“Não temo quebrantos porque eu sou guerreira”: o legado de Clara Nunes

Quatro décadas depois do falecimento precoce da cantora mineira, historiadora mapeia trajetória da artista, que celebrizou-se tanto por seu talento musical quanto por sua mensagem contra a intolerância religiosa e de valorização das raízes afro-brasileiras.

“Se vocês querem saber quem eu sou, eu sou a tal mineira. Filha de Angola, de Ketu e Nagô. Não sou de brincadeira. Canto pelos sete cantos, não temo quebrantos porque eu sou guerreira. Dentro do samba eu nasci, me criei, me converti. E ninguém vai tombar a minha bandeira.”

Neste mês de abril de 2023, os fãs lembram os 40 anos da morte de Clara Nunes, reconhecida como uma das maiores cantoras e intérpretes do Brasil e também uma das pioneiras no uso da arte no combate à intolerância religiosa. Os versos iniciais da música “Guerreira” (Paulo César Pinheiro e João Nogueira) introduzem bem o perfil da cantora. Nascida em Paraopeba, MG, e radicada no Rio de Janeiro, Clara deixou um legado cultural que continua em destaque, tanto por sua música como pela relação com as matrizes de culturas africanas. Ela falou de liberdade e lutou contra o racismo religioso em uma época em que o tema quase não era debatido em nossa sociedade. Clara parecia estar à frente do seu tempo. Talvez por este motivo, mesmo 40 anos depois da sua morte suas músicas continuam atuais, e servem de inspiração para inúmeros artistas contemporâneos.

Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, ou Clara Nunes, foi a sétima filha do casal Manuel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes. Cresceu em ambientes humildes: seu pai era marceneiro na fábrica de tecidos Cedro & Cachoeira, conhecido como “Mané Serrador”, e também violeiro e participante das festas de Folia de Reis. Manuel faleceu vítima de atropelamento em 1944, e sua esposa entrou em depressão e faleceu de câncer em 1948. Aos seis anos, Clara já era órfã de pais, sendo criada por sua irmã Maria, apelidada de Dindinha, e por seu irmão José, conhecido como Zé Chilau. Nessa época Clara participava de aulas de catecismo na matriz da Cruzada Eucarística, e cantava ladainhas em latim no coro da igreja.

Clara cresceu ouvindo cantoras como Carmem Costa, Ângela Maria e, principalmente, Elizeth Cardoso e Dalva de Oliveira, das quais reconheceu a influência. No entanto, desenvolveu um estilo próprio. Em 1952, ainda menina, venceu seu primeiro concurso de canto, realizado em sua cidade, interpretando “Recuerdos de Ypacaraí”. Como prêmio, ganhou um vestido azul. Aos 14 anos, para ajudar no sustento do lar, Clara ingressou como tecelã na fábrica Cedro & Cachoeira, a mesma para a qual seu pai havia trabalhado.

Devido a motivos pessoais, em 1957 teve que se mudar para Belo Horizonte. Na capital mineira, trabalhava como tecelã em uma fábrica de tecidos durante o dia, e aos finais de semana participava dos ensaios do coral da igreja, no bairro Renascença, onde vivia com os irmãos, primos e tios. De forma natural, acabou se afastando do catolicismo e começou a frequentar centros espíritas de mesa branca, e converteu-se ao Kardecismo. Naquela época, conheceu o violonista Jadir Ambrósio, conhecido por ter composto o hino do clube do Cruzeiro. Admirado com a voz da jovem, Jadir levou Clara a vários programas de rádio, como o “Degraus da Fama”, nos quais ela se apresentava com seu nome de batismo, Clara Francisca.

Carreira profissional

No início da década de 1960, conheceu Aurino Araújo (irmão do cantor da jovem guarda  Eduardo Araújo), que a levou para conhecer muitos outros músicos e artistas e também se tornou seu namorado. Por influência do produtor musical Cid Carvalho, adotou o nome artístico de Clara Nunes, utilizando o sobrenome da mãe.

Em 1960, já usando o nome de Clara Nunes, venceu a etapa mineira do concurso A Voz de Ouro ABC, com a música “Serenata do Adeus”, composta por Vinicius de Moraes e gravada anteriormente por Elizeth Cardoso. Na final nacional do concurso realizado em São Paulo, obteve o terceiro lugar com a canção “Só Adeus” (de Jair Amorim e Evaldo Gouveia).

A partir daí, começou a cantar na Rádio Inconfidência de Belo Horizonte. Devido aos compromissos profissionais na área musical e as constantes viagens, deixou o emprego na fábrica de tecidos e também o colégio. Durante três anos consecutivos foi considerada a melhor cantora de Minas Gerais. Ela também passou a se apresentar como crooner em clubes e boates da capital mineira e chegou a trabalhar com o então baixista Milton Nascimento — àquela altura conhecido como Bituca.

Naquele período, fez sua primeira apresentação na televisão, no programa de Hebe Camargo em Belo Horizonte. Em 1963, ganhou um programa exclusivo na TV Itacolomi, chamado “Clara Nunes Apresenta” e exibido por um ano e meio. No programa se apresentavam artistas de reconhecimento nacional como Altemar Dutra e Ângela Maria dentre outros.

Viveu em Belo Horizonte até 1965. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro em busca de novas chances profissionais na carreira artística. Já no Rio, passou a apresentar-se em vários programas de televisão, tais como José Messias, Chacrinha, Almoço com as Estrelas e Programa de Jair do Taumaturgo. Antes de aderir ao samba, cantava especialmente boleros. Além de emissoras de rádio e televisão, ela também se apresentava em escolas de samba, clubes e casas noturnas do subúrbio carioca, onde acabou conhecendo terreiros de religião de matriz africana, optando por deixar o kardecismo e converter-se ao Candomblé.

Ainda em 1965, Clara passou num teste como cantora na gravadora Odeon e registrou pela primeira vez a sua voz em um LP. No ano seguinte, foi contratada por este selo. Naquele mesmo ano, foi lançado o primeiro LP oficial da cantora, “A Voz Adorável de Clara Nunes”.

Devido à insistência da Odeon Records para que ela interpretasse músicas românticas, Clara apresentou neste álbum um repertório de boleros e sambas-canção, mas o LP foi um fracasso comercial. Em 1968, gravou “Você Passa e Eu Acho Graça”, seu segundo disco na carreira e o primeiro onde cantaria sambas. A faixa-título (Ataulfo Alves e Carlos Imperial) foi seu primeiro grande sucesso radiofônico.

Uma identidade criada


Tânia Costa Garcia, especialista em história, música e cultura popular e professora do câmpus da Unesp em Franca, aponto alguns elementos fundamentais na formação da artista e em sua trajetória.

“Em linhas gerais, a carreira da cantora Clara Nunes está muito integrada ao que a gente chama de MPB, esse grande guarda-chuva. Originalmente o tipo de música que Clara Nunes grava é a música romântica, algo que para nós hoje estaria muito próximo da chamada música brega. Ela grava músicas mais ou menos no estilo do que a gente denominaria do repertório de Waldick Soriano, incluindo boleros e músicas afrancesadas. Ela estava tateando em busca de um estilo, de um gênero que pudesse se identificar mais e melhor com a sua identidade. Ela estava construindo a sua identidade, e fez isso também por meio da música.”

De acordo com a historiadora da Unesp, um momento importante da carreira de Clara Nunes se deu quando ela começou a se aproximar do samba. “Em 1968, ela vai gravar um samba do Ataulfo Alves que a gente sabe que é um compositor importantíssimo. Ele tem mais de 300 composições gravadas e foi alguém que conseguiu projeção em um momento muito difícil, em que ser compositor de samba nem sempre significava alcançar sucesso nos meios de comunicação”, conta.  Nesse momento, o Ataulfo também estava bastante esquecido. Ele monta uma parceria com o Carlos Imperial e compõe justamente essa canção (“Você Passa e Eu Acho Graça”), que Clara iria gravar.

Essa parceria entre o Ataulfo e o Imperial também guarda uma curiosidade. O Carlos Imperial da Jovem Guarda acreditava que, assim como os bambas da MPB estavam trazendo figuras como Clementina de Jesus, Cartola e Nelson Cavaquinho para dentro da música popular brasileira, a Jovem Guarda deveria fazer o mesmo. Clara gravou essa canção em um disco compacto que trazia de um lado esse samba e do outro “O Vento e Rosa”, um samba de Assis Valente, também um compositor importante da história do samba, dos mais gravados pela nossa saudosa Carmem Miranda. Em 1969, ela vai gravar ‘Pra que obedecer’ do Paulinho da Viola, ‘Encontro’ do Elton Medeiros e mais canções do Ataulfo e do Carlos Imperial. Desde então, Clara se aproxima muito desse gênero”.

Segundo Tânia, Clara inicia seu sucesso popular mais amplo a partir de 1971 e vai se projetando cada vez mais, alcançando vendas expressivas de álbuns no decorrer da década de setenta.

“Até o início da década de 70 a carreira da Clara ainda não havia decolado de forma definitiva. Foi então que adentrou sua vida o radialista Adelzon Alves, com a proposta de associar definitivamente o canto da Clara ao samba e às raízes da cultura popular brasileira. Então, na capa do disco de 1971 (“Clara Nunes”), Adelson Alves escreve um texto contextualizando um pouco esse seu trabalho. A estratégia, inclusive, incluía a aproximação de Clara das escolas de samba. A Portela acolheu tremendamente a cantora e é interessante como essa jogada de marketing acaba também construindo uma identidade, uma personalidade para Clara Nunes. Ela acabou  se aproximando cada vez mais da Umbanda, do Candomblé, e adotando roupas muito próximas às dessas religiões, que remetiam à cultura e à religiosidade africanas. Dessa forma, ela vai encontrando, nesse espaço entre o samba e a MPB, uma referência poderosa para a construção da sua carreira como uma das maiores e melhores intérpretes da chamada Música Popular Brasileira.”


Nesse período, Clara Nunes é a cantora com maior número de discos vendidos no Brasil, ultrapassando a faixa que vai de 400 mil a 600 mil LPs. E derruba um tabu segundo o qual mulheres não vendiam discos. Durante toda a sua carreira, vendeu cerca de quatro milhões e quatrocentos mil discos. Conhecida também como “A Guerreira”, “Sabiá” e “Mestiça Mística”, Clara se tornou também uma pesquisadora da música popular brasileira, de seus ritmos e de seu folclore. Viajou  inclusive para muitos países, representando a cultura do Brasil e alçando popularidade internacional. Conhecedora das músicas, danças e das tradições africanas, ela fez das suas crenças e formações culturais uma filosofia de vida.

Entre 1975 e 1983, Clara foi casada com o compositor Paulo César Pinheiro, autor de inúmeros hits gravados por ela. Dentre suas inúmeras canções que se tornaram populares estão: “Canto das Três Raças”, “O Mar Serenou”, “A Deusa dos Orixás”, “Guerreira”, “Conto de Areia”, “Morena de Angola”, entre muitos outros. Ao longo de uma carreira vitoriosa, a  mineira gravou 16 álbuns de estúdio, dezenas de compactos simples e uma coletânea. Após seu falecimento em 1983, cerca de doze coletâneas foram lançadas, além de sete tributos e um DVD.


Em 1983, o falecimento

Em 5 de março de 1983, submeteu-se a uma aparentemente simples cirurgia de varizes, porém, acabou tendo uma reação alérgica a um componente do anestésico. Clara sofreu uma parada cardíaca e permaneceu durante 28 dias internada na UTI da Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro. Neste ínterim, a cantora foi vítima de uma série de especulações que circulavam nos meios de comunicação sobre sua internação. Entre elas estavam inseminação artificial, aborto, tentativa de suicídio, uso de drogas e violência doméstica. Todas eram falsas. Na madrugada de 2 de abril de 1983, prestes a completar 41 anos, foi declarada morta em razão de um choque anafilático. A sindicância aberta pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro na época foi arquivada, o que gerou por muitos anos suspeitas sobre as causas da morte da cantora. O corpo da cantora foi velado por mais de 50 mil pessoas na quadra da escola de samba Portela. O sepultamento no Cemitério São João Batista foi acompanhado por uma multidão de fãs e amigos.

Para a docente da Unesp, o legado de Clara é muito presente na música brasileira. “Eu acho que a Clara é uma daquelas artistas que deixam um legado enorme. Após a sua morte física, ela continua vivendo na paisagem sonora brasileira e nos corações de um fã-clube enorme que ela construiu nos seus anos de carreira.Eu diria que a Vanessa da Mata tem se aproximado muito da Clara, tem se inspirado nela. Inclusive recentemente, montando um espetáculo em homenagem à Clara, a performance da Vanessa está muito próxima. Acho que ela também quis construir essa aproximação não só no visual, mas também em termos de performance de voz, dialogando com essa herança nossa das grandes intérpretes da música popular brasileira, ligada sobretudo a essa música mais de raiz, especificamente o samba.”

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.

Imagem acima: divulgação/TV Globo