No rastro do mico-leão-preto

Equilibrando cadernos, equipamentos eletrônicos e facões, primatólogos correm em meio a mata fechada, em jornadas exaustivas, para registrarem estilo de vida de grupo de micos-leões. Pesquisa já alcançou repercussão internacional ao documentar uso de ferramenta por esses animais.

Caminhar pelo interior de uma mata tropical durante o verão é uma atividade desgastante. Ainda que a sombra das copas das árvores sirva como proteção contra a luz do sol, a umidade liberada pelas plantas torna o ambiente muito próximo de uma estufa. Bastam 30 minutos de caminhada para que a camiseta fique tomada de suor. O deslocamento também é difícil. Estamos em março, e as chuvas que caíram durante o verão estimularam o crescimento de mudas de árvores, plantas forrageiras e cipós espinhosos que atrapalham a travessia pela mata. Foi neste ambiente algo inóspito que a reportagem do Jornal da Unesp passou dois dias acompanhando as atividades de campo de uma equipe de pesquisadores do câmpus de Rio Claro. O grupo estuda os micos-leões-pretos, uma espécie endêmica do estado de São Paulo em risco de extinção. Para acompanhar e registrar cada detalhe da rotina dos primatas caminham cerca de oito horas diárias dentro da mata fechada, arregimentando dados sobre o deslocamento dos animais e sobre a área em que eles vivem: um fragmento de floresta de 100 hectares localizado na área rural do município de Guareí, no interior de São Paulo.

“Acho que você escolheu o pior campo para acompanhar em uma reportagem”, diz Felipe Bufalo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Evolução e Biodiversidade nos Instituto de Biociências da Unesp, em Rio Claro. “Trabalhar com micos é muito exaustivo porque eles são animais superativos e o pesquisador precisa acompanhar do solo tudo que os bichos estão fazendo. É preciso fazer anotações e, ao mesmo tempo, abrir a mata com facão”, diz. O grupo de pesquisa que ele integra é liderado pela professora Laurence Culot, que está à frente do Laboratório de Primatologia na mesma unidade.

Estudos com esses animais são relativamente recentes. Até meados da década de 1970, o mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus) era tido como extinto. A descoberta e a descrição da espécie aconteceram ainda no início do século 19, mas a ausência de registros depois de 1905 gerou a crença de que esses micos tivessem desaparecido. Foi em 1970, entretanto, que Adelmar Faria Coimbra-Filho, célebre biólogo e primatólogo brasileiro, encontrou três indivíduos na Reserva Estadual do Morro do Diabo, no oeste do estado em São Paulo. Isso renovou o interesse pela espécie, mas ela ainda é pouco compreendida por parte dos especialistas, principalmente no que diz respeito às suas interações ecológicas. Este é o foco dos estudos do grupo de Rio Claro.

Uma espécie em perigo

Os micos-leões-pretos, assim como seus “primos” mico-leão-dourado, mico-leão-da-cara-preta e mico-leão-da-cara-dourada, ocorrem apenas na Mata Atlântica, o mais devastado dos biomas brasileiros. A devastação é precisamente o motivo que colocou estes animais nas listas de risco de extinção. No caso do mico-leão-preto, seu habitat se localiza ao longo da bacia hidrográfica do rio Paranapanema, área hoje intensamente ocupada pela produção agropecuária e pelo crescimento urbano. Não à toa, a espécie é classificada como “em perigo” pela Lista Vermelha da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais). Sua população é estimada em aproximadamente 1.600 indivíduos, dos quais 80% habitam o Morro do Diabo e os demais estão distribuídos por dezenas de fragmentos florestais pelo estado de São Paulo.

O fragmento que a reportagem do Jornal da Unesp visitou vem sendo campo para os estudos dos pesquisadores desde 2015. As pesquisas se iniciaram por meio de um auxílio Jovem Pesquisador concedido pela Fapesp à Culot. Atualmente, ela desenvolve a segunda fase do projeto, que é um tema guarda-chuva para uma série de pesquisas de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado.

Pesquisadoras caminham pela floresta em Guareí-SP

A principal missão dos pesquisadores durante os dois dias de campo que a reportagem do Jornal da Unesp os acompanhou foi a captura de Caetano, um dos micos que vive no fragmento. Caetano, cujo nome revela a preferência musical dos pesquisadores, carrega nas costas uma mochila com GPS e acelerômetro contendo dados sobre seu deslocamento e consumo energético, numa espécie de Apple Watch para micos. As informações vão ser importantes para o projeto de Felipe Bufalo, que busca entender os aspectos cognitivos e comportamentais que pautam as decisões dos micos-leões-pretos no que diz respeito à seleção de recursos e escolha de deslocamentos. “Quero entender o que os micos escolhem comer diante do que está disponível. Como eles diversificam a dieta? Nessa diversificação, eles consideram a disponibilidade de nutrientes? Quais? O projeto tem esse foco nutricional ligado à ecologia do movimento”, explica.

Quando não estão dentro da floresta, os pesquisadores ficam hospedados em um dormitório de madeira construído por eles mesmos, no terreno de uma casa a cerca de 10 quilômetros da mata. Ali, além de um quarto aconchegante com beliches e banheiro, existe uma bancada para manusear equipamentos e amostras dos animais com maior segurança. O terreno, cedido por um casal de moradores, possui ainda uma casa simples, com cozinha para preparar as refeições e dois quartos, que vez por outra recebem um repórter intrometido. O entorno tem a típica aparência de roça do interior, cercada por um pasto amplo com bois, vacas, cavalos e uma vasta diversidade de cantos de aves que inauguram a manhã.

O acesso da casa até o fragmento de floresta é feito por uma estrada de terra castigada pelo volume de chuvas que caíram na região durante o verão. Nos dois dias de campo, entretanto, a reportagem foi brindada com belos dias de sol. A sorte de principiante também vale para jornalistas. “Já tivemos situações em que a nossa picape atolou e nós tivemos que ser rebocados pelo trator dos fazendeiros vizinhos”, lembra  Laura Azambuja Gonçalves, ecóloga e bolsista do programa de aperfeiçoamento técnico da Fapesp, que assumiu a direção do veículo que nos levou para o primeiro dia de incursão na mata.

Uma ilha de mata

Ao se aproximar do fragmento de floresta em que vivem os micos é possível observar um entorno formado por culturas de soja, cana-de-açúcar, eucalipto e um vasto pasto para poucas cabeças de gado. A aparência é de uma ilha de mata em meio a um oceano de monoculturas.

Antes de adentrar a mata, busca pelo sinal emitido pelo equipamento transportado pelo mico Caetano

Antes de entrar na mata, os pesquisadores tiram da mochila um equipamento de radiotelemetria formado por um receptor e uma antena. Alguns micos presentes na mata portam pequenos colares, que foram previamente instalados pelos pesquisadores, e que são capazes de emitir um sinal analógico captado pelo equipamento. Mariana Breziski, bióloga e mestranda do Programa de Pós-Graduação de Ecologia, Evolução e Biodiversidade do câmpus de Rio Claro, explica que a localização indicada pelo aparelho, embora não seja tão precisa, é eficiente para indicar qual a parte do fragmento por onde os pesquisadores devem entrar. Além de Mariana e Laura, estiveram presentes nas atividades Catarina Ferraz Cibim, bióloga e mestranda pelo mesmo programa, e Rodrigo Gonçalves Amaral, médico-veterinário e mestrando do programa.

O recurso da radiotelemetria ajuda para longas distâncias, mas, quando já estamos dentro da mata e os animais estão próximos, é preciso ter um olhar apurado para identificar movimentos na copa das árvores e ouvidos treinados para distinguir a vocalização dos micos do canto dos pássaros e ruídos da mata. Todos fazemos silêncio e, uma vez que o grupo de micos é localizado, começa o exercício de acompanhá-los pela mata, o que exige inclusive deslocamentos fora das trilhas que cortam o fragmento. “Afinal, não existe trilha na copa das árvores”, lembra Rodrigo Amaral.

Amaral, assim como os demais pesquisadores, se desloca com facilidade pelo terreno entre troncos, galhos, folhas e cipós. As roupas ajudam na proteção: além de galochas que protegem de possíveis picadas de cobras, os pesquisadores vestem calças e camisas de tecido grosso que protegem de galhos, espinhos e folhas que podem causar alguma alergia. Rádios para a comunicação dos pesquisadores dentro da floresta e um facão para abrir caminho também são itens obrigatórios.

Médico-veterinário, Amaral costuma ficar incumbido da captura dos micos – inclusive de Caetano. A captura pode ser feita de duas formas: a “mais fácil” é quando os primatas adormecem em grupo dentro do oco de alguma árvore. Neste caso, basta escalar alguns metros da árvore e retirar o mico de dentro do tronco, aproveitando a sonolência dos animais. A segunda exige seguir o grupo mata adentro e aproveitar uma das poucas oportunidades em que os micos descem próximos do solo para fazer a captura. Para isso, Amaral usa uma vareta dotada de um laço na extremidade. Como não tivemos a sorte de encontrar os micos dormindo no oco da árvore, o jeito foi segui-los pela mata à espera de uma oportunidade de captura no laço.

Ao final do primeiro dia, após horas de caminhada, Caetano e seus companheiros ignoraram o oco das árvores e dormiram entre lianas (conjunto de cipós) no topo das árvores, outra preferência de dormitório dos micos. Assim que foram dormir, os pesquisadores marcaram a árvore com uma fita e anotaram a espécie. Saber onde os animais costumam dormir é uma informação importante porque, além dos dados de deslocamento e consumo energético presentes na “mochila” de Caetano, o projeto de pesquisa também envolve a realização de um raio-x do fragmento em que vivem os animais. Isso permite conhecer em detalhes a disponibilidade de recursos naturais no fragmento, e entender como esses recursos se relacionam com as decisões tomadas pelos micos ao longo de seus deslocamentos.

Grupo de micos-leões-pretos monitorado enquanto se deslocam pelas árvores

Marcar e anotar as espécies de árvores em que os micos dormem faz parte desse procedimento de raio-x. Também são registradas as árvores que fornecem alimentos para eles. Até o momento, os pesquisadores já assinalaram mais de 500 árvores que serviram de fonte de alimentação, e outras 60 que, em algum momento, foram usadas como dormitórios. Esse entendimento dos recursos da floresta inclui ainda o monitoramento de 45 parcelas botânicas de 30m x 10m dentro do fragmento, que somam mais de duas mil árvores. Entre outras medições, os pesquisadores registram as espécies vegetais que ocorrem ali e a circunferência dos caules. Mais uma vez, tudo para estimar a diversidade de recursos disponíveis no terreno. “Coletamos os frutos dessas árvores e os enviamos para análise para conhecer seu teor nutricional. Queremos saber se a tomada de decisão dos micos considera os nutrientes dos frutos, por exemplo. Se, em dias de longos deslocamentos, eles preferem alimentos mais calóricos ou se no frio priorizam frutos mais gordurosos”, diz Bufalo. Ele explica que existem outros fatores que poderiam influenciar a rota dos micos, como a presença de outros grupos e, claro, a borda do fragmento.

O segundo dia de campo na cola dos micos começou às 9h da manhã, horário em que eles estão acordando. Ao longo do dia foi possível notar que por diversas vezes os micos pararam para se alimentar. Isso deixa claro que, de fato, a disponibilidade de alimento é um fator importante a influenciar a tomada de decisão dos primatas. Uma fruta em especial manteve o grupo por quase uma hora na mesma árvore comendo: era o araticum-do-mato, uma versão mais “rústica” da atemoia. Animais ativos que são, os micos chegam a se deslocar quase dois quilômetros por dia no fragmento de Guareí, segundo dados obtidos pelos próprios pesquisadores. Em florestas maiores, esse número pode chegar a três quilômetros. A longa pausa para a alimentação de Caetano e sua turma foi algo raro, e uma excelente oportunidade de descanso para nós – pesquisadores e repórter – fazermos também a nossa refeição. Não tão saudável como uma fruta colhida do pé, mas um lanche com queijo e tomate e biscoitos de água e sal, degustado como um banquete.

Hora de dispersar sementes

Enquanto comíamos sob a copa das árvores em que estavam os micos era possível ver e ouvir uma chuva de sementes da fruta caindo sobre o solo. Esta é precisamente uma das funções ecológicas mais importantes dos micos-leões-pretos: a dispersão de sementes. Por terem a capacidade de viver em pequenos fragmentos, percorrer grandes distâncias e possuir uma dieta composta por 70% de frutas, em muitos lugares, como o fragmento de Guareí, os micos são os últimos dispersores de sementes de tamanho médio. As aves, que também executam essa função, dispersam sementes pequenas, em geral associadas a espécies de árvores também menores.

O acompanhamento dos micos em campo pelos pesquisadores termina quando os animais vão dormir, por volta das 17h30. Até lá, é preciso anotar detalhadamente o que fazem os pequenos primatas, como interagem, em que árvores se alimentam e de qual fruto ou inseto, entre outros tantos comportamentos. Para a dissertação de mestrado, Bufalo acumulou mais de 400 horas de observação. No doutorado, o número deve ir além. Por vezes, a própria observação já revela informações importantes. Em agosto de 2019, por exemplo, os pesquisadores flagraram um mico-leão-preto usando um graveto para vasculhar folhas secas depositadas em uma bromélia em busca de insetos para se alimentar. Embora o uso de ferramentas por primatas já tenha sido observado em outras espécies, esse foi o primeiro registro para a família dos Calitriquídeos e uma das poucas vistas no continente americano, fato que rendeu a publicação de um artigo no International Journal of Primatology.

O monitoramento dos primatas na copa das árvores também levou os pesquisadores a observarem a presença constante de uma ave no entorno do grupo de micos. Segundo a descrição que foi publicada na revista científica Ornithology Research, tratava-se de um tiê-de-topete (Trichothraupis melanops), que se associou aos primatas para se alimentar de insetos que fugiam das buscas feitas pelos micos. Os insetos terminavam servindo de alimento para as aves, estabelecendo-se assim uma curiosa e até então inédita relação ecológica de comensalismo entre as duas espécies.

Ainda que a conservação dos micos seja importante para a manutenção da biodiversidade nas florestas, especialistas apontam que populações restritas a pequenos fragmentos têm pouca chance de sobreviverem a médio e longo prazo, devido ao que chamam de “viabilidade genética”. Em um espaço pequeno de fragmento como o de Guareí, os cruzamentos ocorrem entre poucos indivíduos que muito provavelmente pertencem à mesma família. Isso reduz a variabilidade genética e deixa a população vulnerável. Nesse contexto, pragas ou surtos de doenças contagiosas como a febre amarela podem aniquilar uma população. Em 2019, na Reserva Biológica Poço das Antas, no Rio de Janeiro, por exemplo, mais de 90% de um grupo de 380 micos-leões-dourados morreram em decorrência da doença.

As pesquisas desenvolvidas pelo Laboratório de Primatologia do câmpus da Unesp de Rio Claro colaboram para ampliar o entendimento da espécie e oferecer subsídios para iniciativas que visem a conservação dos micos. Nesse sentido, o projeto em andamento em Guareí pode proporcionar informações relevantes sobre quais espécies os micos preferem consumir e entender qual a densidade máxima que determinado fragmento pode abrigar sem que os primatas se estressem a ponto de adoecer. “São informações que podem direcionar projetos de reflorestamento de áreas com aportes relevantes para o mico-leão-preto ou para o plantio de corredores ecológicos, de forma a manter o ecossistema daquele local funcionando de forma equilibrada”, explica Bufalo.

Flagrante do mico-leão-preto. Crédito: Olivier Kaisin.

Já estávamos próximos do fim da tarde do segundo dia de campo quando Caetano ameaçou descer da copa da árvore para próximo do chão. Rodrigo já estava com a sua vareta e laço a postos. O movimento, porém, foi interrompido pela aproximação de um outro grupo de micos que vive no mesmo fragmento, em Guareí. A presença dos conterrâneos alterou visivelmente o comportamento de Caetano e dos demais, que subiram novamente em direção à copa e passaram a se movimentar de forma ainda mais ativa, vocalizando em um tom ameaçador. O estresse do encontro parece ter sido a desculpa que faltava para o grupo de Caetano ir dormir, mais uma vez entre as lianas e não dentro do oco das árvores, eliminando qualquer chance de que a reportagem testemunhasse a recuperação da mochila de GPS.

Terminado o período de dois dias acompanhando as atividades de campo dos pesquisadores, a reportagem não conseguiu presenciar a captura de Caetano. O que foi motivo para uma certa frustração para o repórter foi visto apenas como mais um dia comum de trabalho de campo. “O trabalho no campo exige que tudo dê certo, a fim de que o resultado final corresponda ao que planejamos lá no começo, mas muitas incertezas ocorrem no caminho. Pegar um mico é uma verdadeira aventura. É cansativo acompanhá-los na mata, mas o resultado do trabalho costuma ser gratificante”, diz Bufalo. Dias depois, a equipe informou que capturou Caetano na manhã de domingo, depois de o grupo de micos passar a noite de sábado dormindo dentro do oco da árvore. A mochila foi recuperada e os dados do GPS e do acelerômetro estão sãos e salvos.

O mico Caetano, enfim encontrado. Crédito: Rodrigo Amaral.

Imagem de abertura: mico-leão-preto em Guaraí. Crédito: Olivier Kaisin. Fotos ao longo do texto: Marcos Jorge.