Docente da Faculdade de Medicina de Botucatu integra Comitê Internacional de Autenticação Celular

Deilson Elgui de Oliveira é o primeiro pesquisador da América Latina a fazer parte do grupo, que monitora contaminação e alteração de identidades genéticas de culturas celulares. Brasil é um dos cinco países cuja produção científica mais sofre com estes problemas.

Mais econômica, de fácil manipulação e controle, além de ser uma alternativa que substitui ou reduz a utilização de animais em pesquisa, a cultura de células é um modelo in vitro que permite manter as células vivas, porém não mais organizadas em tecidos e órgãos. Suas aplicações vão da área de pesquisa ao diagnóstico, principalmente em Biologia Celular e Molecular, Bioquímica, Virologia, Farmacologia, Toxicologia e Oncologia, entre outras.

Apesar das inúmeras vantagens que a cultura celular oferece em comparação aos modelos in vivo que utilizam animais de experimentação, o conhecimento produzido a partir da utilização de células cultivadas in vitro só ganha validade, e está apto a ser reproduzido, a partir da validação das linhagens celulares empregadas. O uso de culturas celulares contaminadas ou com identidade genética diferente do que se esperava compromete os resultados e a credibilidade da pesquisa realizada, além de disseminar informações equivocadas.

E esse é um grande desafio para a comunidade científica brasileira, já que o país figura entre os cinco maiores produtores de trabalhos científicos comprometidos pelo uso de linhagens celulares inadequadas. A preocupação com a qualidade das linhagens celulares empregadas na pesquisa faz parte da rotina de trabalho do biomédico e docente do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/Unesp), Deilson Elgui de Oliveira. Ele também coordena e é o investigador principal do Grupo de Estudos em Carcinogênese Viral e Biologia dos Cânceres, instalado no Instituto de Biotecnologia (IBTEC) da UNESP.

Deilson Elgui

“Meu grupo há bastante tempo já trabalha com questões relacionadas à qualidade do dado científico de uma maneira bastante cuidadosa. Nós fomos sensibilizados para a questão da validação da identidade genética das linhagens celulares muito precocemente. Implementamos na nossa rotina a identificação genética das células que utilizamos e ficamos muito atentos também aos trabalhos nos quais nos apoiamos para o desenvolvimento de nossa pesquisa”, afirma.

O interesse pelo tema surgiu a partir de sua preocupação com a qualidade na produção de pesquisa. Em determinado momento de sua carreira, o pesquisador passou a se utilizar sistematicamente da cultura celular e percebeu que são poucos os laboratórios que avaliam a identidade genética das linhagens que empregam em seus estudos. “A busca pelo aperfeiçoamento desse aspecto da pesquisa, garantindo que aquilo que você está utilizando é o que realmente buscava, é algo que nos sensibilizou muito cedo, assim que começamos a trabalhar com essas linhagens de maneira mais intensa. A necessidade de aperfeiçoar a qualidade dos estudos nos causa preocupação porque visamos excelência na qualidade das pesquisas produzidas na Universidade.”

ICLAC

A publicação de um alerta para a situação de linhagens celulares comprometidas derivadas do carcinoma de nasofaringe na Ásia propiciou o pesquisador estabelecer um primeiro contato com o Comitê Internacional de Autenticação Celular (ICLAC), entidade formada por pesquisadores em todo o mundo e responsável por um banco de dados das linhagens celulares comprometidas identificadas em trabalhos publicados na literatura. Em linhas gerais, a missão do ICLAC é contribuir para que laboratórios em todo mundo produzam resultados fidedignos a partir do uso de linhagens celulares para pesquisa científica e desenvolvimento biotecnológico nas diferentes áreas do conhecimento.

Grupo monitora contaminação e alteração de identidades genéticas de culturas celulares usados em estudos. Brasil é um dos cinco países cuja produção científica mais sofre com estes problemas.

Deilson Elgui inicialmente se colocou à disposição para colaborar voluntariamente com o ICLAC, mas logo o Comitê o convidou para compor o grupo na condição de membro efetivo, tornando-se o primeiro pesquisador da América Latina a receber essa distinção. “Em agosto de 2021 iniciei minhas atividades. O grupo entendeu que ter um pesquisador da América Latina sensibilizado com essa causa tem papel estratégico para que o problema do comprometimento de linhagens celulares possa ser mitigado na região, de forma a elaborar estratégias para que a qualidade dos trabalhos científicos seja aperfeiçoada, com a disseminação da cultura de autenticação da identidade genética das células aqui utilizadas”, acrescenta.

Segundo o pesquisador, o ICLAC trabalha para estabelecer um conjunto de diretrizes que sejam mais facilmente entendidas pela comunidade e orientadas em três frentes principais: a primeira é a questão educacional, sensibilizando a comunidade como um todo para entender a importância de se utilizar linhagens celulares validadas e fidedignas em relação as suas propriedades genéticas e fenotípicas. A segunda é dada pela instrumentalização dos periódicos científicos de tal maneira que as revistas efetuem crivo dos trabalhos recebidos para verificar se estão cumprindo cuidados mínimos para garantir a fidelidade dos resultados baseados em cultura de células. E a terceira frente é dada pela contribuição com as instituições de fomento à pesquisa, de modo que tenham condições de discernir dentre os projetos submetidos para financiamento aqueles que estão subsidiados no emprego de boas práticas de pesquisa também no que se refere ao emprego adequado de modelos in vitro baseados em cultura de células.

O ICLAC tem uma extensa e importante agenda para 2023. O Comitê atualmente trabalha na revisão de todos os materiais disponíveis em seu website e há expectativa de publicação de artigo em periódico internacional de prestígio com orientações sumarizadas sobre as informações fundamentais para reportar resultados baseados no emprego de linhagens celulares. Assim, espera-se que já na etapa de delineamento dos estudos os pesquisadores consigam estabelecer as estratégias adequadas para garantir a validade genética e fenotípica das células empregadas e tenham subsídios para a escolha dos melhores modelos para seus experimentos.

O ICLAC também incentiva os pesquisadores, ao identificarem um problema relacionado ao uso de cultura celular no âmbito de seus estudos, a compartilharem essa informação com a comunidade. “É habitual, em nossas reuniões científicas, entrarmos em contato com trabalhos que têm uma série de informações potencialmente úteis, mas que estão comprometidas por algum aspecto metodológico. O emprego de linhagens celulares é um deles. Hoje existem ferramentas para que possamos reportar esses estudos comprometidos e é importante que a comunidade faça o controle de qualidade pós-publicação dos trabalhos científicos que estão aí. Isso alimenta comitês especializados como o ICLAC, e permite que a comunidade tenha consciência de quais são os modelos mais apropriados para o uso, quais devem ser evitados e quais podem ser utilizados com restrição”, destaca Elgui.

O professor da FMB ressalta que o papel do pesquisador não se encerra com a produção de resultados e a publicação do material em um periódico. Também se estende à manutenção da qualidade do conhecimento dos dados produzidos para que a ciência evolua e evitando que recursos sejam empenhados em modelos que não são confiáveis. E faz um alerta aos pesquisadores mais experientes. “Eles devem ficar atentos quando são solicitados para revisar artigos e verificar se os autores estão oferecendo as informações necessárias para garantir que as linhagens celulares estão sendo utilizadas adequadamente. As revistas de maior prestígio pedem isso de imediato, na submissão. Mas muitas ainda deixam a cargo dos revisores. Minha impressão como membro do corpo editorial de algumas revistas é que boa parte dos revisores não coloca isso como um ponto fundamental para sequer olhar os resultados adiante. Socializando essa responsabilidade tenho certeza que vamos conseguir avançar muito.”

Desafio

Ter o Brasil entre os cinco maiores produtores de trabalhos científicos comprometidos por linhagens celulares comprometidas dá uma dimensão do tamanho do desafio que se tem no país para poder inserir esse tema na pauta das prioridades. Deilson Elgui é cético quanto à possibilidade de reversão desse quadro a curto prazo. “Não acredito que seja possível reverter essa posição, mas podemos reduzir substancialmente a produção de artigos comprometidos. A cultura de produção de resultados no Brasil precisa ser aperfeiçoada em vários aspectos no que diz respeito às boas práticas científicas. A formação é o ponto central para que, num período de médio prazo, possamos perceber um impacto efetivo e tenhamos uma posição muito mais confortável em relação à qualidade dos resultados produzidos.”

Entre os fatores que dificultam que o país avance, o pesquisador aponta o incentivo à publicação de um grande número de trabalhos sem a preocupação com a qualidade e real contribuição dos resultados produzidos. “Nós vivemos uma crise da qualidade do conhecimento científico produzido em todo o mundo. Existem dados demonstrando que uma parcela muito substancial dos resultados publicados não são reprodutíveis. Modificar esse panorama é um trabalho hercúleo que, como vários outros problemas em nosso país, começa a ser resolvido a partir da educação, com a formação de profissionais de excelência e que entendam como fundamental as boas práticas. Só assim será possível mudar.”

Questionado sobre a forma como a Unesp, e em especial a Faculdade de Medicina, tem discutido a produção de trabalhos científicos comprometidos pelo uso de linhagens celulares inadequadas, o docente defende que haja um processo de sensibilização junto à comunidade acadêmica, liderado pela Pró-reitoria de Pesquisa. Com a tendência de os periódicos adotarem uma postura mais rigorosa para publicações, e os organismos de fomento como FAPESP e CNPq condicionarem o cumprimento de boas práticas de pesquisa à aprovação de projetos, a Universidade deve se preparar para os reflexos que essas mudanças trarão para o meio científico.

Um dos objetivos do grupo de pesquisa coordenado por Deilson Elgui é criar as condições para que o IBTEC ofereça o serviço de autenticação celular. “Temos feito como cortesia em algumas ocasiões pela baixa demanda. Mas à medida que as pessoas vão se sensibilizando, mais essa necessidade vai se demonstrando e aí podemos auxiliar os grupos na implementação e da autenticação em seu próprio laboratório ou disponibilizarmos esse serviço como rotina. Vejo que tanto nas unidades do nosso campus quanto na Unesp de maneira geral ainda não existe uma estratégia de sensibilização dos grupos de pesquisa para a importância da autenticação de linhagens celulares e não há prestação de serviço de identificação genética disponível para a comunidade. Assim, penso que ainda há um bom caminho longo a se trilhar para que essa questão esteja suficientemente equacionada na Universidade, para garantia da qualidade dos trabalhos produzidos em nossos laboratórios”.

Segundo o pesquisador, é preciso investir na capacitação de recursos humanos, desde os estudantes de iniciação científica até os pesquisadores mais experientes. É premente trabalhar de forma coordenada para que as gerações atuais e futuras de pesquisadores tenham maior subsídio da importância e alcance das boas práticas em pesquisa, de modo que estejam efetivamente incorporadas ao seu dia a dia. “Esse deve ser um elemento básico no repertório de formação do indivíduo: atentar para a qualidade de todos os insumos e modelos empregados nos experimentos, incluindo as linhagens celulares”, conclui.

Imagem acima: Deposit Photos.