água da América do Sul. Suas águas são utilizadas para abastecer um terço da cidade de Belo Horizonte e 48 municípios, além de servir de fonte de subsistência para comunidades ribeirinhas.
Fernando António Leal Pacheco, docente da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e um dos coordenadores do projeto que visa analisar a qualidade da água do Paraopeba, lembra que, mesmo antes do rompimento, o rio já destoava das conformidades da legislação vigente. A resolução 357/2005 do Conama define classes nas quais os corpos d’água devem ser enquadradas de acordo com a qualidade da água. Até 2018, o rio Paraopeba se encaixava na Classe 2, o que significa que suas águas poderiam ser utilizadas para abastecimento para consumo humano, após tratamento, e também para recreação, irrigação, aquicultura e pesca. Apesar disso, segundo o Índice de Qualidade da Água de 2018, publicado pelo Igam, o Paraopeba já apresentava pelo menos cinco parâmetros fora dos limites estabelecidos para que pudesse ser classificado como pertencendo à Classe 2.
“Há pelo menos 300 anos que se pratica mineração na bacia do Paraopeba. Então, parte da contaminação que já existia se deve à mineração, mas também à própria geologia do local”, diz Pacheco. No momento, ele atua como professor-assistente no Programa de Pós-graduação em Agronomia (Ciência do Solo), da Unesp, câmpus de Jaboticabal. Com a quebra da barragem, os rejeitos liberados desceram pelo ribeirão Ferro-Carvão, percorreram aproximadamente 10 km e chegaram até o rio Paraopeba, resultando em elevação dos níveis de metais presentes na água e, consequentemente, em intensificação das não-conformidades com a legislação.
“É preciso dizer que, em relação ao ferro e ao manganês, as não-conformidades aumentaram. O resultado é que, durante mais tempo, verifica-se que a água apresenta os valores desses metais acima dos limites estabelecidos”, diz Pacheco. Apesar disso, o Paraopeba continua a ser classificado na Classe 2. Porém, no Boletim Informativo Sobre a Qualidade da Água no Rio Paraopeba, de março de 2023, o Igam mantém a recomendação da não utilização da água bruta do rio no trecho entre Brumadinho e o município de Pompéu, que fica a aproximadamente 250 km de distância do rompimento.
Possibilidade de tratamento da água
Resultantes do processamento do minério na Mina Córrego Feijão, os rejeitos ricos em ferro e manganês acumularam-se na barragem B1 da Vale entre 1976 e 2016, em uma área de 27 hectares (o equivalente a aproximadamente 25 campos de futebol). Após a ruptura da barragem e a liberação dos rejeitos, uma parte seguiu o curso do ribeirão Ferro-Carvão, o que resultou na completa remodelação de suas margens e do formato do curso d’água, fazendo com que 2,8 milhões de metros cúbicos chegassem no rio Paraopeba. Já os outros 9 milhões de metros cúbicos permaneceram retidos no local da barragem, que se tornou o epicentro dos impactos sociais e ambientais.
No artigo Geochemistry and contamination of sediments and water in rivers affected by the rupture of tailings dams (Brumadinho, Brazil), publicado na revista científica Applied Geochemistry, os pesquisadores relatam os resultados de observações semanais, conduzidas ao longo de três anos, das manchas de rejeito, da água e da lama, e procuram compreender de que maneira a água do Paraopeba foi impactada e qual é a dinâmica da presença de contaminantes.
Como esperado, os achados apontaram um pico de metais como ferro, manganês, chumbo e fósforo logo após a quebra da barragem. A preocupação maior era com o chumbo, um elemento altamente tóxico e de caráter acumulativo. Porém, os pesquisadores constataram que os picos de presença do metal na água ocorreram apenas em 2019. Segundo os autores, isso ocorre porque o chumbo tende a prender-se a outros minerais, permanecendo imóvel nos sedimentos e rejeitos no fundo do rio. Após esse processo, desde 2020 o elemento não apresentou mais efeitos na água.
Atualmente, o elemento que mais contribui para a contaminação do rio é o manganês. Pacheco explica que isso ocorre porque o elemento apresenta alta mobilidade na água, o que permite que sua transferência dos rejeitos para o meio líquido. Isso ocorre tanto nos períodos secos, quanto nos de chuva. “Eu diria que a pegada do acidente é muito marcada pelo manganês. Felizmente não é um dos elementos mais tóxicos para o ambiente, para os seres humanos e para a fauna”, conta Pacheco.
Já o elemento ferro apresenta maior impacto durante os meses chuvosos. “Isso se dá porque a vazão da água consegue remobilizar os sedimentos e rejeitos do fundo do rio e, com isso, o ferro se solta dos minerais e passa para a água”, explica Pacheco. O pesquisador expõe que, de maneira geral, os minérios analisados têm como principais elementos o ferro e o manganês. Apesar de apresentarem algum grau de impacto, o grupo acredita que é possível removê-los a partir do tratamento da água, o que pode vir a permitir sua utilização. “Durante o período seco poderia haver a possibilidade de repor o abastecimento de água, se fosse feito o tratamento adequado. Isso, porém, ainda é impossível de ocorrer no período chuvoso, porque a tratabilidade da água não é garantida”, destaca o pesquisador.
Recuperação do rio é possível em uma década
Em 2021, com o início do projeto, um dos objetivos das pesquisas era fornecer uma estimativa de quando a qualidade da água do rio Paraopeba retornaria às condições pré-rompimento da barragem. No artigo Prognosis of metal concentrations in sediments and water of Paraopeba River following the collapse of B1 tailings dam in Brumadinho (Minas Gerais, Brazil), publicado na revista Science of The Total Environment um ano após o início das coletas e análises de dados, os pesquisadores chegaram à estimativa inicial de que essa recuperação levaria entre 7 e 11 anos.
Pissarra comenta que agora, com três anos de dados e pesquisas intensas, a intenção é encerrar o projeto com a publicação de um último artigo revendo os resultados encontrados. Quando questionada sobre a recuperação do rio, a pesquisadora é otimista. Ela acredita que ele voltará à condição de poder ser utilizado para consumo e recreação. Mas nunca voltará a ser o que era em 2019. “Por conta do ciclo hidrológico, a água é perpetuamente renovada por meio dos processos de precipitação, infiltração e deflúvio. Isso implica que a água do futuro jamais será igual a do passado. O rio, porém, voltará a apresentar condições compatíveis com o que está determinado pela legislação que monitora a qualidade dos recursos hídricos”, explica a pesquisadora.
Pacheco compartilha da opinião de que o rio poderá voltar a ser utilizado para abastecimento. Mas destaca que as análises que irão determinar quanto tempo será necessário para que esse cenário se concretize ainda estão em curso. “Não posso dizer se vai levar mais ou menos tempo do que estimamos em nosso primeiro artigo. Mas tenho certeza de que a nova estimativa trará uma resposta com menos incertezas, porque estamos desenvolvendo novos modelos de inteligência artificial que estão sendo alimentados com uma quantidade maior de dados”, conta.
Ele ressalta que, mesmo que o rio retorne às mesmas condições anteriores ao rompimento, o curso d’água continuará apresentando concentrações de ferro e manganês, que já se verificavam na água desde antes de 2019. O objetivo, portanto, é conseguir uma estimativa mais certeira de quando essas concentrações voltarão a níveis semelhantes aos que se encontram nas zonas que não foram impactadas. “Quando isso acontecer, podemos determinar que o rio entrou em uma zona idêntica ao pré-rompimento”, diz Pacheco. Os pesquisadores também pensam que, ainda que a qualidade da água possa ser restaurada em alguns anos, levará um tempo maior para remediar os impactos biológicos nos ecossistemas e habitats. “A fauna e flora que foram afetadas demandam um tempo de resposta de recuperação superior à mera qualidade da água. Isso ocorre porque, se retirarmos o rejeito, ele deixa de interagir com a água, logo sua qualidade vai se beneficiar. Entretanto, não é possível conduzir uma ação nesses termos em uma perspectiva ecossistêmica. Por isso, essa recuperação irá ocorrer de forma mais lenta”, diz Pacheco.
Foto acima: Trecho da bacia do Paraopeba em 27 de janeiro de 2019, após o rompimento da barragem. Vinícius Mendonça/Ibama/Wikimedia Commons